quinta-feira, 11 de setembro de 2008

Guiné 63/74 - P3194: Historiografia da presença portuguesa em África (7): Alf Marques Geraldes, um homem de honra e de carácter (Beja Santos)

Um grande militar da Guiné: Alferes Francisco António Marques Geraldes

por Beja Santos (1)

Durante largos meses, ao longo dos dois últimos anos, frequentei regularmente a biblioteca da Sociedade de Geografia de Lisboa que, a par da Biblioteca Nacional e do Arquivo Histórico Ultramarino, possui um valioso repositório de documentação sobre a nossa presença em África.

A Sociedade de Geografia tem uma particularidade: para além dos mapas, artigos museológicos, doações de investigadores, possui publicações próprias de uma importância inconfundível para se conhecer o nosso pensamento sobre as colónias.
A Instituição foi fundada no século XIX e ninguém ignora que teve uma grande importância na procura de fundamentação para a nossa presença no chamado Império Ultramarino. As primeiras décadas de sua actividade têm uma importância extrema e obrigatória para compreender a mentalidade do político, do militar, do colono e do investigador dessas partidas do mundo que pretendíamos ver associadas à História de Portugal e defendidas da cobiça das novas potências coloniais. É preciso lá ir e estudar. Atraído por essa dimensão das mentalidades da época, e para procurar contextualizar o que fazíamos bem como o que pensavam os portugueses da época da e sobre a Guiné, no último quartel do século XIX, procurei ler com a maior atenção o boletim da Sociedade de Geografia de Lisboa.

Durante essas leituras deparei-me com um texto extraordinário, diria inconfundível, na dimensão da escrita, na consagração de um evento que moldou um herói. Não resisti a adaptar partes do documento ao livro O Tigre Vadio, simulei uma visita ao Centro de Estudos da Guiné Portuguesa, o que efectivamente aconteceu é que me emocionei com a estatura do militar, com a beleza do documento, os sentimentos genuínos e a pujança de valores que lhe estão subjacentes. Por tudo isso, não resisto a passar para o blogue o documento na sua íntegra. Ele está publicado no Boletim da Sociedade de Geografia, 3ª Série, 1882. Diz o seguinte:


Ilustríssimo e excelentíssimo senhor,

Em princípios de Março, os fulas pretos agrediram a pequena povoação de São Belchior, na margem direita do Geba, onde existiam alguns grumetes de Bissau, gente pacífica, que faziam algum comércio com os poucos recursos de que dispunham. Os fulas pretos, capitaneados por Deusá, queimaram as cubatas, levando prisioneiros, dez homens e duas mulheres, todos cristãos.

Este ponto fica sob a jurisdição imediata do presídio de Geba e no concelho de Bissau.

Depois deste ataque à povoação, foi Deusá com a sua corte para os lados de Geba, e parece que receando-se de algum agravo da parte do Governo Português, que ultimamente não tem poupado os díscolos, apresentou-se ao comandante do presídio de Geba, o alferes Francisco António Marques Geraldes, levando-lhe um presente de vacas e não lhe falando em nada do ocorrido.

Aquele oficial, sabendo então do procedimento do chefe em São Belchior, recusou-lhe e exigiu-lhe os prisioneiros que ele conservava em seu poder; o chefe intimidou-se e entregou os homens, pois as duas mulheres iam a caminho do Indornal, que fica a pouco mais de um dia proximamente ao SE de Gâmbia e dois dias proximamente ao NE de Selho.

Aquelas mulheres iam fazer naturalmente parte do serralho do régulo gentílico Dembel, potentado entre os fulas pretos, e a que todos o obedecem, e pai do agressor Deusa, ou então trocadas por vacas, conforme os usos do gentio.
Deusá desculpou-se com o chefe do presídio de Geba, por atacar aquela povoação, dizendo ignorar que São Belchior pertencia aos portugueses, entregando três dias depois os prisioneiros, explicando a impossibilidade da entrega das duas mulheres, aliás que lhe seriam também apresentadas.

Aqui principia a fase brilhante e digna do alferes Francisco António Marques Geraldes, comandante do presídio de Geba; participa o ocorrido para o seu imediato chefe, o comandante militar de Bissau, e dizendo que ia buscar as mulheres, estivessem onde estivessem, pedindo para ser relevado de não esperar autorização superior, pelo receio de que, esperando chegasse tarde, receio fundado, pois no dia seguinte à sua chegada ao Indornal já estariam trocadas por vacas, segundo os ajustes feitos.

Põe-se este oficial a caminho, acompanhado apenas de um enfermeiro ao serviço na praça, António Mendes Rebelo, de José Lopes, comerciante em Geba, e quatro grumetes para conduzir a pequena bagagem da expedição, levando fazendas, tabaco e cola na diminuta importância 35$000 reis, para lhe facilitar a passagem nos caminhos das diferentes povoações que tinha de atravessar.

