terça-feira, 7 de outubro de 2008

Guiné 63/74 - P3276: Memórias literárias da guerra colonial (3): O poder na ponta das espingardas, segundo A. Graça de Abreu (Luís Graça)

Biblioteca-Museu República e Resistência / Espaço Grandella > Memórias Literárias da Guerra Colonial > 2 de Outubro de 2008 > Conferência do nosso amigo e camarada António Graça de Abreu > Apresentação do seu livro Diário a Guiné: Lama, Sangue e Água Pura ( Guerra e Paz Editores, 2007) > Na foto, da esquetrda para a direita, o autor e o anfitrião, José Paulo Sousa.





Biblioteca-Museu República e Resistência / Espaço Grandella > Memórias Literárias da Guerra Colonial > 2 de Outubro de 2008 > Conferência do nosso amigo e camarada António Graça de Abreu > Apresentação do seu livro Diário a Guiné: Lama, Sangue e Água Pura ( Guerra e Paz Editores, 2007).

Foto e vídeo: © Luís Graça (2008). Direitos reservados. Vídeo (3' 55') alojado em: You Tube >Nhabijoes

O poder na ponta das espingardas, segundo António Graça de Abreu > Parte I

por Luís Graça


Não éramos muitos. Talvez uma dúzia, incluindo o José Paulo Sousa, o anfitrião, e a sua assistente .(Peço desculpa por não ter fixado o nome, sei apenas que nasceu na antiga Guiné Portuguesa, sendo os pais funcionários públicos). Museu-Biblioteca República-Resistência. Espaço Grandela (*). Estrada de Benfica. 419. Convenhamos que o sítio não é o mais central de Lisboa. Tramado para se estacionar. O metro mais próximo é o Alto dos Moinhos. Mesmo assim lá estivemos. O nosso blogue estava lá, se não em peso, pelo menos em maioria. Para apoiar um camarada, o António Graça de Abreu, que ia falar do seu livro Diário da Guiné: Lama, Sangue e Água Pura, publicado em 2007 pela Editora Guerra e Paz. Um sucesso editorial, a exigir 2ª edição.

Das nossa malta, estava lá, além do António, que trouxe o seu primo, um 1º sargento reformado da Marinha, que foi maquinista da Orion (“manga de porrada no Cacheu, nos anos de 1966 a 1968”), o Augusto Lenine (se não erro)…
- Éramos uma família nortenha, de esquerda… Tenho que aqui o meu primo, que também esteve na Guiné, e a quem o pai baptizou com o nome de Lenine…

O António (o Abreu China, de acordo o seu endereço de correio electrónico) também trouxe consigo um coronel do exército, de artilharia, reformado, o Nelson de Matos, que esteve com ele em Cufar, no CAOP 1, e na ocasião recém-promovido a major. Um homem que esteve em Caboxanque e na ocupação do mítico Cantanhez (território onde o PAIGC exerceu, de facto, a sua quase total soberania, entre 1966 e finais de 1972...).
- Era o homem que melhor conhecia o Cantanhez, reocupado por nós a partir de finais de 1972… - esclarece o António.
- Estou fora do exército há mais de trinta anos… E, de certo modo, zangado com a minha pátria. Hoje sou gestor. E passo uma larga temporada no Brasil onde os meus filhos vivem e têm negócios – confidencia-me o coronel, depois de me interrogar:
- É você que tem um blogue ?

O Fitas, claro, o Mário Fitas, não podia falar. Cufar é a sua segunda terra, e a Guiné a sua segunda pele. Recorde-se que, ele próprio, tem dois livros publicados (entre eles, a Pami Na Dono, a guerrilheira, uma notável criação da literatura da guerra colonial). Trouxe com ele um amigo de escola, paisano, a quem as histórias da Guiné e da guerra na Guiné fascinam….

Quem lá estava mais ? Sentado a meu lado, à esquerda, o Big Fernando Franco, que mora aqui ao lado, no vizinho concelho da Amadora. É o digno representante da Intendência no nosso blogue. Fez questão de frisar que a Companhia Terminal nunca teve nada a ver com o BIG. Já esclareceu isso ao telefone. Falou com o Daniel Vieira, segundo percebi.

E à minha direita, na primeira fila, ficou sentado o José Martins, outro grande companheir…aço. Aproveitou para me mostrar mais notas, frescas, sobre a misteriosa Sedengal, do subsector de Ingoré, região do Cacheu… As unidades que lá estiveram, do princípio ao fim… Os mortos, os nossos camaradas cujas vidas lá foram sacrificadas… O Zé Martins não brinca em serviço nestas coisas. Como competentíssimo técnico de contas que é, está habituado a trabalhar com uma grande massa de dados… É insubstituível, este Zé, este Gato Preto, da CCAÇ 5, Canjadude, 1968/70…

Também marcaram presença o Artur Conceição, que é aqui vizinho, da Damaia, Amadora. Foi homem das transmissões lá para a região de Farim. E, outra grande surpresa para mim, uma vez que não o conhecia pessoalmente, foi o Alberto Branquinho… Julgo que o António Graça de Abreu não o reconheceu. Curiosamente foi, a partir de uma observação dele, que se gerou um princípio de polémica, à volta das aeronaves abatidas pelos Strellas, em 1973…
- Houve um outro Fiat, abatido antes, em 1968, sob os céus de Gandembel – insistia o Branquinho.
- Nada disso - garantia o coronel Nelson de Matos, corroborado pelo António…

Controvérsias à parte, chegou-se rapidamente a um consenso:
- A ter sido abatido (ou caído por acidente), não o foi pelos Strella, que só apareceram de facto em 1973… - garante o António.

O José Paulo Sousa começou por explicar a origem desta iniciativa da Biblioteca-Museu, que procurou cobrir os três teatros de operações, com destaque para obras aparecidas nos últimos dez anos… Uma das questões que o intriga é a aparente ausência de obras sobre a experiência da guerra colonial em Moçambique… Esta iniciativa surgiu depois do aparecimento de um artigo do Público com referência a quatro livros recentes, dos quais de malta do nosso blogue, o António Graça de Abreu e o Mário Beja Santos… De seguida, apresentou o conferencista…

Para o António Graça de Abreu, a geração da guerra colonial, agora na casa dos 60/70 anos, tem finalmente tempo para pensar, arrumar as suas memórias, contá-las, quiçá escrevê-las… Em 1974/75, foi o silêncio… Imposto ? Auto-imposto ?
- Tive sorte em nascer em 1947… No signo no porco (shu, em chinês). É um bom signo...

Leu depois uma parte da introdução do seu livro:

"Quiseram os acasos, a sorte e o destino que a minha passagem pelos tempos finais do conflito militar se desdobrasse por três cenários de operações bem diferenciados, a região norte, em Canchungo (Teixeira Pinto), o centro, em Mansoa, e finalmente uma permanência de quase onze meses, na zona sul, em Cufar"…

Explicou-nos depois que, não tendo sido propriamente um operacional, o facto de estar integrado num Comando de Agrupamento Operacional (CAOP 1), como alferes miliciano, e de contactar todos os dias com homens e lugares onde ocorriam acções militares, permitiu-lhe “diluir-[se] no quotidiano da guerra, vivê-lo por dentro, ser testemunha e actor de um drama real que se desenrolava diante de nós, camaradas de armas e de desdita”.

Tinha já vinte e cinco anos de idade, quando foi mobilizado para a Guiné, com dois de tropa… Nunca soube (mas desconfia) do motivo por que foi mobilizado: a omnipresente PIDE/DGS sabia que ele dava aulas de português, à borla (ainda por cima!), a alentejanos e operários da Sorefame, num cooperativa da Amadora. O voluntariado, como professor, deve ter sido sinónimo de passaporte para a Guiné…

Com formação universitária, experiência de dirigente associativo (na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa), e já viajado (viveu na Alemanha), decidiu escrever um diário secreto (sic) que, juntamente com as centenas de cartas e aerogramas endereçadas à companheira com quem então vivia, bem como à família e aos amigos, permitiram-lhe abalançar-se à aventura da feitura do livro a que deu o título Diário da Guiné… (A propósito, o subtítulo original era 1972/74, de imediato rejeitado pelo editor… Lama, Sangue e Água Pura foi depois a escolha final).
- Ainda pensei em “espuma das lágrimas”, mas desisti, por que me cheirava a Boris Vian (L’écume des jours, a espuma dos dias)…

Foi a publicação, em finais de 2005, do livro com os aerogramas e cartas de António Lobo Antunes escritos em Angola entre 1971 e 1973 e dirigidos à sua esposa, e que ele, António Graça de Abreu, leu de um fôlego, foi esse clique que o levou a escrever o Diário da Guiné.

Não tendo a pretensão nem a veleidade de se comparar ao grande escritor, autor de livros onde a memória da guerra colonial é omnipresente como A Memória de Elefante ou o Cu de Judas, o nosso conferencista faz questão de sublinhar que estava apenas interessado em a testemunhar uma experiência pessoal, única, intransmissível… Fez a guerra com a qual não concordava, mas sem preocupações de resistência (activa ou passiva).
- Pensei em (e tentei) escapar à tropa…Vivi na Alemanha em 1966/67… Tive uma namorada alemã. Podia lá ter ficado… Mas não, não me senti feliz. Voltei direitinho…

Confessa o seu “maoísmo idílico” (sic ) em 1969… Na altura pensava (e, de certo modo, continua a pensar) que “O poder está na ponta das espingardas” (uma típica palavra de ordem do "livrinho vermelho", tão em moda entre os maoístas, embora o António não fosse MRPP)… Havia uma onda de sinofilia, no Ocidente, nos finais da década de 1960 e princípios de 1970, na sequência da revolução cultural chineza. Não admira, por isso, que, a seguir ao 25 de Abril (tinha regressado a Portugal praticamente na véspera), dois anos depois, militante de um pequeno partido maoísta, decida conhecer a China. Uma experiência decisiva que irá marcar, para sempre, a sua vida e a sua obra literária (tem já 13 livros publicados, dos quais 4 ou 5 de poesia).

(Continua)
___________

Notas de L.G.:

(*) Leia-se o que diz o sítio da Biblioteca-Museu:
"Situado num bairro operário, do princípio deste século [XX], construído por Francisco de Almeida Grandela, o Museu da República e Resistência dedica-se ao estudo e à investigação da História Contemporânea Portuguesa, em permanente articulação com as Universidades e as Associações Culturais (...).

"No Museu encontram-se à disposição do público diversas obras e documentos que permitem um diferente olhar sobre a I República Portuguesa , para além de diversa imprensa clandestina das oposições ao Estado Novo" (...).


(**) Vd.poste de 6 de Outubro de 2008 > Guiné 63/74 - P3274: Memórias literárias da guerra colonial (2): Conferência do A. Graça de Abreu: algumas fotos (José Martins)

2 comentários:

Anónimo disse...

Houve um Fiat que foi abatido em 1968. Escrevi no meu diário em 28 de Julho.
"Pouca antes de chegar a Gandembel vimos o IN. atacar um Fiat das FAP que se incendiou, tendo o piloto saltado de pára-quedas"
Decorria um coluna de abastecimento a Gandembel. A primeira que a minha Companhia fez.
Intervinham as Compªs 1792, 2381 e 2317. Os Fiat faziam a cobertura . De repente aparece um, vindo dos lados de Guiledje a largar fumo negro em quantidade suficiente para alguém gritar "aquele já foi".
De seguida vimos o Piloto no ar em paraquedas e o estrondo da queda para os lados de Madina.
Ao chegar a Gandembel fomos obsquiados com uma pequena flagelação, conforme escrevi "Quando chegamos a Gandembel fomos saudados pelo IN com um pequeno ataque ao aquartelamento, sem consequências. Os Camaradas que estão aqui estacionados dizem que comem disto todos os dias e mais que uma vez."
Zé Teixeira

Carlos Vinhal disse...

A pedido do camarada Jorge Teixeira, transcrevo um seu comentário:

No poste, em certo momento pode ler-se:

"- Houve um outro Fiat, abatido antes, em 1968, sob os céus de Gandembel – insistia o Branquinho.
- Nada disso - garantia o coronel, corroborado pelo António…"

É verdade que foi abatido um Fiat nos ares de Gandembel. Era pilotado por um Ten Coronel, se não me falha a memória, de nome Costa Gomes, (bigode à "Erol Flin", alias parecido com o artista), que esteve para ser apanhado à mão pelo IN. Consta que, quando corria para o aquartelamento fugindo ás tropas IN, passou por uma ponte armadilhada que só rebentou quando o IN, que o perseguia, a atravessou.
Diziamos sobre este caso: " Isto é que é voar baixinho".

Antes de aparecerem os Strella, "algumas" aeronaves já tinham sido abatidos ...

Um abraço,
Jorge Félix