sexta-feira, 19 de setembro de 2008

Guiné 63/74 - P3218: Operação Macaréu à Vista - II Parte (Beja Santos) (44): Em Bissau, no julgamento de Quebá Sissé


Texto de Mário Beja Santos
ex-Alf Mil,
Comandante do Pel Caç Nat 52,
Missirá e Bambadinca,
1968/70

Fotos (e legendas): © Beja Santos (2008). Direitos reservados.



Operação Macaréu à vista

Episódio XLIV

EM BISSAU, NO JULGAMENTO DE QUEBÁ SISSÉ
Beja Santos

As pequenas coisas da vida militar na época das chuvas


O Pel Caç Nat 52 de hoje pouco tem a ver com aquele que eu recebi em 4 de Agosto de 1968. Despedimo-nos comovidamente de Domingos Silva, regressa a Bissau, está ainda indeciso se irá trabalhar no comércio ou como professor. Não sei como é que hei-de agradecer-lhe toda a sua colaboração, a sua bravura, ao longo de todo este tempo. Recebemos mais uma ordem de transferência de praças, chegarão três soldados do Saltinho e saem outros três para o Depósito de Material em Brá. Um deles é Quebá Sissé, que dentro de dias será julgado no Tribunal Militar em Bissau, por homicídio involuntário. Sairão também Mamadu Silá e Adulai Djaló. Cherno já me avisou que se irá inscrever nos Comandos quando eu me for embora. Cibo Indjai voltou para Missirá, fez troca com um soldado do Pel Caç Nat 53, a sua paixão pela caça não tem limites. Acabo de receber uma carta de Jolá Indjai, foi considerado curado da sua tuberculose, está em convalescença, foi visitar a família a Farim, promete dar mais notícias em breve. A nota macabra é o pedido de transferência de Uam Sambu, falecido há cerca de seis meses, apeteceu-me não responder, mas era indispensável esclarecer e pugnar por um substituto. O furriel Pires, Bacari Soncó e Queta Baldé foram louvados pelo o Comandante Militar.

Tinha acabado de jantar quando chegou Amadu Só, fula do Cossé, estatura média, cara cheia de cicatrizes, linda pronúncia de português, riso aberto, aprumo incomum. Fez-me continência com um grande estalar de calcanhares, pediu-me para o ajudar com uma viatura, tinha a mulher e bagagem no cais, seguiu depois para uma das moranças alugadas pelo Rendeiro, junto da rampa para o quartel. Conversámos, esteve em Gandembel, um quartel já abandonado pelas nossas tropas, considerado como posição insustentável. Bambadinca está sob invernia, as bolanhas alagadas, as noites a esfriar e as manhãs de calor sufocante. Albino Amadu Baldé, o Príncipe Samba, prontificou-se a dar aulas aos mais atrasados, coxeia, é impossível voltar à vida operacional. Quanto a furriéis, estou neste momento sozinho: o Cascalheira seguiu para Bissau, o Pires está na CCS, o Ocante jaz na cama cheio de vermes, palúdico. Tenho, pois, o pelotão transfigurado mas sempre em actividade. De manhã passámos três horas na lama enquanto Spínola visitava os Nhabijões acompanhado por uma equipa da TV, ouvimo-lo três horas encharcados, debaixo de chuva, a fazer promessas ao megafone, recorrendo a intérpretes balantas e mandingas.


Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Bambadinca > 1970 > Espectacular vista aérea do aquartelamento, tirada no sentido leste-oeste, ou seja, do lado da grande bolanha de Bambadinca

Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Bambadinca > 1970 > Vista aérea da tabanca de Bambadincazinha (D), a sudoeste de Bambadinca, a escassas centenas de metros do centro (A)....Em primeiro plano, a estrada nova (C) para o Xime (posteriormente alcatroada) e, mais acima, a antiga estrada (B), paralela à pista de aviação.... Atravessando a tabanca de Bambadincazinho (D), seguia-se em estrada (picada...) até aos aquartelamentos de Mansambo, Xitole e Saltinho (E). Vê-se ao fundo a bolanha de Bambadinca... Era em Bambadincazinho que ficava a antiga Missão do Sono, em cujas instalações ficava, todas as secções, um Grupod e Combate para velar pelo bom sono dos seus senhores ofciais superiores do batalhão que dormim no quartel, a menos de um quilómetro...

