sexta-feira, 24 de outubro de 2008

Guiné 63/74 - P3349: Operação Macaréu à Vista - II Parte (Beja Santos) (49): Prometo que hei-de voltar


Texto de Mário Beja Santos
ex-Alf Mil,
Comandante do Pel Caç Nat 52,
Missirá e Bambadinca,
1968/70

Fotos (e legendas): © Beja Santos (2008). Direitos reservados.



Agosto de 1970

Operação Macaréu à vista


Episódio XLIX

PROMETO QUE HEI-DE VOLTAR!

Beja Santos

De Bambadinca para o Xime

Amanheceu, tenho o corpo moído de quem dormiu pouco e mal. Todos dormem ainda no quarto, vou ao duche, visto o camuflado, bebo um café com o estômago revoltado. Quando regresso ao quarto, há já bulício dentro e fora, a coluna que vai para o Xime está nos seus preparativos, a Daimler põe-se à frente, o Vacas de Carvalho exige participar na despedida. Num 404 são depositadas as duas caixas com papelada e discos, a mala com a roupa segue ao pé. Abraço quem fica, desde os companheiros do quarto, todos os efectivos da CCaç 12 e do BArt 2917 que andam por ali ou vão partir para missões. D. Violete e D. Ema estão à varanda, avanço para elas, é a minha vez de as surpreender com uma lembrança, deixei lá em casa o meu gira-discos a pilhas e todo o Chopin disponível, incluindo o Samson François, relíquia da Cristina. O rosto de Mamadu Soncó é uma máscara de inquietação, insiste em partir comigo, reitera que é um momento único, em Lisboa vou esquecê-lo, recorda que tem estudado, que sabe português, matemática, desenho e ciências naturais, em Lisboa poderá ir muito mais longe, eu que não lhe corte os sonhos. Não consigo desarmá-lo mesmo quando lhe ofereço a caneta, o tinteiro e um conjunto de livros que ele cobiçava abertamente e me pedia quando se sentava ao pé de mim, eu a escrever ele a ler. Ignoro abertamente que os seus pedidos vão persistir até hoje. A arrumar o correio, que remanesce destes dois anos de comissão, descubro um aerograma seu com data de Setembro de 1973, escrito em Bissau, ele comunica-me que já fez a quarta classe e que está a estudar e a trabalhar como escriturário na Polícia Militar, refere com orgulho que tirou um curso de dactilografia que lhe custou 1.300 escudos. Nos anos subsequentes à independência, entra nas finanças, deambula entre Bissau e Bolama. Continua a pedir para vir para Lisboa, eu não tenho resposta para lhe dar a não ser enviando-lhe livros. Mais tarde, pedirá para a filha mais velha vir estudar em Lisboa. Ele é um Soncó, é naturalmente combativo, alguém lhe terá contado que o régulo Malã Soncó me incorporou na família, mesmo sem vínculos de sangue estou obrigado à solidariedade eterna com as gentes do Cuor. Subo para o burrinho, olho até ao fundo onde se vêem as lalas à volta de Finete, depois, antes de me sentar fixo o olhar na fachada da capela, agradecendo a Deus tudo quanto Ele me ofereceu. E partimos.

Na ponte de Udunduma despeço-me do Rodrigues e do seu pelotão. Ao passar por Amedalai aceno a quem está na estrada. Alguns quilómetros à frente, paramos nas obras do alcatroamento, o engenheiro Semedo insiste em desejar-me as maiores felicidades. A coluna prossegue com todas as precauções. O PAIGC retirou o estado de graça ao BArt 2917, as flagelações e as minas reapareceram no Xime, em Mansambo, na Ponte dos Fulas, no Corubal. O 3 de Agosto foi celebrado com alguma pompa, houve uma flagelação ao Enxalé a que se seguiu a reacção do fogo de obus do Xime; nesse mesmo dia o aquartelamento de Mansambo foi flagelado com morteiros 82, depois chegou a hora do Xime, regressaram igualmente as minas na estrada Xime-Bambadinca. Chegados ao Xime, mudei de indumentária, converso pela última vez com Cherno, entrego-lhe a G-3 e as cartucheiras para regressarem ao depósito de material, o camuflado estava prometido a Mamadu Silá, ofereço ao meu ditoso guarda-costas o meu relógio. O pelotão está formado em U, quase toda a gente que vai partir já embarcou na LDG. É um curto mas emocionado agradecimento que lhes dirijo, comecei por sorrir ao informar que todas as dívidas comigo estavam pagas, era escusado voltarem a escrever-me a pedir novas prorrogações. Não sei exactamente porquê, referi as obras de Missirá e as idas diárias a Mato de Cão, as lições que todos me tinham dado de resistência física e moral. Depois abracei-os um a um, ia pedindo a todos que ajudassem o alferes Nelson Reis como me tinham ajudado durante aqueles dois anos. Quando estava prestes a partir, dei conta que o Cherno desaparecera. Foi aí que me informaram que ele estava em grande sofrimento e que não queria que o vissem a chorar. A todos prometi que voltaria em breve.

