quarta-feira, 15 de outubro de 2008

Guiné 63/74 - P3319: História da CCAÇ 2679 (4): 5.º dia, o meu baptismo de fogo (José Manuel Dinis)


1. Mensagem do nosso camarada José M. Matos Dinis, ex-Fur Mil da CCAÇ 2679, Bajocunda, 1970/71, com data de 9 de Outubro de 2008, com mais um episódio para a História da sua Companhia (*).

Caro Carlos Vinhal,
Segue novo texto para uma parcial história da 2679. Vou anexar noutro mail, algumas fotografias para ilustração que, espero, cheguem em boas condições.
Para o Pessoal da Tabanca Grande vai aquele abraço.
José Dinis


O Meu Baptismo de Fogo (**)

O meu baptismo de fogo, se assim se pode considerar, ocorreu na noite de 2 para 3 de Março de 1970. Naquelas terras guineenses anoitece pelas dezoito horas e, em consequência da intensa actividade operacional, depois do chamado jantar, bebia uns copos e, não havendo proprama alternativo, adormecia relativamente cedo. Adormecido, portanto, quando pelas 23h45 teve início uma flagelação a Piche. O Zé Tito estaria deslocado em emboscada, ou noutra localidade. Acordei surpreendido. Havia alguns dias que estava em Piche, e não sabia como proceder na circunstância. No quarto, afinal, também estava o Águas, um algarvio, furriel do Bart, a quem perguntei o que fazer. Sem compreender o que ele fazia de cú para o ar, metendo a cabeça por baixo das camas, aproveitando uma luz difusa que alumiava, respondeu que me dirigisse para a vala. Eu nem sabia onde fivava a dita vala.

- Segues ao longo dos quartos que no fim encontras uma vala. Mete-te por aí.

Perguntei-lhe porque não vinha, e respondeu que andava à procura dos chinelos. Acrescentou um já vou. Com esta informação decidi esperar por ele, meio aparvalhado por nem sequer saber como proceder, meio por solidariedade.

Lá fomos para a vala, eu atrás. Afinal, ali bem perto, nas traseiras dos quartos, onde esperámos pelo final da acção, relativamente tranquilos, com a música da metralha, principalmente as rajadas das costureirinhas, a habituar os ouvidos aos sons bélicos. Estava algo perplexo: por um lado, estávamos a ser atacados, por outro, apenas nos protegíamos, sem armas nas mãos, à espera do fim da festa. Logo após, fomos alertados para a necessidade de sair, na tentativa de interceptar e atacar o IN. Levámos quase uma hora até iniciarmos a marcha, e pela dificuldade da progressão nocturma, durante quase três horas não detectámos o que fosse e tivémos autorização para regressar.

Também o Marino, que estava no posto de transmissões, sofreu a bom sofrer, dado que se refugiou numa vala próxima, e em redor foi um fartote de rebentamentos. Ele contou que bem se agachava, mas o sucessivo ribombar, fazia-lhe antecipar um final trágico, com uma granada tresmalhada a enfiar-se e e rebentar na vala, destruindo-lhe o rico corpinho. No final, quando ele comentava aquele sofrimento, um velhinho referiu que os estrondos não eram de rebentamentos, mas das saídas de um obus ali colocado.

De entre o pessoal da 2679, apenas tivémos um ferido evecuado, o António Ludgero Rodrigues Cró, a primeira baixa nos Foxtrot.

A propósito deste acontecimento, reza assim a história da Companhia:

A coberto da escuridão, grupos IN estimados num total de 150 elementos, aproximou-se do perímetro defensivo de Piche, pelo lado sul, instalando-se numa faixa de cerca de 500 metros, em linha e a uma distância da ordem dos 200 metros do arame farpado e paralelamente a este. Às 23h45 iniciaram uma flagelação ao aquartelamento e povoação, que durou cerca de 45 minutos, utilizando fogo de um canhão s/recuo, de 4 morteiros 82mm, de morteiro 61 mm, de LGF (RPG2 e RPG7), de metralhadora pesada e de armas ligeiras. O fogo IN visou sobretudo, as instalações militares, mas dada a distância a que se situava a base de fogos (a cerca de 1000 metros), o fogo não teve precisão e a maioria dos tiros cairam na bolanha a Norte do aquartelamento. A reacção das NT, através de 3 dos postos avançados que se situam na frente sul da defesa periférica de Piche, e das armas pesadas do Aquartelamento (canhão s/recuo e 2 morteiros 81 mmm) obrigou o IN a uma retirada precipitada como deixa pressupor a quantidade de material abandonado na base de fogos.
Com efeito apercebendo-se de movimentos suspeitos em frente de um dos postos avançados de defesa, o respectivo Comandante, ordenou que fosse feito um disparo de dilagrama, para o sítio onde os mesmos eram notados. Esta acção marcou o início da flagelação, pois o IN, imediatamente, começou o seu fogo. Então as NT, que ocupavam as trincheiras dos abrigos periféricos do lado Sul, bateram-no com as armas colectivas de que dispunham (Metralhadora ligeira e LGF) armamento ligeiro e dilagramas. A base principal do fogo IN foi ainda batida pelo fogo dos Morteiros 81mm, situados nas suas posições dentro do Aquartelamento o contacto estabelecido entre os postos avançados e o Aquartelamento, por meios telefónicos, permitiu tirar deles o melhor partido. A instalação IN nas ruínas de uma tabanca abandonada e em campo descoberto, permitiu a sua fácil referenciação e tornou-se um alvo fácil para as NT que só não alcançaram um êxito mais completo devido à escassez de de armamento que o BArt dispunha.
As NT conjugaram ainda o fogo com a manobra efectuada por forças desta CCaç, pelo 1.º Pelotão de RecFox e pela CArt 2440 que procuraram não só reforçar os postos avançados como também tentar o envolvimento.
As NT sofreram 8 feridos dos quais apenas 3 evacuados. O IN retirou com feridos e baixas prováveis, como foi possível constactar em Coache, por roupas ensaguentadas, penços e medicamentos usados.


O espírito de grupo

No dia 6 fizémos segurança a trabalhos da Termil na estrada para Buruntuma. Dividimos o Pelotão em três Secções, cada uma sob a responsabilidade do Guerra, do Azevedo e minha. Encostada a viatura à berma, dispus a segurança. Mas fazia muito calor, pelo que, quando chegou a hora de comer, e na suposição de que o IN não atacaria na torreira do sol, chamei o pessoal junto do unimog para ditribuição das rações. Deitei-me sobre o banco corrido. O pessoal descontraía-se, como é costume durante as refeições. Até que o Marcolino referiu que sentia saudades da mulher. A isso respondeu, alarva, o Moniz, nos seguintes termos:

- Eh pá, ela anda lá na Madeira a foder com outros e tu com saudades dela!

Foi uma mola, qualquer coisa que me impulsionou em resultado da frase, saltei-lhe em cima, de pés, ainda lhe dei um ou dois murros, e disse-lhe com indignação, que não faltava mais nada no ambiente da guerra, que um filho da puta para nos chatear.O pessoal estava surpreendido, e eu determinado a evitar repetições do género, ainda acrescentei, severamente, que no futuro não perdoaria parvoíces semelhantes. Exigia respeito entre todos, ou o Foxtrot não seria nada. Queria solidariedade e amizade, em vez de picardias estúpidas e desagradáveis. O pessoal, quedo e mudo, prestava atenção. O dito Moniz era casado, mas gozava com o Marcolino, de quem, dizia-se, teria casado à pressa, antes do embarque, mediante queixa apresentada pela mulher. Naquela época éramos influenciados por preconceitos e falhas de educação, pelo que, até os casamentos podiam hierarquizar-se na nossa consideração e respeito. Este assunto ficou ali tratado e encerrado.

O Mama-Sono

No dia 09MAR70, o Pelotão seguiu para Buruntuma, em reforço temporário desta unidade. Ali estava destacado um PIDE, que condicionava ou, melhor, que acelerava a nossa actividade, em função das informações obtidas pelo agente, falsas ou verdadeiras. Foi assim que no segundo dia da permanência, o capitão informou-me de que movimentos na fronteira, ali perto. Urgia uma acção da nossa parte. Mandou-me reunir o pessoal para, imediatamente, sairmos de viatura até determinado lugar, e daí, patrulharmos a fronteira.
Tudo a correr para caçarmos o IN. Em passo de corrida dei a volta aos abrigos a chamar o pessoal para o efeito, e só depois fui buscar a minha arma. Quando cheguei junto do comando, já ali se encontrava o grosso do Pelotão. Não sei porquê mas eu estaria só com o grupo. Dei ordem para arrancarmos, mas advertiram-me que faltava o Mama-Sono, e o morteirete. Vamos sem o Mama-Sono. Esta alcunha atribuída ao Rodrigues ainda durante a instrução no Funchal, derivava de andar de cara caída, ser pouco conversador, e aparentar calanzisse... Deixámos as granadas do sessenta e abalámos.

