quarta-feira, 20 de agosto de 2008

Guiné 63/74 - P3142: História de Vida (15): Para que se faça história (Jorge Fontinha)

1. Em 19 de Agosto, chegou até nos esta História de Vida do nosso camarada Jorge Fontinha, ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 2791, (Bula e Teixeira Pinto, 1970/72) (*).

Este é um relato do início da guerra colonial em Angola, em que as primeiras vítimas foram civis indefesos, que apenas tinham cometido o crime de ir para aquelas paragens em busca de um futuro melhor.

Seriam estas pessoas os verdadeiros ocupantes e opressores? Ou seriam também elas vítimas de um regime que não olhava a meios para conseguir os seus fins?

Podemos perdoar a quem com armas na mão combateu o inimigo armado. Não podemos nunca esquecer e perdoar o inimigo que a sangue frio assasssinou pessoas indefesas.
CV


2. PARA QUE SE FAÇA HISTÓRIA

Por Jorge Fontinha

Iniciei a minha participação no Blog como deveria. Fui militar na Guiné e não faria sentido iniciar a série Estórias de Jorge Fontinha (**), que não fosse começando por contar o meu baptismo de fogo, como tal.

Permitam-me agora e por uma só vez, voltar alguns anos atrás e contar a verdadeira história que me levaria a constituir-me voluntário para o curso de Operações Especiais que frequentei em Lamego, no 1.º Turno de 1970, com o saudoso Capitão Valente, então Comandante daquela Unidade em Penude.

Os factos que vou relatar vão por ventura fazer pensar muito boa gente, todavia eu não poderia deixá-los no esquecimento da História e sobretudo por respeito à memória do meu único irmão o FERNANDO ALEXANDRE VENTURA FONTINHA…

Assassinado em Nambuangongo em 15 de Março de 1961. Tinha dezoito anos de idade e era paralítico dos membros inferiores

A minha história sobre a Guerra do Ultramar é iniciada precisamente no início do ano de 1961.

Tinha eu 12 anos. Havia nascido no Ambriz (Angola) em 28 de Outubro de 1948. O meu pai era Guarda-Fiscal naquela vila piscatória e, no início dos anos 50, adquiriu uma fazenda que viria a explorar até ao dia 15 de Março de 1961, durante cerca de 10 anos.

Era situada no centro do triângulo formado por Zala, Quipedro e Nambuangongo, fazendo parte do Posto Administrativo desta última.

Nos primeiros meses de 1961, encontrava-me em Luanda frequentando o Colégio dos Padres da Missão de S. Paulo, bairro onde sempre residi, quando não estava na fazenda com o meu pai e o meu irmão, 6 anos mais velho que eu. A minha mãe havia morrido em 1953, vítima de biliosa, tendo sido sepultada no cemitério de Nambuangongo.

Família em Nambuangongo por volta de 1952. Os meus pais nos extremos, eu sentado no capô da viatura. O meu irmão de pé vestido de branco.

Fotos e legendas: © Jorge Fonti (2008). Direitos reservados.

Naqueles dias do início do ano de 1961, lembro-me de ouvir na rádio e opinião pública, o ataque ao Santa Maria (1) e mais próximo, o ataque às cadeias de Luanda. Lembro-me da perseguição a fugitivos da mesma e de andar, juntamente com outros miúdos, nas Barrocas do Miramar, que nós conhecíamos muito bem, a pesquisar os esgotos que ali desaguavam!... No início, para nós miúdos do Bairro, era apenas uma aventura inocente e do conhecimento de longas brincadeiras nas redondezas do Cinema Miramar, na busca constante de furar o sistema para irmos vendo os filmes por entre as árvores e arbustos.

Até que se dá o 15 de Março. Sem saber nada do que tinha acontecido na fazenda. Só lá para o dia 20 é que tive notícias. As piores.

Chegam os primeiros sobreviventes e entre eles o meu pai, meio despido e descalço, na altura com 51 anos de idade, desfigurado e desfeito no seu íntimo. Pegou em mim e esteve uma eternidade, agarrado a chorar...