Aí vai este oficial, convencido da sua nobre causa, em condições excepcionais, sem cómodos, sem força, levando consigo a ideia inabalável de que devia exigir e havia de trazer as duas mulheres cristãs, que abusiva e violentamente foram arrebatadas dos seus lares. Chegado à tabanca do régulo Umbucú, apresentou-se-lhe completamente uniformizado, dizendo quem era e qual era o seu destino. Este régulo, bastante poderoso e dominando o território vizinho de Geba, recebeu-o admiravelmente e ofereceu-lhe três cavalos para fazer a jornada e quatro fulas armados para o acompanharem, e seu filho para lhe servir de guia o obviar a algumas dificuldades de ocasião, que em seu trajecto lhe aparecessem.

Andando nove a dez horas por dia, percorreu aquele trajecto (cerca de 54 léguas) sob um sol ardente, bebendo má água, seguindo tranquilo e cônscio de que realizava a sua nobilíssima ideia. Atravessou o rio de Farim dia 15, dois dias a jusante desta praça, onde é estreitíssimo e obstruído de paus, de difícil navegação, e no dia seguinte o rio Casamansa, a maior distância de Selho, também a jusante, chegando no dia 16 às 8 horas da noite ao Indornal.

No dia seguinte, expôs ao régulo Dembel o fim da sua visita, declarando-lhe as boas relações que tem havido entre o Governo Português e os da sua raça; que não poderia acreditar que ele, régulo, permitisse as correrias dos seus, o que obrigava o Governo Português a usar de represálias, como já tinha procedido para com os fulas forros, beafadas e todos que praticassem violências com gente sossegada, que apenas trata do seu comércio, concluindo por exigir as duas mulheres e uma indemnização para aqueles que sofreram na agressão em São Belchior.

O régulo ouviu no mais profundo silêncio a peroração do oficial e considerou-a caso tão melindroso, que só depois de conferenciar com os seus “maiores” lhe poderia responder. No dia seguinte mandou-o chamar e disse-lhe que estava pronto a entregar as duas mulheres que o seu filho tinha mandado para ali; que a indemnização aos roubados não podia ser a que ele entendia dever satisfazer, pois havia pouco tinham sido devoradas pelas chamas duas povoações importantes, como o próprio oficial presenciou, e daí grandes despesas a fazer para abrigar os seus vassalos; que também ia mandar cavaleiros buscar seu filho para o repreender e proibir-lhe de fazer guerra sem ordem dele, e que nunca pudesse indispô-lo com o governo português.
Convidou-o a esperar pelo regresso do filho.

No dia 24 apareceu o filho Deusá e foi severamente repreendido pelo pai, entregando este as duas mulheres e 40$560 réis para distribuir pelos prejudicados de São Belchior.

O oficial saiu do Indornal sendo acompanhado por Mussá, sobrinho e sucessor do régulo Dembel e seu primeiro cabo-de-guerra, em quem deposita toda a confiança. A este ofereceu o alferes Geraldes uma espingarda de repetição que possuía, como presente dos seus bons serviços. Mussá declarou que em quaisquer circunstâncias que o governo português carecesse dos seus serviços, que podia contar com ele e com toda a sua gente, cuja força é superior a 6000 homens.

No dia 26 saiu às 3 horas da tarde do Indornal, seguindo o mesmo itinerário, tendo sido, tanto na ida como no regresso, admiravelmente recebido pelos povos onde passou.
Causou espanto no Indornal a aparição do oficial, pois ali nunca esteve um europeu, chegando a pedir-lhe para descalçar as botas, duvidando se também o corpo era branco.

Exmº Sr., um oficial que assim procede, nas condições e fim nobre como realizou esta expedição, parece-me merecedor de uma remuneração condigna, que à munificência régia lhe apraza conceder. Este oficial levou a sua abnegação a querer custear as despesas à sua custa, não obstante os seus pequenos vencimentos, e só instado é que se resolveu a mandar para a junta da fazenda a despesa feita, que importa apenas 70$000 réis.

Pedindo toda a atenção de V. Ex.ª para o serviço relevante que o alferes Francisco António Marques Geraldes acaba de prestar ao país, entendo cumprir o meu dever levando ao conhecimento de V. Ex.ª tão relevante serviço.

Deus guarde a V. Ex.ª Palácio do Governo em Bolama, 4 de Maio de 1883.

Pedro Ignacio de Gouveia, governador.

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Nota de BS:

Marques Geraldes continuou a prestar relevantes serviços à Guiné, foi um destemido combatente e responsável colonial. Limitei-me aqui a transcrever uma carta elaborada com primores literários e revelando um nobre carácter, de acordo com as pautas da época.

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Nota dos editores:

(1) Beja Santos (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70).

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