segunda-feira, 30 de junho de 2008

Guiné 63/74 - P3002: A Guerra estava militarmente perdida? (23). Comentário do Cor Amaro Bernardo.

Guiné - Guerra e Descolonização…

Por Manuel Amaro Bernardo

(…) É sabido que estes três G (Guidage, Gadamael e Guilege) estão associados à escalada da guerra, que se seguiu ao assassinato de Amílcar Cabral (20-1-1973) e precedeu a declaração (unilateral) de independência da Guiné-Bissau em 24-9-1973. Maio, Junho e Julho de 1973 foram três meses terríveis para as NT, cercadas em Guidage, Guilege e Gadamael. (…)
Luís Graça, no seu site, em 4-6-2008

Este destaque faz um resumo interessante em relação ao sucedido na Guiné no último ano de guerra (1973-74) decorrente no território. Até pela analogia feita com os três D do publicitado objectivo do MFA, no pós-25 de Abril: Democratizar, Descolonizar e Desenvolver.
Curiosamente, em Portugal, a "democratização" apenas seria conseguida em Novembro de 1975, contra as forças comunistas e totalitárias.
A "descolonização" seria desencadeada sem ter em conta os interesses dos portugueses residentes naquelas paragens e o "desenvolvimento" terá ficado muito aquém do desejável; decorreu de tal modo que forças de direita ainda hoje culpam o 25 de Abril, apesar de "tanta água ter passado por debaixo das pontes".

Vou repescar o tema tratado no site de Luís Graça, com uma polémica entre dois combatentes: Beja Santos e Graça de Abreu, de modo a poder adiantar mais uma opinião sobre este controverso assunto. Claro que a minha posição em relação ao primeiro poderá ter sempre algum reflexo menos isento, face à desajustada crítica que ele fez publicar sobre o meu último livro "Guerra, Paz e Fuzilamentos dos Guerreiros; Guiné 1970-1980" e que motivou uma resposta minha, dois dias depois, no mesmo site.

Antes disso, e dado o seu grande período de permanência na Guiné, recordo as posições tomadas pelo Major General Hélio Felgas, falecido há dias em Lisboa (e com textos também bastante divulgados no site de Luís Graça, numa conferência feita aos cadetes da Academia Militar, em 10-4-1970, após o seu regresso ao continente português. Transcrevo alguns destaques do extenso texto publicado nesse ano, na Revista Militar:

(…) O PAIGC é um movimento revolucionário de tendências sócio-comunistas. A sua estrutura, imitada da do regime guineense de Sékou Touré, baseia-se no sistema soviético da preponderância do partido sobre o governo.
No capítulo sobre as Nossas Tropas, a certa altura refere:
(…) Convém salientar que as unidades metropolitanas de reforço não se limitam a combater. Elas contribuíram para a melhoria que, em todos os campos, se nota hoje na Guiné.
Após quatro anos de permanência na Guiné, sempre no mato, que é onde se conhecem melhor os nativos, sou levado a chegar à conclusão que a Guiné progrediu mais nestes últimos 8 ou 9 anos que nos anteriores cinco séculos. E empenho nesta afirmação um pouco do meu orgulho de militar, pois é exactamente à presença dos militares que a nossa Guiné deve o seu actual impulso. (…)
E mais à frente, com maior ou menor optimismo, apresenta o ponto da situação naquele ano de 1970:
(…) Por motivos vários, entre os quais avulta a deficiência de informação pública, a situação na Guiné é em geral mal avaliada na Metrópole, havendo tendência para a considerar muito pior do que na realidade está.
De facto, na maior parte da Guiné, as populações fazem a sua vida normal, não havendo sinais visíveis da guerra. É o que acontece em todas as ilhas atlânticas (incluindo a de Bissau), em grande parte do “chão” dos Manjacos e na quase totalidade e na quase totalidade da massa continental do Leste.
No resto do território, o inimigo faz as suas incursões de surpresa, mas regressa logo ou às bases que tem no Senegal e na República da Guiné, ou aos refúgios das matas mais espessas.(…)

Curiosamente, cerca de dez dias depois desta conferência, dar-se-ia um agravamento na situação em relação às NT, devido à morte dos três majores (20-4-1970) e à não integração de todo o "chão" manjaco, como estava previsto acontecer.