Os acontecimentos

Eram cerca das 4 horas da tarde do dia 15 de Março de 1961. A essa hora o meu pai encontrava-se a descansar no quarto, quando se apercebeu que algo se está a passar lá fora. Levanta-se, vem em direcção à porta e verifica que praticamente todos os empregados europeus, nos quais se encontrava uma senhora que desempenhava as funções de governanta e seu filho de 8 a 9 anos, juntamente com o marido, motorista do camião, se encontram barricados atrás da porta que está a ser violentamente empurrada e cortada à catanada. Logo o meu pai constata a ausência do filho Fernando...

De repente, a porta desaba e por milagre ou não, um dos empregados barricados surge de catana em punho e decepa um dos assaltantes, que apenas temiam morrer dessa forma e não a tiro, que não era considerada morte... De imediato, o grupo assaltante recua assustado, dando tempo a que todos fujam em direcção à camioneta, que previamente tinha sido preparada para transportar uma carrada de madeira para a Serração que servia de apoio àquela fazenda. É quando o meu pai dá com o meu irmão a agonizar na cabine da camioneta, com uma catanada na testa e outra no peito!...

Algum tempo antes destes acontecimentos, enquanto se tratava dos preparativos do transporte de madeira, o meu irmão que era paralítico dos membros inferiores, juntamente com o motorista e outros empregados, estavam em volta do camião. A senhora governanta que era esposa do motorista, também assistia, quando se apercebe duma certa movimentação junto ao capim. Julgando tratar-se de algumas galinhas que para ai tenham ido, começa a deslocar-se para a zona. De imediato um grupo compacto de guerrilheiros da UPA, de catana em punho, se desloca em direcção ao grupo, pondo naturalmente este em fuga para o interior da casa, aí se barricando atrás da porta de madeira.

Havia todavia quem não podia locomover-se com tamanha rapidez... restou ao meu irmão tentar proteger-se no interior da cabina da camioneta. Foi a sua última morada enquanto vivo...

Naquele momento, o mais urgente seria fugir de camioneta, mesmo carregada de madeira, que apesar de tudo, andava mais rápido que os guerrilheiros!

Seguiram para Nambuangongo que distava cerca de 20Km da Fazenda, com a intenção de pedir ajuda. Nada feito, esta já estava ocupada. Restava a saída para o Onzo, tendo sido inviável lá chegar. A meio do percurso, árvores abatidas na estrada barraram o caminho. A única saída seria largar a camioneta e fugir para a mata. Foi o que fizeram. Por lá andaram 3 dias e 3 noites, até que se aperceberam da ajuda militar que se aproximava e aí saíram da mata e foram recolhidos. De imediato se dirigiram à camioneta para recolha do corpo do meu irmão. Esta estava incendiada e o corpo tinha desaparecido. Terão sido recolhidos restos mortais meses mais tarde, pelo Batalhão do Coronel Maçanita.

Refúgio em Portugal

Após estes factos, o meu pai e eu fomos para um centro de refugiados, situado na redacção dum Jornal, cujo nome me não recorda, próximo da Casa Mortuária de Luanda e refiro isto, porque em vez dos actuais apoios psicológicos, eu com 12 anos, fui convidado a ir reconhecer corpos esquartejados conforme estes iam chegando do mato...

Finalmente, nos primeiros dias de Maio chego a Lisboa, numa ponte aérea para senhoras e crianças que fizeram um percurso de 3 dias com escalas, em avião da Força Aérea.

Um abraço para a Tertúlia

Camarada
jorge Fontina

OBS:-Subtítulos da responsabilidade do editor

********************  

(1) - O ASSALTO AO "SANTA MARIA"