No regresso dirigi-me à secretaria, pedi a um sargento uma folha de participação, e escrevinhei a propósito do Rodrigues, pois decidira que não ia admitir baldas. Ao mesmo sargento apresentei a folha e pedi-lhe que avaliasse o eventual castigo. Respondeu-me que o descrito era de grande gravidade, e poderia dar uma prisão de longo prazo, porque a substância estava apimentada.

Chamei o Rodrigues, apresentei-lhe a participação, e referi-lhe a punição a que se sujeitava. Avaliou bem a situação. Naquele tempo, para efeitos profissionais, também se dava importância ao conteúdo das cadernetas militares. Pús-lhe a questão, ou entregava a participação sem alterações, com a s consequências previsíveis, ou rasgava o papel, se se comprometesse a não me causar mais preocupações no seio do Pelotão. Escolheu a segunda opção, modificou o comportamento, sociabilizou-se, tornou-se participativo e bem humorado, voluntarizava-se para tudo, ganhou alegria e respeito.

Intuir a guerra

Regresso a Piche em 23MAR70. Por aqueles dias comecei a diagnosticar o grau de aprendizagem a andar no mato. Já não tirava percutores. Fazia bem carregar e dormir abraçado à canhota. Familiarizávamo-nos com o material. Durante as paragens abordava o assunto e como reagir em caso de sermos emboscados. A maioria, referiu que nesse caso reagiria com rajadas sobre os filhos da puta. Outros, intervinham dizendo que em vez de rajadas, borravam-se todos. Coisas assim, em momentos de convívio e descontração, no mato. Verifiquei as armas: umas estavam em segurança, outras em tiro-a-tiro, as restantes em rajada.
Notava-se a desorganização. Discutimos o assunto. Quem se achava capaz para reagir e como. Logo alertei para a necessidade de respeitar o IN, sem o sub-valorizar, para a necessária lucidez, economia e espírito de grupo. Se a reacção fosse descontrolada, aos tiros para o ar, ou rajadas em todas as direcções, na tentativa de espantar o IN, não só não seríamos eficazes, como provocaríamos mais perturbação entre nós, e ficaríamos sob controle do IN, com efeitos indesejáveis no resultado final. Se a vida era coisa séria, saber defendê-la exigia critério. Logo ali ficou determinado que em qualquer circunstância as armas só dariam tiro-a-tiro. Para uma reacção concertada, sem perturbações, havia a necessidade de identificar a posição do IN, e de a comunicar quando fosse necessário, e só atirar pela certa, tiro de pontaria, quando tivéssemos o IN na mira da arma. Acrescentei que por cada tiro dado, queria um turra.
Também a movimentação teria que ser coordenada e, para isso, era necessário prestar atenção às instruções do alferes e dos furriéis. Que era muito importante manter ligação entre todos, comunicar qualquer acontecimento importante, como posições relativas, ferimentos, o que fosse importante. E que a asserção de que mais vale um cobarde vivo que um herói morto, não tinha aplicação naquelas circunstâncias.

Alguns elementos do 2.º Pelotão - Foxtrot, de pé, da esquerda para a direita: Dinis, Abreu, Teresa e França. Em baixo: Lamarão (condutor), Rodrigues, Martins e Virgilio Sousa

No dia 27MAR70 seguimos para Canquelifá, onde permanecemos até 03ABR70. Ali desenvolvemos patrulhamentos, viagens às aldeias próximas, como as Dingas, que estavam a ser abandonadas pelos moradores, em virtude da acção do PAIGC sobre as populações locais. Num desses patrulhamentos, com outro pelotão local, ao longo da fronteira com o Senegal, interceptámos dois pastores com o seu gado, que se dirigiam para norte e, apurámos, iam ao encontro do IN. O local do encontro seria uma fonte ali próximo, e tínhamos duas horas de antecedência relativamente ao encontro.
Decidimos ali que uma secção voltaria a Canquelifá com os pastores e o gado, enquanto os restantes deslocar-se-iam para a fonte, onde se montaria emboscada. À partida demos conhecimento via rádio. Surpreendentemente em Canquelifá, onde não havia capitão, estava o Comandante da CAOP de Bafatá que, passados uns momentos, ordenou-nos a retirada para um ponto alto e aí aguardar. OK, mas não havia elevações na região. Algum tempo depois, troaram as saídas e rebentamentos das granadas dos obuses, que atingiram três aldeias fronteiriças no Senegal.
_____________

Notas de CV

(*) Vd. último poste da série de 5 de Outubro de 2008 > Guiné 63/74 - P3271: História da CCAÇ 2679 (3): Início da actividade operacional (José Manuel Dinis)

(**) A coincidência do título deste trabalho nada tem a ver com a série O meu baptismo de fogo. É mesmo pura coincidência.

Sem comentários: