terça-feira, 2 de setembro de 2008

Guiné 63/74 - P3162: Estórias do Juvenal Amado (15): Adeus, até ao meu regresso

1. Mensagem de Juvenal Amado, ex-1.º Cabo Condutor da CCS/BCAÇ 3872, (Galomaro, 1972/74), com data de 21 de Agosto de 2008, com mais uma das suas estórias (*), desta feita, com uma pequena ficção que ilustra a mágoa de quantos, já casados e com filhos, tudo deixaram para combater numa guerra que se travava naquelas longínquas e desconhecidas terras de África.

Caros camaradas Carlos, Virgílio, Luís Graça e restante Tabanca

Cá vai mais uma pequena estória, embora uma ficção, que se repetiu vezes sem conta ao longo dos anos de Guerra.

Como digo na introdução, ela surge da correspondência mantida com o nosso camarada Vasco Joaquim (**).

Ele pertenceu ao BCAÇ 2912 que nós fomos render. Algumas das fotos para além de ilustrarem a estória, servem também de documento histórico, onde são mensionados os nomes dos camaradas que morreram nas Duas Fontes, em 1 de Outubro de 1971.

Deixo ao teu critério as fotos que entenderes usar.

Um abraço a todos os camaradas que já eram casados ou não
Juvenal Amado



2. Introdução

Casado desde os vinte anos, ela com dezoito e após 40 anos de matrimónio, já com cinco filhos, a forma que ele fala do grande sofrimento que foi a separação durante os anos que esteve na Guiné, mais precisamente em Galomaro, (BCAÇ 2912 de 1970 a 1972), é elucidativa do drama que o atingiu com a separação.

Também me levou a recordar uma situação passada com o meu camarada Lourenço Periquito, que também já era casado e tinha um filho quando embarcou para a Guiné.

O Lourenço todos os dias escrevia e recebia carta da mulher. A dada altura essa corrente de escrita quebrou-se, pois o nosso camarada deixou de receber as cartas da esposa. O nosso camarada estranhou, mas lá ficou esperando sem dizer nada a ninguém.

Os dias e as semanas foram passando, o correio não chegava. O desespero levou a umas cervejas a mais, o nosso camarada soltou o seu drama dando largas à sua dor.

Falou-se com o Comandante e a partir daí, logo ele recebeu noticias de casa. Também a esposa estava aflita, pois não sabia como contactar o marido. (Telemóveis vieram muitos anos depois).

O incidente foi motivado pelo carteiro que fazia aquela zona ter ido de férias e o que o substituiu, nunca ter levantado o correio da caixa que ficava no pequeno povoado.

O Lourenço recebeu de uma só vez a correspondência de quase um mês, e era vê-lo devorar as cartas com a felicidade estampada no rosto.

Embora esta estória tenha sido gerada pelo testemunho do nosso camarada Vasco, que confidenciou que tanto ele como a esposa, numeravam os aerogramas para terem a certeza que não perdiam nenhum, é intenção minha dedicá-la a todos os que viveram situações semelhantes.

Os dois casos têm final feliz.

Fotografia de casamento do nosso camarada Vasco Joaquim, mas que podia ser de qualquer um dos muitos militares que deixaram as suas esposas para ir combater.
Foto: © Vasco Joaquim (2008). Direitos reservados.


3. Adeus até ao regresso
Mais uma estória de amor

Olho os teus cabelos espalhados na almofada.

Nunca te disse quanto te amo. Na penumbra, o meu olhar desce pela curva do pescoço, ombros até ao arredondado dos seios. Finalmente adormeceste, após a longa vigília que prolongou o amor feito de desespero e ansiedade, pela partida próxima.

O teu corpo nú, encostado ao meu, tão perto da despedida. Acaricio-te a pele macia, mexes-te ligeiramente sem acordar.

Volto a olhar a curva do teu rosto sereno, de vez em quando atravessado por um leve franzir, como se uma preocupação teimasse em não desaparecer.

Algumas horas nos separaram dos dois anos em que possivelmente nunca nos veremos.

Antevejo a dolorosa despedida, não com um até já ou um até logo, mas sim com um até qualquer dia.

Acordo-te suavemente. Abres os olhos e sorris, mas logo o sorriso é substituído pelo pânico:

- Já está na hora? - Perguntas aflita.

- Sim tenho que me preparar, não posso perder o comboio - respondo.

Tinha sido um acto de loucura termo-nos casado antes de eu ter sido mobilizado. Nem casa tínhamos, por isso o termos ficado em casa dos meus pais, ocupando o meu quarto de solteiro, rodeados dos meus livros e discos.

Depois da minha partida, voltará para casa dos pais dela, onde se sentirá mais apoiada.

São tempos conturbados estes. O nosso horizonte é limitado pelo o fantasma da guerra.

Aquele trocar de olhares no baile, o convite mudo para dançar, fez-me ficar preso à tua juventude e guardá-la para mim, nesse momento único.

Beijámo-nos sem parar. Os lábios sabem a sal.

- Vou-te escrever todos os dias.

Os sacos pesam como chumbo, ou se calhar são os meus braços que os não aguentam. A despedida é mais violenta que eu alguma vez imaginei.

- Não chores. Não quero guardar de ti esta ultima imagem.

- Todos os dias quero receber carta tua e eu todos os dias te respondo. Prometes?

- Prometo - respondo, não conseguindo afastar-me daquele abraço.

Fica à porta, parece mais pequena. Está frio, mas não parece dar por ele.

Terei esta imagem dela no combóio, nas árvores, nos rios, nas núvens e nos momentos de solidão.

Desejarei tê-la comigo ao deitar e ao acordar. A saudade vai-me perseguir cada dia e cada hora até ao intolerável.

O navio já está à espera nos Cais. O Tejo está cinzento e um manto de neblina paira sobre ele.

A cidade dorme.

Não avisei do dia do embarque. Não seria capaz de suportar outra despedida.

Entro para o barco, estou cheio de frio, não tem conta os cigarros que acendi. Olho para o Cais. Há muitos familiares dos meus camaradas. Foram mais corajosos do que eu.

O barco parece estar inclinado, pois todos nos agrupamos do lado do Cais. Ouvem-se as sirenes e aqueles cabos que ainda nos ligavam a terra já estão soltos. Os gritos e os assobios dos meus camaradas enganam a angustia.

Muitos dos pais vieram a Lisboa pela primeira vez. Uma ocasião para ser recordada pela tristeza.

Vejo o teu rosto em todas as jovens que se despedem com lenços a acenar.

Também eu aceno, despeço-me de ti em todas elas.

- Adeus até ao meu regresso meu amor

Juvenal Amado
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Notas de CV:

(*) - Vd. último poste da série de 10 de Agosto de 2008 > Guiné 63/74 - P3126: Estórias do Juvenal Amado (14): Morteiro no meio da Parada de Cancolim

(**) - Vd. poste de 9 de Agosto de 2008 > Guiné 63/74 - P3124: O Nosso Livro de Visitas (23): Vasco Joaquim, 1.º Cabo Escriturário da CCS/BCAÇ 2912 (Juvenal Amado/Carlos Vinhal)

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