quarta-feira, 29 de outubro de 2008

Guiné 63/74 - P3377: O meu baptismo de fogo (19): Como, porquê e não só (Belarmino Sardinha)


1. Mensagem do camarada Belarmino Sardinha, ex-1.º Cabo Radiotelegrafista STM, 1972/74, Mansoa, Bolama, Aldeia Formosa e Bissau, com data de 28 de Outubro de 2008:

Caros Editores,
Estimados Camaradas,
Aqui envio descrito aqueles que foram o meu Baptismo e Crisma.
Vejam o interesse que eventualmente possa ter e, não lhe chamarei censura, deixo ao vosso critério a sua divulgação ou não.

Um Abraço
BSardinha

2. O Meu Baptismo de Fogo - Como, Porquê e Não Só

Tornou-se leitura diária este Blog/Local, como preferirem.

Nunca falei muito sobre este tempo e quando o fazia era apenas e só com camaradas, tivessem eles estado na Guiné, Angola ou Moçambique. Sempre achei não ser capaz de transmitir cabalmente o que vivemos ou obter de quem me ouvia a sensibilidade para um resumo de acontecimentos com que éramos brindados, não de uma queixa. Se havia a necessidade de libertar fantasmas que eventualmente existissem, quer pelos acontecimentos vividos ou simplesmente conhecidos, nunca me apercebi haver por parte da sociedade em geral esse interesse em ajudar. Não me refiro aos familiares, refiro-me àqueles que nos ouviam quase como obrigação num acto de consolo para com o desgraçadinho ou o apanhado, como muitas vezes disfarçadamente diziam. Talvez por isso nunca o tenha feito tão abertamente como agora neste espaço, se calhar nem com os meus filhos o fiz alguma vez, outros são hoje os tempos e os interesses, felizmente, embora devamos estar atentos aos políticos, especialistas a arranjarem-nos destas situações, mesmo em regimes como a dita democracia.

Talvez também nunca tenha dado grande importância a esta parte da minha vida na Guiné. Foi um assunto em que me vi envolvido, que era pessoal e intransmissível e altamente individual, só partilhado com todos os outros em igualdade de circunstâncias. Porém este Blog/Local tem-me levado a falar convosco e a poder contribuir para quem queira fazer um trabalho verdadeiro e sério sobre o que foi e como foram vividos pelos diferentes protagonistas esses 13 (treze) anos. Por tudo isso, só agora, falando ou escrevendo vou recordando situações e nomes, mas estou certo que coisas há que estão profundas ou mesmo apagadas na memória. Escrevi um dia: as coisas boas recordam-se, as más nunca se esquecem. Hoje não estou tão certo assim.

Nunca achei e continuo a achar pouco importante o que eu passei tendo em atenção as experiências vividas por muitos outros camaradas com quem privei. Mas não me escuso a deixar aqui o meu depoimento sobre como aconteceu o meu baptismo de fogo.

Mansoa, 1972, num dia de Setembro ou Outubro, tanto faz

Os dias eram iguais e as datas não eram coisa que me interessasse, tinham passado pouco mais de 15 (quinze) dias, de um período de 24 meses quando fui para Mansoa, não havia razão para pressas ou preocupações de tempo e muito menos para um registo. Estávamos no ano de 1972 e isso era quanto bastava, sabia que tinha passado já o meio do ano, pois tinha sido nessa altura que havia desembarcado na Guiné e passava já mais algum tempo que estava em Mansoa, seria talvez Setembro ou mesmo Outubro quando pelas, aproximadamente, 20h00 ou 20h30 se ouviu o primeiro rebentamento.

Inexperiente nestas matérias e por isso também mais inconsciente, procurei ver o que faziam os outros para lhes seguir o exemplo, foi assim que dei comigo debaixo de uma placa onde se encontrava o telex dentro do edifício de STM em Mansoa. Foram apenas uns quinze a vinte minutos, se calhar menos, tempo apenas suficiente para nos enviarem a mensagem, seis canhoadas, palavrão ouvido aos operacionais. Caíram todas fora do quartel, mas o pior para aqueles que lá se encontravam havia quase uma comissão, era que no mês de Julho, uma semana antes de eu lá ter chegado, haviam sofrido um forte ataque que deu cabo de parte de várias casas da vila e da bomba de gasolina. Tive oportunidade de ver os estragos.


Mansoa > Ponte sobre o Rio Mansoa.
Foto de J. Mexia Alves, editada por CV


Mansoa > Vista aérea do Quartel.
Foto de César Dias, editada por CV


Em Aldeia Formosa, sempre à hora do jantar

Como já referi em nota anterior, por dificuldades de entendimento com um furriel miliciano, fui transferido para Aldeia Formosa.

Não sei se estarei a falar da mesma zona que o nosso mestre Luís Graça refere não ser atacada, ou se isso reporta apenas à data que ele refere no comentário que faz no final da tradução do documento do PAIGC, mas os camaradas já lá colocados, quando cheguei diziam ser prato habitual e sofriam de alguma ansiedade se estavam muitos dias sem que houvesse um ataque ou flagelação, diziam poder estar o IN a estudar um plano para um ataque pior ao que que estavam já habituados.

Que me lembre, existiam neste quartel, Aldeia Formosa, além de duas anti-aéreas de 4cm mais duas ou três quádruplas, um Obus 14 e outro mais pequeno, salvo erro 11, não sou especialista de armas e posso estar a dar-lhes o nome errado tecnicamente, mas isso poderá ser confirmado por outros camaradas que por lá passaram ou pelos registos militares que certamente existirão .