Aturdido, subo para a LDG ainda a tempo de acenar à coluna que inverteu a marcha, vai regressar a Bambadinca, esta tarde haverá uma ida a Fá, depois a Bafatá, no regresso passarão por Galomaro para entregar materiais, à noite está-lhes reservada a ponte de Udunduma. Olho o Geba, à procura de Mato de Cão. A LDG parte para Bissau, há uns disparos ainda em Ponta Varela, pensei que fosse para intimidar eventuais atacantes. A partir daí, o Geba abre-se em luminoso estuário, o dia aquece, ouve-se o motor do vaso de guerra e o gralhar dos militares no seu bojo, é a boa disposição ou a euforia dos que partem para férias ou definitivamente. Vejo a minha imagem reflectida num vidro, confirmo que visto a farda n.º 2, tenho a boina bem posta, os sapatos engraxados. Sento-me e abro o caderninho viajante. Tomo as seguintes notas: escrever ao Paulo Costa e ao José Braga Chaves, em Moçambique; dar notícias à minha irmã, ela que foi sempre tão diligente, companhia semanal dos meus soldados doentes no anexo do Hospital Militar; ir visitar o Centro de Estudos da Guiné e depois escrever ao comandante Teixeira da Mota. Aqui parei, estou excitado com estes deveres que se podem cumprir sem os rigores de horário, constato que desta vez não tenho compras para fazer nos mercados do Bissau Velho e de Bandim, sinto-me desajeitado sem as obrigações e as rotinas. Vejo ao longe Porto Gole, afinal estou a fazer o mesmo itinerário de há dois anos atrás. Alguém passa por mim e pergunta se vou de férias ao que respondo que não, chegou a hora de regresso. Olhando novamente a minha imagem reflectida no vidro, falo para mim próprio: “A tua guerra acabou, tens que te preparar para pôr outros sonhos em prática”. As horas passam, venho de novo à amurada de onde avisto um ponto que sei ser o Ilhéu do Rei. Estou cansado, gostava de telefonar imediatamente à Cristina e à minha mãe, o que só poderei fazer ao fim da tarde. Não foi fácil chegar ao Vaticano III com toda aquela carga. Quando os correios estão prestes a fechar, entro de afogadilho e consigo as chamadas: “Em breve estarei aí, não duvidem, estou de boa saúde, logo que souber quando parto, volto a telefonar”. À saída dos correios, senti um arrepio, ainda pensei na malária, mas era, felizmente, só uma brisa muito própria da época das chuvas. Voltei a confirmar que finalmente tinha todo o tempo livre para mim. Começara a separação dos meus queridos amigos do Pel Caç Nat 52.

A última visita ao Centro de Estudos da Guiné Portuguesa

À noite, lancei-me febrilmente a escrever aerogramas, numa tentativa desesperada na sala de oficiais do QG de me isolar de todas as conversas à volta da guerra. Despeço-me de alguns amigos, dou comigo a mandar uma carta a Bacari Soncó, mas também a escrever a Fodé Dahaba e a Paulo Semedo, em Lisboa. No Vaticano III inicia-se uma peripécia que me irá custar 10 escudos que entregarei na esquadra da polícia do Campo Grande, em 1972, sob escolta policial a partir de casa. Quando pedi lençóis ao soldado quarteleiro recebi dois e uma fronha, como era do uso. Um dos lençóis estava rasgado de alto a baixo, fui informar, ele disse não ter importância. Para mim também não, continuava a ter um sono de pedra e não era possível rasgar mais aquele resto de lençol. Quando no dia da partida para o cais de Bissau fiz a entrega dos lençóis, o quarteleiro de serviço pediu que lhe pagasse um novo lençol, o que eu lhe estava a entregar era irreparável. Não lhe dei troco, ele tomou nota do meu número mecanográfico e o polícia do Campo Grande pediu-me os 10 escudos, recusei mas acabei por pagar na esquadra. Estava a aprender o mal que andara a fazer com as minhas deprecadas...