... Em Janeiro de 1961 deu-se o assalto ao paquete "Santa Maria", incidente que na época notabilizou a contestação ao Governo de Oliveira Salazar, e introduziu a prática, depois muito difundida internacionalmente, de sequestrar navios e aviões com fins políticos.
O "Santa Maria" havia largado de Lisboa a 9 de Janeiro de 1961 em mais uma das suas viagens regulares à América Central, fazendo escala no porto venezuelano de La Guaira no dia 20. Entre os passageiros embarcados neste porto, contava-se um grupo de 20 membros da DRIL - Direcção Revolucionária Ibérica de Libertação, organismo constituido por opositores aos regimes de Franco e Salazar, cujo comandante era o capitão Henrique Galvão, que embarcou clandestinamente no "Santa Maria" um dia depois, em Curaçau, com mais três elementos da DRIL. Galvão estava exilado na Venezuela desde Novembro de 1959, e em Julho de 1961 havia concluído os planos de assalto ao "Santa Maria". Fora escolhido este paquete por ser muito superior aos diversos navios de passageiros espanhóis que na altura faziam a carreira da América Central. O capitão Galvão pretendia deslocar-se no "Santa Maria" até à colónia espanhola de Fernando Pó, no golfo da Guiné, cuja tomada permitiria em seguida efectuar um ataque a Luanda e iniciar, a partir de Angola, o derrube dos Governos de Lisboa e de Madrid.
Horas depois da largada de Curaçau, o "Santa Maria" navegava rumo a Port Everglades, na Florida, com 612 passageiros e 350 tripulantes, sob o comando do capitão da Marinha Mercante Mário Simões da Maia, quando, precisamente à 1 hora e 45 minutos da madrugada de 22 de Janeiro de1961, os 24 homens de Henrique Galvão tomaram conta da ponte de comando e da cabine de TSF, dominando os oficiais do navio. O terceiro piloto João José Nascimento Costa ofereceu resistência aos assaltantes e foi morto a tiro. Pouco depois, o "Santa Maria" alterou o rumo para leste, procurando alcançar rapidamente o Atlântico. A 23 de Janeiro, o navio aproximou-se da ilha de Santa Lúcia e desembarcou, numa das lanchas a motor, 2 feridos graves com 5 tripulantes, comprometendo a possibilidade de atingir a costa de Africa sem ser detectado. No dia 25, o paquete cruzou-se com um cargueiro dinamarquês, traindo a sua posição, o que permitiu a um avião norte-americano localizar o "Santa Maria" horas depois. Finalmente a 2 de Fevereiro o "Santa Maria" fundeou no porto brasileiro do Recife, procedendo ao desembarque dos passageiros e tripulantes. Chegou a ser considerado o afundamento do paquete, mas no dia seguinte os rebeldes entregaram-se às autoridades brasileiras, obtendo asilo político, ao mesmo tempo que o "Santa Maria" voltava à posse da Companhia Colonial de Navegação.


Navio Santa Maria > Foto retirada do site Navios no Sapo, com a devida vénia

Os passageiros do paquete assaltado foram transferidos para o "Vera Cruz", que saiu do Recife a 5 de Fevereiro, chegando a Lisboa a 14 do mesmo mês, após escalar Tenerife, Funchal e Vigo. Por sua vez o "Santa Maria" largou do Recife a 7 de Fevereiro, entrando no Tejo, embandeirado em arco, a 16 e atracando a Alcântara...

... Independentemente dos aspectos políticos que na altura rodearam o caso "Santa Maria", este incidente acabou por fazer do navio o mais famoso dos paquetes portugueses. Embora o "Infante Dom Henrique" e o "Príncipe Perfeito" fossem mais recentes, o "Santa Maria" era um navio de prestígio por excelência, situação a que não era estranho o facto de ser o único navio de passageiros português a manter uma ligação regular entre Portugal e os Estados Unidos da América.

Coincidindo com o desvio do "Santa Maria", deflagraram a 4 de Fevereiro, em Luanda, incidentes graves, seguidos, em Março, do começo da guerra no Norte de Angola. O Governo de Lisboa decidiu enfrentar a situação, enviando a partir de Abril ràpidamente e em força importantes reforços militares. Esta decisão implicou, de imediato, a requisição de diversos paquetes e navios de carga afretados pelo Ministério do Exército para efectuarem o transporte de tropas e material de guerra. A utilização esporádica para este fim de navios de passageiros portugueses vinha já do século XIX, passando a partir de 1961 a constituir uma das principais ocupações permanentes dos paquetes portugueses...

in Paquetes Portugueses de Luis Miguel Correia, com a devida vénia

______________

Notas de CV:

(*) - Vd. poste de 11 de Agosto de 2008 > Guiné 63/74 - P3129: Tabanca Grande (82): Jorge Fontinha, Fur Mil Inf da CCAÇ 2791 (Bula e Teixeira Pinto, 1970/72)

(**) - Vd. poste de 18 de Agosto de 2008 > Guiné 63/74 - P3139: Estórias do Jorge Fontinha (1): O meu batismo de fogo e da CCAÇ 2791 (Jorge Fontinha)

4 comentários:

Anónimo disse...