Perspectivas sobre a guerra da Guiné

E a terminar Hélio Felgas afirmaria, com alguns aspectos promenitórios:

(…) Em nossa opinião, o PAIGC já deve ter compreendido que, a não ser que empregue meios, forças e tácticas diferentes, jamais poderá ganhar militarmente esta guerra.
(…) Admitimos que o PAIGC esteja realizando ou vá realizar novos e mais profundos esforços no sentido de tornar insustentável a nossa posição na Província.
Estes novos esforços serão desenvolvidos em todos os campos desde o diplomático ao militar. O colapso repentino do Biafra não pode deixar de favorecer o PAIGC, em especial quanto ao armamento. Outro tanto sucederá se a guerra do Vietname acabar, pois os contactos entre o PAIGC e o Vietcong já se encontram estabelecidos, como dissemos.
No entanto, se por um lado temos obrigação de admitir o reforço da actividade geral do inimigo – tanto mais que sabemos ele estar apoiado pela OUA e por grande parte dos países membros da ONU -, por outro lado não podemos deixar de reconhecer as tremendas dificuldades com que o PAIGC vai continuar a deparar se insistir em cumprir o programa que se propôs.
De facto, em primeiro lugar, há que contar com a nossa determinação em defendermos o solo cinco vezes centenário da Guiné Portuguesa. Em segundo lugar, é natural que, a um esforço maior do inimigo, respondamos com outro esforço também maior. E em terceiro lugar, não vemos como, nos anos mais próximos, o PAIGC terá possibilidade de levar a Cabo Verde a guerra que nos move na Guiné, dadas as características para nós favoráveis que o arquipélago apresenta.

Tal como salienta Luís Graça, a situação apenas viria a agudizar-se seriamente com o assassinato de Amílcar Cabral. Até essa altura os soviéticos não tinham querido arriscar entregar os sofisticados mísseis terra-ar Strella aos guerrilheiros do PAIGC, apesar de já terem sido anteriormente requisitados por este movimento. Aquando das cerimónias fúnebres daquele líder é que tal terá sido decidido e comunicado pela delegação soviética presente, como, de facto, aconteceu.
De qualquer modo, essas armas apenas serviram para desestabilizar a Força Aérea da Guiné durante algumas semanas (com as consequências graves nas evacuações e no restante apoio aéreo), pois, como refere Graça de Abreu, em 29-5-2008, desde Junho de 1973 até Abril de 1974 não foi atingida qualquer aeronave dentro do território. Ou os homens de Manecas dos Santos (PAIGC) não foram bons alunos na instrução ministrada na União Soviética ou os pilotos portugueses souberam actuar com eficiência e de acordo com novas exigências anti-aéreas.

No entanto, em 1972 tinha surgido um factor muito importante, que poderia ter conduzido ao fim da guerra, ainda em posição de alguma vantagem das NT em relação ao PAIGC. Tal seria completamente desprezado por Marcello Caetano, com a oposição do Governador da Guiné, António de Spínola. Amílcar Cabral, acedendo aos bons ofícios do Presidente do Senegal, Leopold Senghor, estaria, de facto, disposto a negociar directamente o cessar-fogo com a promessa de independência futura, num prazo a definir. Percebe-se que os defensores da continuação da guerra (dum lado e do outro) tenham apostado na eliminação física de Amílcar Cabral…