Fotos: ©
Humberto Reis (2006)


O novo comando do BArt 2917 procura averiguar como trabalhamos. Ontem à noite apareceram dois majores no Bambadincazinho, de supetão, para saber se estávamos a cumprir a emboscada, chovia torrencialmente, estiveram pouco tempo, não percebi exactamente o que esperavam encontrar. É o ramerrão da época das chuvas, tudo alagado, temporais inusitados, a natureza desolada, mas o meio dia sempre com calor sufocante. O jovem Mamadu Soncó, filho do picador Quebá, anunciou-me por carta que quer vir estudar para Lisboa e pediu-me a morada de todos os meus familiares. Entrou-me no quarto, estavam lá o Abel Rodrigues e o Moreira que o ouviram atónitos: Mamadu Soncó recusa-se a voltar a Missirá, quer dormir aos pés da minha cama para ter a certeza que o levo para Lisboa, trouxe mantas e um saco com roupa... Arranjei uma questiúncula com o ajudante do capelão que me apanhou a roubar um pacote de velas na igreja, estamos com poucos petromaxes na ponte de Udunduma, gosto de adormecer a ler umas páginas. Esta é a época das chuvas em que leio aos bochechos “Vermelho e Preto”, de Stendhal, tempo de encontros e desencontros, ao amanhecer vamos picar a estrada até Amedalai, há uma coluna de vacas que parte para o Xime e daqui para Bissau, numa LDM chegará um novo contingente militar, irei conhecer um alferes de Ponta Delgada que andava no liceu quando lá fiz uma palestra. Passaram três anos, estamos certamente irreconhecíveis. A vida continua, até consegui que Serifo Candé e Ussumane Baldé vão passar férias a Bolama. Insistentemente, vou perguntando à Cristina se já conseguiu alugar casa, encontrou uma na Avenida do Brasil, três divisões a um preço módico, gostou, pede-me a opinião.

As descobertas surpreendentes de D. Violete

Estou a chegar do Xime quando recebo uma mensagem de D. Violete para ir à escola. Deixa as crianças a gralhar, avançamos para a varanda da sua casa, D. Ema sorri e anuncia que vai fazer um chá. D. Violete tem o entusiasmo estampado no rosto, sabe que me vai maravilhar, esclarece que os oincas aproveitaram a destituição de Abdul Indjai como régulo de Oio e do Cuor para ocuparem este regulado. Mostra-me o “Anuário Colonial” de 1916, retiro uma citação do antigo governador da Guiné, Carlos Pereira: “No regulado do Cuor, situado na margem direita do Geba, defronte de Bambadinca, habitavam até 1908, beafadas cujo chefe era Infali Soncó, destituído nesse ano. Depois de ter sido destituído, os beafadas abandonaram o Cuor, indo uns para o Oio e outros para Quínara. O governador dessa época investiu como régulo do Cuor o indígena Serua Abdul Indjai. Este chefe vinha de um grupo étnico diferente, não pôde conseguir povoar o Cuor com gente do seu grupo étnico. E como o território é pobre, foi abandonado por Abdul e ocupado imediatamente pelos oincas”. Não deixei de manifestar a minha estranheza com a presença destes oincas, seguramente que eles passaram a povoar o regulado na região ocidental, entre Madina e Gambiel. Tinha mais perguntas a fazer quando me encontrasse com Malã Soncó. Mas as novidades não ficavam por aqui, D. Violete encontrara elementos sobre a habitação dos mandingas num livro de 1948, uma projecto dirigido pelo comandante Teixeira da Mota. Levei para o meu quarto e passei para o meu caderninho viajante:

“Os mandingas constroem nas imediações das bolanhas usando como materiais o bambu, palha, madeira, corda e barro, aproveitando também a casca do ramo da palmeira e tiras de junco.

Constroem da seguinte maneira. Fazem uma circunferência que delimita o interior da habitação. Segue-se uma cerimónia que consiste em deitar uma pequena porção de água na extremidade superior do pau que serve de eixo ao desenho da casa. Nas extremidades abrem buracos e fixam-se prumos de bambu que vão formar um entrançado circular. Em seguida, arma-se o telhado constituído por bambus inteiros ligados entre si por anéis de tiras do mesmo material. A estrutura do telhado é armada entre quatro forquilhas. Sobre o telhado aplica-se a palha. Só então é que se procede ao revestimento da parede com lama amassada no próprio local”.

Amanhã devolvo este livro e os apontamentos inéditos sobre a Guiné da autoria do general Henrique Dias de Carvalho, que prestou relevantes serviços em Angola. Em, 1898, este oficial general foi convidado pelo Marquês de Liveri a organizar com Vítor Cordon a Companhia de Comércio e Exploração da Guiné. Viveu aqui cerca de dois anos, reuniu muitos dados científicos e estava a organizá-los quando faleceu. Não encontrei muitas novidades, mas fiquei surpreendido com alguns dados da navegação do princípio do século. Segundo ele, nas estatísticas de 1901 a 1904 figuram os vapores mercantes alemães, ingleses, franceses, portugueses e belgas servindo o comércio de Bissau a Bolama. Os números impressionam: alemães, 116; portugueses, 74; ingleses, 47; franceses, 11; belgas, 1. Começo a perceber o plano expansionista alemão, em directa rivalidade com franceses e ingleses na África Ocidental, no princípio do século XX. Tenho mais perguntas a fazer ao comandante Teixeira da Mota.


Guiné <> Sector L1 > Bambadinca > Cuor > Missirá > Pel Caç Nat 52 (1968/70) > "O mais controverso cozinheiro do mundo, Quebá Sissé, o Doutor (fotografia de Luis Casanova).


O julgamento de um homicida involuntário

“Doutor”, o mais amável dos cozinheiros, olha fixamente o juiz, tem o olhar líquido, os braços pendem, desajeitados, vem com a farda n.º 2, imaculada. Escondeu à pressa o seu cachimbo num dos bolsos das calças. Compreendo a tensão do “Doutor”, tudo isto é bizarro, ele recebe este julgamento com a maior das incompreensões. Pela segunda vez, venho depor a este tribunal.

Voltei ao Tribunal Militar de Bissau, cheguei ontem ao princípio da tarde, a maior parte dos amigos e conhecidos já cá não estão, cumpri o ritual da ida às compras, uns escassos livros, mais um disco, satisfiz a lista de encomendas dos soldados, abracei o Emílio Rosa no BEng 447, vou hoje jantar lá a casa, espero ainda ter tempo de ir até ao Centro de Estudos da Guiné Portuguesa. Nos CTT, tive êxito nas chamadas para a Cristina, a minha Mãe e o Ruy Cinatti. Este último perguntou-me se eu já estava em Lisboa. Quando partes, quando regressas, quanto mais tempo dura essa comissão? A todos procuro serenar, prometo ligar novamente à Cristina e à minha Mãe.

Bilhete Postal > Guiné Portuguesa > 118 – Vista aérea de Bissau. Fotografia verdadeira – Reprodução proibida. Edição Foto Serra. C.P. 239 – Bissau… Impresso em Portugal. Sem data.

Foto: © Beja Santos (2006). Direitos reservados. Foto alojada no álbum de Luís Graça > Guinea-Bissau: Colonial War. Copyright © 2003-2006 Photobucket Inc. All rights reserved.