Voltando à questão dos ataques, como a festa anterior tinha sido de pouco efeito e digamos sem interesse e tinha apenas o baptismo, foi-me possibilitado fazer o crisma e assim ver melhor como funcionavam estas coisas dos ataques aos quartéis. Nos três meses que passei em Aldeia Formosa averbei 9 (nove) ataques ao quartel, sendo um deles ao arame, por volta das 21h00 ou 22h00.

Como era habitual estava a entrar no bar do pelotão das chaimites, com quem fazia, por vezes, a ronda fora do quartel, quando ouvi um barulho que me fez olhar para trás e ver o céu cheio de luzes, balas tracejantes.

Tinham começado um ataque do lado de lá da pista de aterragem, sem que tivesse sido detectada qualquer movimentação ou rebentamento que provocasse o alarme.

Pouco depois começou a nossa resposta a esse ataque, mas as anti-aéreas quádruplas encravaram com excepção de uma manuseada por um experiente velhinho. Houve depois quem dissesse que tinham ido lá testar os periquitos que tinham chegado para substituírem os atiradores daquelas armas e que estas encravaram por terem feito fogo abaixo dos 0 graus.

Mas para mim, o pior, com excepção deste ataque nocturno ao arame, foi que todos os outros foram sempre próximo da hora do jantar ou quando este decorria. Embora não fossemos trajados com fatos de gala nem houvesse baile depois, fez que numa das vezes, ao despejar o prato para o caldeiro e correr para a vala, feita com bidões cheios de terra, tivesse despejado também as ferramentas da refeição, ou sejam, o garfo e a colher.

Considerado já um especialista que averbava no curriculum 10 ataques aos quartéis por onde tinha passado, regressei a Bissau e aí fiquei, até ir render a Bolama um camarada que ia de férias.

E porquê?

Tinha já passado mais de metade da comissão e tinha estado de férias da Metrópole.

O então 1.º Sargento Vasco, Chefe do Posto Director do STM em Bissau, havia-me pedido, ou mandado, levar-lhe um capacete para se passear de mota, dizendo-me qual o modelo e inclusive onde o deveria comprar, na altura, na esquina da Rua das Pretas com a Avenida da Liberdade. Como não se tinha chegado à frente com o dinheiro, na altura entre 1.500$00 a 1.800$00, nem via nele grande interesse em o querer pagar, quando regressei disse-lhe que estavam esgotados. Não gostou. Daí a ter-me oferecido para ir substituir a Bolama o camarada que ia de férias foi um passo.

Por outro lado pensei que se Bolama servia para gozarem as férias muitos dos que não iam à Metrópole, nada melhor do que eu ir até lá, era como sair de Lisboa ou Porto e ir passar um mesinho em Cascais ou Foz do Douro.

Chegado e instalado, num quartel de instrução militar destinado ou pelo menos na altura a recrutas, dos quais grande parte ou todos muçulmanos, onde a carne de porco não fazia parte da ementa e onde acompanhavam as refeições com leite, procurei o entendimento com o cozinheiro e levantava os géneros e confeccionava eu o tacho no espaço do STM.

Mas não tenho razão para me queixar do trabalho, talvez mais da falta dele, dormia todas as noites sem a preocupação dos turnos 00h00/04h00 - 04h00/08h00 - 08h00/12h00 - 12h00/16h00 - 16h00/20h00 - 20h00/24h00 obrigatórios em Bissau, estava mesmo de férias não fosse lembraram-se de fazer um ataque ao quartel, imaginem dois ou três rebentamentos e acabou, felizmente e sem consequências.

Depois deste nunca mais passei por outro, passados os 30 (trinta) ou 40 (quarenta) dias que estive em Bolama regressei a Bissau e ao Posto Director do STM até final da comissão.

Como poderão ver, tenho razões para me considerar um privilegiado em relação a muitos dos camaradas que dão o seu contributo a este Blog/Local e não vejo grande interesse nas minhas situações pessoais. Contudo, não deixarei de contribuir, modestamente, para o Blog/Local que, sendo do Luís do Vinhal e do Briote, nos reúne e permitam-me a ousadia, já é de todos nós.

Um abraço para todos.
BSardinha
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Notas de CV:

Vd. último poste da série de 28 de Outubro de 2008 > Guiné 63/74 - P3365: O meu baptismo de fogo (18): Cufar Nalu, 15 Maio de 1965 (Mário Fitas, CCaç 763, Cufar)

Vd. postes de Belarmino Sardinha de

14 de Junho de 2008 > Guiné 63/74 - P2942: O Nosso Livro de Visitas (16): Belarmino Sardinha, ex-1.º Cabo Radiotelegrafista STM (Guiné 1972/74)

17 de Junho de 2008 > Guiné 63/74 - P2956: Tabanca Grande (75): Belarmino Sardinha, ex-1.º Cabo Radiotelegrafista STM (Guiné 1972/74)

1 de Julho de 2008 > Guiné 63/74 - P3009: Com sangue na guelra: Nós e a mística dos comandos da 38.ª, em Mansoa (Belarmino Sardinha)

6 de Julho de 2008 > Guiné 63/74 - P3026: Convívios (69): Pessoal do BCAÇ 3832, no dia 31 de Maio de 2008 na Covilhã (Germano Santos/Belarmino Sardinha)

10 de Julho de 2008 > Guiné 63/74 - P3047: Os nossos regressos (9): Uma viagem tranquila...(Belarmino Sardinha).

20 de Julho de 2008 > Guiné 63/74 - P3075: Estórias avulsas (19): Os cães da guerra (Belarmino Sardinha)

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