Jorge Fontinha,
O Luis Graça, insiste que não deixemos que sejam outros a contar a nossa história.
E quando falas que foram guirrilheiros que mataram o teu irmão (fisicamente diminuido), não estás a contar a tua história.
Pois que aqueles que mataram trabalhadores brancos pretos e mestiços, mães pretas que tivessem filhos mestiços, bailundos (sul de angola, crianças despedaçadas contra as paredes...stop, não eram GUERRILHEIROS mas sim gente doutrinada em missões americanas, carregados de liamba, ao ponto de virem para cima das poucas armas dos poucos militares e civis que se conseguiram defender, aos gritos de que "BALA DE BRANCO É MAZA (ÁGUA), e morriam inocentemente e estupidamente, ao ponto de hoje em dia Angola está marcada e queiramos ou não, dividida, por esses acontecimentos que denotavam racismo, separatismo, e aquilo que nós chamámos nesse tempo, e JUSTAMENTE, terrorismo. Portanto se queres dignificar a palavra guerrilheiro, não atribuas esse nome àquela gente, porque aí ofendes muitos angolanos. E a ti tambem.
Antonio Rosinha

Anónimo disse...

:-(

abraço

urbano silva

Anónimo disse...

Se me é permitido discordar, apenas discordar, não ofender convicções políticas de ninguém, nunca em tempo algum, confundi GUERRIHEIROS da UPA AMOTINADOS e TREINADOS, não sei por quem, nem com que intenções, com COMBATENTES da FNLA, DO MPLA, DA UNITA, da RENAMO, da FRELIMO ou do PAIGC.A palavra guerriheiro, tem a interpretação que cada um lhe quizer atribuir.Já a palavra COMBATENTES OU MILITARES REGULARES, tem a que com dignidade se lhe pode efectivamente atribuir.
De interpretação de Português, nem os acordos Lusos,Africanos ou Brazileiros ainda chegaram a uma língua única, logo é desnecessário, na minha opinião, pretender alguém dar lições de Português, neste Blogue.Julgo que não é essa a intenção dos criadores e administradores deste Blogue.
Um abraço especial para o camadada António Rosinha.Tive imenso prazer em ler tudo o que encontrei,do que escreveu até á data.
Um abraço.

JORGE FONTINHA

Anónimo disse...

Caro Jorge Fontinha
Eu que choro de revolta:
-pelas injustiças sociais;
-por verificar que os valores morais de nada servem;
-por viver numa sociedade corrupta omde os hipócritas vencem sempre;
-pela mentira;
-pela "podridão" com cheiro a ranço...
Verifico que há "histórias de vida" que são uma verdadeira "lição de vida".
A sua (como tantas outras que aqui encontrei) é uma delas (e isto deve ser apenas uma pequena amostra!).
São estas histórias/lições que nos fazem reflectir sobre a pequenez da nossa tão fútil existência.Temos tanto para aprender!Mas para que isso aconteça é necessária uma qualidade que parece estar cada vez mais em desuso: a humildade.Uns têm-na, outros não.São estas histórias/lições que quando (infelizmente) vividas, moldam o carácter aos seus protagonistas.
O sofrimento (revolta) nem sempre leva a bom porto.Mas, no seu caso (e pelo pouco que de si conheço), atrevo-me a dizer,quiçá, o ajudaram a tornar-se um ser humano com umcarácter nobre.
O meu bem-haja e obrigado pela partiha.
A minha ignorância (felizmente) nestes temas de guerra não me permitem sequer opinar válida e condignamene.No entanto, e apesar de não ser da minha geração, deixo-lhe aqui um poema com o qual, certamente se identifica.Concerteza que já o conhece mas nunca é demais ouvir:

http://www.youtube.com/watch?v=A4nPJ-YYHBc

Muito respeitosamente;

JB