Ao fim da tarde de ontem, tal como combinado, encontrei-me com o “Doutor” numa cervejaria ruidosa, ali para os lados do Comando Naval, o Mário. Seguimos pelo cais fora, procurei, de uma forma pausada, convencer Quebá Sissé que era indispensável explicar ao juiz que a G3 que vitimara Uam Sambu estava com a patilha na segurança, fora um puríssimo acidente a arma ter-se destravado quando ele subira para o burrinho, naquele malfadado amanhecer de 1 de Janeiro de 1970. Informei-o que tinha três louvores, o último dos quais realçava as suas qualidades humanas, o seu brio militar, a sua compostura e dedicação às tarefas que lhe foram incumbidas, ao longo de mais de quatro anos, era matéria a seu favor. O “Doutor” tudo ouvia, parecia que estava a interiorizar a sequência do interrogatório na sala do tribunal, em vez de um julgamento seria uma operação com perguntas e respostas. Convidei-o para jantar, fomos ao Solar dos 10, insisti que desse respostas directas e completas ao juíz, que fosse firme em invocar a sua total inocência e o seu arrependimento. Quebá Sissé estava tão desamparado, as linhas do rosto tão acentuadas, a tristeza tão à flor da pele desde que despejara quatro tiros na tábua do peito de Uam Sambu, que me senti na obrigação de o acompanhar até para os lados do Bairro da Tchada, onde ele pernoitou. E lá fui para o Vaticano III, ajoujado com os sacos das compras.

Estava uma manhã típica da época das chuvas quando entrei pelos corredores do tribunal onde se ajuntavam vários arguidos e testemunhas. Houve tempo para recapitular os possíveis quesitos, depois a chamada vociferante do meirinho separou arguidos e testemunhas, Quebá Sissé despediu-se súplice, por ele tínhamos entrado na sala de audiências de braço dado, ele ter-me-ia dado luz verde para aguentar o interrogatório pelos os dois. A atmosfera era sufocante e quando fui chamado estoirou um relâmpago sobre Bissau, ocorreu-me que acabara de subir ao palco como numa peça de teatro. Não exagero, tinha dormido bem, estava absolutamente convicto que o “Doutor” sairia ilibado, resolvi exceder-me no meu testemunho perante um juiz macambúzio e distraído. Sim, o comportamento cívico e militar de Quebá Sissé era inexcedível, amigo das crianças, a quem oferecia todas as sobras das nossas refeições, estóico na cozinha, a aguentar todas as críticas, voluntário para os serviços mais duros, largava a panela da sopa e seguia para os reforços ou para as colunas, sempre na vanguarda, com um sorriso, ninguém lhe conhecia acidez ou amargura. Sim, era amicíssimo de Uam Sambu, uma amizade comprovada, ninguém conhecia entre os dois mais do que amizade e só amizade. Sim, a nota de assentos espelhava os primores de carácter deste destemido e abnegado soldado, há muito que devia ser apontado pelos seus serviços distintos, a distracção era minha. Sim, dera ordens e confirmara que todas as armas estavam em segurança, fora um acaso brutal e fortuito que aquela patilha tivesse passado para a posição de fogo na altura em que Quebá Sissé subia para o burrinho. Sim, podia comprovar a consternação sentida por todos, Quebá Sissé e Uam Sambu eram a camaradagem personificada. A sentença só a conheci mais tarde, foram uns brandos dias de prisão, todas as atenuantes tinham sido tomadas em consideração, com aquela nota de assentos e com um comportamento tão irrepreensível pena mais suave não era possível. À porta do tribunal recebo o sol o cru na face, só penso em fugir. Tenho uma viagem no Dakota na manhã seguinte, Quebá Sissé segue para o seu quartel, o Depósito de Adidos, em Brá, despedimo-nos, dou-lhe garantias de que a sua vida militar não sofrerá mais castigos, já bastou o sofrimento daquela descarga de tiros no camarada, situação mais azarada não pode haver.