Não sei o tempo que me resta em Bissau, à cautela apareço no Centro de Estudos da Guiné Portuguesa e pedi para consultar duas obras: “Usos e costumes jurídicos dos mandingas”, por Artur Augusto da Silva, vinha tudo em dois números do Boletim Cultural da Guiné Portuguesa, de 1968, e “O Ultramar Português no século XIX”, por A. da Silva Rego, Agência Geral do Ultramar, 1966. Aquela biblioteca quase não deixa filtrar o que se passa no exterior, não há ninguém no Museu, ali ao lado, aquele funcionário sempre tão reservado mas sempre solicito mexe-se com toda a cautela, não quer perturbar quem lê e escreve. No livro sobre os mandingas, paro para recuperar a ideia de que a conversão dos animistas, tendo sido brutal por parte dos fulas, até ao início do século XX, que iam empurrando para o litoral aqueles que não se muçulmanizavam, acabou por se adaptar aos usos e costumes dos próprios animistas. Daí o sucesso da islamização dos povos da Guiné que soube compreender que não podia hostilizar abertamente todas as crenças ancestrais. Os mandingas souberam dar esse exemplo de não pôr completamente de parte os princípios da religião ancestral. Leio e procuro compreender à distância Malã e Lãnsana Soncó: todo o comportamento humano é julgado, punido ou premiado unicamente pela religião, ao contrário das sociedades ocidentais. Mas também os mandingas não ignoravam o legado dos antepassados, as relações sociais e familiares modeladas pelos que já morreram e definem a sabedoria da colectividade. Leio e revejo a força do sincretismo religioso que presenciei em Missirá e Finete, dou conta da importância dos nomes, das castas, do levirato, da filiação, das interdições, do julgamento dos crimes. Leio e o meu espírito divaga a pensar em apelidos como os Mané e os Sani, os Camará e os Cassamá. Depois lembro-me dos ferreiros, alfaiates, tintureiros, ourives, sapateiros e tecelões, lembro-me da falta de direitos dos que estão sob a tutela dos pais, da severidade contra os crimes praticados às pessoas e contra a propriedade. Artur Augusto da Silva fala no crime de adultério, os casos que presenciei em Missirá e Finete acabaram quase todos por serem resolvidos a bem, no fundo aquela sociedade rígida e cruel com a mulher concede-lhe o direito a partir e prende o homem ao terror da esterilidade. Prometo a mim próprio que hei-de estudar mais estas notas que registei no caderninho viajante.

O livro do padre Silva Rego pareceu-me uma valiosa síntese do que aconteceu no Ultramar Português ao longo do século XIX, onde se procurou recuperar a inércia do século anterior. Tomei nota que a Constituição Política da Monarquia Portuguesa, de 1822, não fala da Guiné refere única e exclusivamente Bissau e Cacheu. As alusões à Guiné prendem-se com Honório Pereira Barreto e a questão de Bolama. Barreto é uma figura surpreendente, as fronteiras da Guiné devem-se ao seu esforço, à sua tenacidade em impedir a gula dos franceses. A questão de Bolama inibe igualmente outro pretendente à posição portuguesa, a Inglaterra. Quiseram fundar aqui um estabelecimento de colonização, no fim do século XVIII, a expedição redundou num desastre. Como tinham comprado a ilha a dois régulos, décadas mais tarde reacendeu-se a polémica, os incidentes e a tensão diplomática. Portugal propôs uma decisão arbitral e sugeriu o presidente dos Estados Unidos, Ulisses Grant. A sentença foi proferida em 1870 a nosso favor. Para conhecer a sentença fui reler a História da Guiné de João Barreto. Estou satisfeito com todas as notas que tomei, não sei para que este material serve, não posso adivinhar que no exacto momento em que ponho termo a esta narrativa da minha comissão, os meus caderninhos serão entregues na Biblioteca da Sociedade de Geografia de Lisboa.

Despeço-me daquele reservado senhor que me abriu as portas a estas leituras no Centro de Estudos da Guiné Portuguesa. Ele terá visto a contida emoção com que lhe falo e assegura-me que nada lhe devo. Titubeante, parto para o bulício de Bissau.

