segunda-feira, 1 de setembro de 2008

Guiné 63/74 - P3160: Não venho falar de mim... nem do meu umbigo (Alberto Branquinho) (5): (Des)temor...


Não venho falar de mim... nem do meu umbigo (5)
por Alberto Branquinho (*)

(Des)temor (**)

Amanhecia. Cacimbo muito espesso, agarrado às árvores, às ervas, ao chão. Os primeiros homens começavam a sair dos abrigos onde passavam as noites enterrados, a quatro e quatro, a cerca de metro e meio do chão. Os abrigos estavam cobertos de troncos de palmeiras, depois chapas de bidões e, por cima disto, uma espessa camada de terra. Vinham de gatas passando pelo buraco aberto para o lado interior do aquartelamento que estava, ainda, em construção. Dirigiam-se às valas, que serviam de sentinas, verter as urinas da manhã ou algo com mais consistência. Outros faziam flexões junto aos abrigos para desentorpecer o corpo ou movimentos de braços à frente e atrás para aquecer, entre bocejos e mais bocejos das noites mal dormidas, devido aos consecutivos ataques nocturnos.

Na cozinha – que era um buraco no meio do aquartelamento, parcialmente coberto com chapa de zinco – alguém tentava acender o lume. Uma chama rasgou a espessura do cacimbo. Imediatamente e não muito longe, ouviu-se gritar, em sotaque crioulo:
-Fogo!

O grito rasgou a quietude da manhã e, imediatamente, rebentou uma fogachada fortíssima (e próxima) de armas automáticas e lança-granadas. Os utentes das sentinas correram desesperadamente para os abrigos, com as calças nas mãos. Formou-se imediatamente uma nuvem de pó e fumo, acompanhada do habitual cheiro intenso das explosões. Apesar de ser dia, viam-se as chamas de boca das armas e as balas tracejantes. Os morteiros, instalados no centro do aquartelamento, pouco demoraram a responder. As G-3 eram usadas através das seteiras dos abrigos, deixadas entre o chão e o primeiro tronco de palmeira.

O alferes sentiu passos por cima do seu abrigo e a terra que o cobria começou a escorregar, quase tapando a seteira. Alguém, colocado em cima do abrigo, despachava as munições de uma metralhadora em forte cadência de tiro, quase sem parar. A metralhadora parou.

O alferes espreitou pelo buraco do abrigo e viu um vulto no meio do pó, fumo e cacimbo que insultava:
- Dispara essa merda, cabrão! Dá cá isso!

O alferes berrou-lhe:
- Vai lá para dentro! Lá para dentro!

Lá fora ouviu gritar:
- Ajuda aqui.

Começou a entrar pelo buraco terra arrastada pelo sopro e pelo cone de fogo das granadas de bazuca. Quando o fogo quase tinha cessado, havendo somente disparos ao longe, o alferes saiu. Uma gritaria infernal vinha de dentro dos abrigos. Os homens começaram a sair.
- Quem era o gajo que andava cá fora?

Várias cabeças se voltaram numa só direcção.
- Eras tu que estavas ali em cima com a metralhadora?
- Sim, meu alferes.
- Não voltas a fazer uma coisa dessas!

Embaraçado, como uma criança apanhada a fazer asneiras, esclareceu:
- Ó … meu alferes… eu estava cheio de medo, carago!
__________

Notas de vb:

(*) Alberto Branquinho foi alferes miliciano na CART 1689 (1967/69). Foi um dos construtores do quartel de Gandembel e do de Gubia /Empada. Fez, além disso, "várias movimentações terrestres, fluviais e costeiras para outros quartéis-base de operações conjuntas (por ex., Bambadinca, Buba, Bedanda, Bafatá, Banjara)".

(**) Vd. poste anterior desta série:

22 de Julho de 2008 > Guiné 63/74 - P3081: Não venho falar de mim... nem do meu umbigo (Alberto Branquinho) (4): Os meninos à volta da fogueira...

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