Abraço-o, nunca mais o voltarei a ver, ficará para todo o sempre a lembrança do seu sorriso meigo e inocente, dos meninos a quem ele saciava o apetite, do seu andar cambaleante como se estivesse permanentemente em risco de cair para o lado. Subitamente, cai chuva torrencial, em minutos o Bissau Velho ressuma de humidade, entro no Café Central para uma refeição ligeira, quero passar umas horas a ver papéis ao lado do Museu de Bissau, no Centro de Estudos da Guiné Portuguesa.

Descubro a figura grandiosa do alferes Geraldes

Não sei, claro que não posso saber, mas nunca mais lerei um texto tão épico acerca de um oficial destacado no Geba, ou onde quer que seja. Com a ajuda daquele diligente, prestável e silencioso funcionário do Centro de Estudos da Guiné Portuguesa, manuseio despachos oficiais, documentação enviada para a metrópole e referente às mais desvairadas situações. É no meio desta papelada, numa atmosfera de sufocante humidade, com as janelas a gotejar e a reflectir todas as luzes acesas da sala, que leio a carta do governador Pedro Ignacio de Gouveia para o Ministro da Marinha e Ultramar, com data de 4 de Maio de 1883:

“Ilustríssimo e excelentíssimo senhor,

Em princípios de Março, os fulas pretos agrediram a pequena povoação de São Belchior, na margem, onde existiam alguns grumetes de Bissau, gente pacífica, que faziam algum comércio com os poucos recursos de que dispunham.

Os fulas pretos, capitaneados por Deusá, queimaram as cubatas, levando prisioneiros, dez homens e duas mulheres, todos cristãos.

Depois deste ataque à povoação, foi Deusá com a sua corte para os lados de Geba, e parece que receando-se de algum agravo da parte do Governo Português, que ultimamente não tem poupado os díscolos, apresentou-se ao comandante do presídio de Geba, o alferes Francisco António Marques Geraldes, levando-lhe um presente de vacas e não lhe falando em nada do ocorrido.

Aquele oficial, sabendo então do procedimento do chefe em São Belchior, recusou-lhe e exigiu-lhe os prisioneiros que ele conservava em seu poder; o chefe intimidou-se e entregou os homens, pois as duas mulheres iam a caminho do Indornal, que fica a pouco mais de um dia proximamente ao SE de Gâmbia e dois dias proximamente ao NE de Selho.

Aqueles mulheres iam fazer naturalmente parte do serralho do régulo Dembel, potentado por entre os fulas pretos e pai do agressor Deusá.

Deusá desculpou-se com o chefe do presídio de Geba, dizendo ignorar que São Belchior pertencia aos portugueses, entregando três dias depois os prisioneiros, explicando a impossibilidade da entrega das duas mulheres.

Aqui principia a fase brilhante e digna do alferes Francisco António Marques Geraldes, participa o ocorrido para o seu imediato chefe, o comandante militar de Bissau, e dizendo que ia buscar as mulheres, estivessem onde estivessem, pedindo para ser relevado de não esperar autorização superior.

Põe-se este oficial a caminho, acompanhado apenas de um enfermeiro ao serviço na praça, António Mendes Rebelo, de José Lopes, comerciante em Geba, e quatro grumetes para conduzir a pequena bagagem da expedição, levando fazendas, tabaco e cola na diminuta importância 35$000 reis, para lhe facilitar a passagem nos caminhos das diferentes povoações que tinha de atravessar.

Aí vai este oficial, convencido da sua nobre causa, em condições excepcionais, sem cómodos, sem força, levando consigo a ideia inabalável de que devia exigir e havia de trazer as duas mulheres cristãs. Chegado à tabanca do régulo Umbucú, apresentou-se-lhe completamente uniformizado, dizendo quem era e qual era o seu destino. Este régulo, bastante poderoso e dominando o território vizinho de Geba, recebeu-o admiravelmente e ofereceu-lhe três cavalos para fazer a jornada e quatro fulas armados para o acompanharem, e seu filho para lhe servir de guia o obviar a algumas dificuldades de ocasião.