Em louvor de Doris Lessing

Que livro espantoso, “A erva canta”. Comecei lê-lo há alguns meses, ao princípio duvidei que aquela África existisse, que aquele drama fosse possível numa ruína de vidas perdidas numa fazenda da Rodésia do Sul. Tudo começa com o assassinato de Mary Turner, mulher de Richard Turner, um fazendeiro de Ngesi. O criado da casa, Moisés, confessou o crime, não houve roubo, a polícia não percebeu o móbil do crime. Os Turner eram inadaptados, uns verdadeiros falhados do mundo colonial, eram brancos pobres e o seu fracasso merecia ser esquecido. Estes incidentes dramáticos tiveram lugar quando Charlie Slatter, um fazendeiro próspero e vizinho dos Turner lhes propôs ficar com a fazenda. Doris Lessing é uma autora que eu não conheço. Mas a sua estrutura narrativa para nos levar à compreensão dos factos é surpreendente e prende-nos do princípio ao fim. Como numa investigação policial, antes do móbil são previamente apresentados os personagens, comungamos os seus estados de espírito, ouvimos opiniões, desenham-se atmosferas. Aos poucos, vamo-nos apercebendo da indiferença no casal, na sua pouca ousadia, na sua incapacidade de responder aos desafios do meio hostil. Moisés, o criado, vai progressivamente tomando conta das responsabilidades da casa e cuidando de Mary, cada vez mais ausente. O leitor fica absorvido com este estilo seguro de Lessing que nos prende como numa intriga policial. Foi assim que conheci Doris Lessing, hoje um nome consagrado da literatura inglesa e mundial.





Tradução (muito boa) de Daniel Gonçalves, capa de Paulo- Guilherme, Editora Ulisseia. Penso que foi a 1.ª tradução de Doris Lessing em português. É uma construção literária vigorosa, é uma narrativa muito segura, enleante, a atmosfera depressiva em que vivem os Turner não tem uma falha. Tudo começa com a notícia do crime de Moisés, o criado africano, a narrativa desbobina os acontecimentos do princípio até ao drama, estamos à espera de um desfecho sórdido ou de amores proibidos, a realidade é bem diferente, basta estar atento aos sinais de corrosão na vida de Mary Turner. Grande e inesquecível romance!







As outras leituras foram Rex Stout e o seu Nero Wolfe e mais um enigma altamente problemático de Ellery Queen. Em “Champanhe para um”, Archie Goodwin, o secretário de Nero Wolfe é convidado para um jantar promovido por uma multimilionária e onde vão estar presentes mães solteiras. Como é esperável num livro policial, uma das convidadas aparece morta depois de ter bebido champanhe com cianeto. Archie não aceita a tese de suicídio e inicia-se uma investigação que irá confirmar ter havido uma homicídio a que se seguirão outros. Nero Wolfe, para além do seu peso monumental, do seu apetite desenfreado e da sua obsessão pelas tulipas, desmonta a trama criminosa onde há vingança, cupidez e despeito. Não é brilhante, mas cumpre satisfatoriamente a função de entreter com elegante arquitectura literária.





N.º 150 da Colecção Vampiro, Tradução de Almeida Campos, capa de Lima de Freitas. Temos aqui um Nero Wolfe desempoeirado, a pensar na reputação de Archie Goodwin, seu indefectível secretário. Este aceita ir a um jantar onde estarão presentes mães solteiras, no âmbito de um projecto filantrópico. Uma das participadas morre envenenada, Archie Goodwin alerta a polícia: não foi suicídio mas sim homicídio. Nero Wolfe é logo procurado pela polícia e por vários participantes, com alguns problemas de consciência. Wolfe, como é próprio do se génio, deslinda o problema. Não é um Rex Stout antológico, mas está bem escrito e bem urdido.




“O Mistério da Cruz Egípcia” pareceu-me um dos livros mais artificiosos e mal estruturados de Ellery Queen. Aparecem corpos decapitados em dois pontos diferentes da América, Ellery inclina-se para um ritual secreto envolvendo a cultura egípcia, o drama arrasta-se, é um verdadeiro desgoverno de situações e hipóteses ziguezagueantes, tudo à volta de um criminoso que veio dos Balcãs e que anda a ajustar contas com a família. Para quem, como eu, andava a dormir no Vaticano III não foi a leitura mais acertada, fiquei desavindo com Ellery Queen durante um bom par de anos.

Hoje já sei da minha partida: regresso ao cais da Rocha do Conde de Óbidos a bordo do Carvalho de Araújo, disseram-me que é uma viagem longa, passaremos pelo Sal e São Vicente para largar tropa cabo-verdiana e depois atracaremos um dia no porto de Ponta Delgada onde sairão duas companhias de açorianos. O sargento que me atendeu disse-me: “Venha cá buscar a guia de marcha amanhã de manhã, à tarde já pode pôr as suas coisas no navio. Antes do fim do mês está em Lisboa”. Fui logo telefonar à Cristina e para São Miguel, são coisas do destino, parti de São Miguel para formar batalhão e seguir para a Guiné, chegou o momento de ir cumprimentar e rever queridas amizades fecundadas por esse tempo ingénuo do serviço militar do meu serviço militar.
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 17 de Outubro de 2008 > Guiné 63/74 - P3327: Operação Macaréu à Vista - II Parte (Beja Santos) (48): O adeus a Bambadinca

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