Andando nove a dez horas por dia, percorreu aquele trajecto sob um sol ardente, bebendo má água, seguindo tranquilo e cônscio de que realizava a sua nobilíssima ideia.

Expôs ao régulo Dembel o fim da sua visita, declarando-lhe as boas relações que tem havido entre o Governo Português e os da sua raça; que não poderia acreditar que ele, régulo, permitisse as correrias dos seus, o que obrigava o Governo Português a usar de represálias, concluindo por exigir as duas mulheres e uma indemnização para aqueles que sofreram na agressão em São Belchior.

O régulo ouvi-o no mais profundo silêncio a peroração do oficial e considerou-a caso tão melindroso que só depois de conferenciar com o seus “maiores” lhe poderia responder. No dia seguinte mandou-o chamar e disse-lhe que estava pronto a entregar as duas mulheres que o seu filho tinha mandado para ali; que a indemnização aos roubados não podia ser a que ele entendia dever satisfazer, pois havia pouco tinham sido devoradas pelas chamas duas populações importantes; que também ia mandar cavaleiros buscar seu filho para o repreender e proibir-lhe de fazer guerra sem ordem dele.

Convidou-o a esperar pelo regresso do filho.

Apareceu o filho Deusá e foi severamente repreendido pelo pai, entregando este as duas mulheres e 40$560 réis para distribuir pelos prejudicados de São Belchior.

O oficial saiu do Indornal sendo acompanhado por Mussá, sobrinho e sucessor do régulo Dembel e seu primeiro cabo de guerra, em quem deposita toda a confiança.

Causou espanto no Indornal a aparição do oficial, pois ali nunca esteve um europeu, chegando a pedir-lhe para descalçar as botas, duvidando se também o corpo era branco.

Ex.º Sr., Um oficial que assim procede, nas condições e fim nobre como realizou esta expedição, parece-me merecedor de uma remuneração condigna, que à munificência régia lhe apraza conceder. Este oficial levou a sua abnegação a querer custear as despesas à sua custa, não obstante os seus pequenos vencimentos, e só instado é que se resolveu amandar para a junta da fazenda a despesa feita.

Deus guarde a V. Ex.ª Palácio do Governo em Bolama, 4 de Maio de 1983. Pedro Ignacio de Gouveia, governador.”

Leio e releio, é impossível encontrar prosa mais bela para um gesto tão sincero. Devo estar emocionalmente a esgotar-me, não consigo reprimir as lágrimas, encontrei um alferes de Geba que não rouba, não intriga, não maltrata, arrisca tudo para ir buscar quem estava à sua guarda. O alferes Geraldes fez 54 léguas e cumpriu, entrou no mato onde nenhum branco fora. Anoiteceu e quando aquele diligente, prestável e silencioso funcionário me informou que estava na ordem de encerrar o serviço deve ter pensado que eu tinha recebido uma má notícia e disse-me: “Não se preocupe, trate de si, eu espero um bocadinho até se sentir melhor.

Sempre a pensar no alferes Geraldes e na sua viagem ao Indornal fui até à Sé de Bissau e depois segui para casa da Elzira e do Emílio Rosa.

Duas belas leituras entre Bissau e Bambadinca

Li “A Ásia a caminho da Europa”, de Franz Altheim. É um trabalho do pós-guerra, um ensaio sobre as especificidades deste dos continentes, no exacto momento em que as fronteiras asiáticas avançaram até ao Danúbio, já não estão nos Urais. O historiador reflecte sobre a grande China e como esta empurrou diferentes povos em direcção à Europa, no tempo em que o Império Romano do Ocidente colapsava. Fala dos hunos e de outros bárbaros e da fragilidade destes curtos impérios que irão desaparecer com as invasões árabes e Carlos Magno. Numa outra vertente do ensaio, fala do reino iraniano dos Sassânidas, quais as suas afinidades com a cultura ocidental, quais as suas diferenças no seu modelo feudal. As sucessivas deslocações da Ásia para a Europa foram fugazes, encontraram a resistência na concepção do Estado, a religião separou tudo radicalmente depois. Um belo ensaio para se perceber como a cultura não se rende aos caprichos do instante nem da conjuntura.



É um livro fascinante, foi um prazer revê-lo, 40 anos depois, com os reforços culturais entretanto chegados, fica-se até a perceber melhor o distingue Europa e Ásia, como viajam as ideias nestes continentes. Foi editado na prestigiada Enciclopédia LBL (Livros do Brasil Limitada), tradução de Aníbal Garcia Perira, s/data. Frantz Altheim escreve este admirável ensaio logo a seguir à derrota da Alemanha, em que tudo indicava uma redução territorial da Europa. A estrada da seda foi sempre o elo de ligação entre continentes, depois a China expandiu-se, deslocando povos em direcção ao Bósforo e ao Danúbio. Os Hunos estiveram prestes a conquistar o moribundo Império Romano do Ocidente, vieram depois as invasões bárbaras que permitiram ao cristianismo um desempenho religioso e temporal. Com o exemplo dos Sassânidas, ficamos a perceber como as grandes potèncias asiáticas, até aos árabes, tiveram um projecto que incluía pensamento europeu mas nada tinha a ver com a religião e a cultura que vieram a definir a Europa. Um grande ensaio sobre a especificidade dos dois continentes.





Leitura surpreendente foi também “O Tio prodigioso”, de Fredric Brown, um grande escritor de ficção científica que por vezes investe na literatura policial. Neste género, ele é bastante singular. Numa artéria do proletariado de Chicago, o linotipista Wallance Hunter aparece assassinado e roubado. O seu filho, adolescente e também trabalhador, vai pedir ajuda ao tio Ambrósio que trabalha num circo. O homicídio é um mero expediente para deambularmos em atmosferas verdadeiramente neo-realistas, gente de carne e osso, relações afectivas esquivas e sofredoras, dramas passionais e a sordidez do crime para usufruir os benefícios de um seguro de vida. Ambrósio e o seu sobrinho Eddie, que não se viam há um ror de tempo, afeiçoam-se. Eddie larga o seu trabalho e vai para uma banda do circo, feliz por tocar no seu trombone de profissional. Um policial muito diferente de tudo quanto tenho lido até agora.




N.º 56 da Colecção Vampiro, capa de Cândido Costa Pinto, tradução de Mário Quintana revista por Lima de Freitas. Hoje não seria classificado como romance policial e memo na época denota as preocupações sociais como as obras de John Dos Passos ou John Steinbeck. Em meio proletário, em Chicago, Wallace Hunter, é assassinado num beco. Ed, o filho, pede ajuda ao tio Ambrósio que trabalha num parque de diversões. Os dois vão procurar, em paralelo com a ionvestigação policial, descobriri o criminoso. O móbil é um seguro de vida envolvendo a madrasta de Ed e um amigo de Wallace. A estrutura do romance é muito simples, viva e directa. Houve um crime que aproximou tio e sobrinho, Ed abandona tudo e todos e vai trabalhar com o tio Ambrósio no parque de diversões, este oferece-lhe um trombone de profissional. Um bom Fredric Brown, um grande escritor eclético, ainda hoje uma referência na ficção científica.




Em Bambadinca fico a saber que o mês de Julho, à porta, vai ser passado entre a ponte de Udunduma, curtas estadias nos Nhabijões e muita segurança diária nos trabalhos do alcatroamento da estrada Xime-Bambadinca. Vou conhecer o engenheiro Semedo e uma face terrífica do ódio racial. O melhor é contar já a seguir.
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Nota de CV

Vd. último poste da série de 12 de Setembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3195: Operação Macaréu à Vista - II Parte (Beja Santos) (43): Um grande ataque a Demba Taco

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