Considero que Beja Santos, durante a polémica sobre se a guerra estava ou não perdida militarmente, divagou bastante através de citações de entidades em vários livros, mas mais no âmbito das intenções e possibilidades do que da realidade vivida no terreno.
A notícia sobre o possível fornecimento dos aviões Migs ao PAIGC é bastante elucidativa… Poder-se-á afirmar que após a saída do General António de Spínola da Guiné (meados de 1973), voltou a ser conseguido um equilíbrio no potencial militar das duas partes, após as operações agressivas do PAIGC em Guidage, Guilege e Gadamael, em Maio/Junho.
Guilege fora abandonada, mas em Guidage e Gadamael, a partir dos finais de Junho, a situação melhorara consideravelmente. (Declarações dos Coronéis “Comando” Raúl Folques, Manuel Ferreira da Silva e Marcelino da Mata, no meu livro acima citado).

Aquele equilíbrio, existente por altura do 25 de Abril de 1974, seria confirmado por Aristides Pereira numa entrevista a Leopoldo Amado, em "O Meu Testemunho; uma Luta; um Partido; dois Países". Lisboa, Ed Notícias, 2003, como igualmente destacou Graça de Abreu.

Também, como refiro nesse trabalho, acompanho a tese explanada pelo General Almeida Bruno e realçada por Graça de Abreu:
"(…) a Guiné não estava perdida militarmente. A Guiné estava perdida porque a solução não era militar mas política e nós já tínhamos perdido (a oportunidade) da solução política (em 1972)".

Solução política negociada, como julgo ter acontecido com a generalidade deste tipo de guerras subversivas e de guerrilhas, na segunda metade do século XX, acrescentaria eu.

Uma Descolonização “inevitável” e apressada…

Para complementar o que atrás foi referido, passo a comparar descolonização ocorrida no caso português com a realizada pelos franceses na Argélia. Nesse sentido, recordo as declarações (numa entrevista que me concedeu), do homem culto e com grande estatura militar, que foi o General Passos Esmeriz e que prestou serviços relevantes na GNR no pós-25 de Abril. Afirmava ele (“Memórias da Revolução, Portugal 1974-1975”, Lisboa Ed. Prefácio, 2004):
(…) O soldado, desde que soube ter sido feita uma revolução em Lisboa e se ia para a descolonização, não mais combateu, enquanto que, com De Gaulle, na Argélia, se combateu até ao fim. Ele mandou quantificar as acções de um lado e do outro e dizia: "Só inicio os acordos quando houver equilíbrio de iniciativas".
Os acordos de Evian apenas se iniciaram quando esse equilíbrio se verificou. Numa situação que nenhuma parte tinha mais força do que a outra. Mas o soldado, lá, combateu até ao final. Eles ainda estavam agarrados à ideia de que a Argélia não podia deixar de ser francesa…

No caso português, os nossos militares não tinham qualquer ligação com os locais onde se encontravam. Conto-lhe um episódio que considero lapidar. Eu era Comandante de um Batalhão na Guiné, em 1963/65 e tinha chegado uma companhia da Metrópole. Lá estive a fazer aquele papel de circunstância, de dizer umas palavras de boas vindas e de apelo a cumprirem a sua obrigação militar. Encontrava-se presente um rapaz baixo, a quem perguntei de onde era oriundo. Resposta dele: "Sou de Alcafache. E estou satisfeito por vir conhecer terras estrangeiras".

A descolonização pode ser muito condenada, mas naquela situação tão complexa, com os factores que a condicionaram, talvez não pudesse ser feita de outra maneira.
Pode dizer-se que foi uma entrega… Mas, se quiséssemos impor outro modelo de descolonização, acabaria numa derrota militar, o que seria muito pior.
Houve outros factores exógenos para que a desmotivação das tropas fosse incentivada, alargada e aumentada. Desde o Rosa Coutinho à actuação, em Portugal, do PCP; mas o factor principal foi a desmotivação nacional… (…).

Agradeço a publicação deste texto no vosso site. Também endereço os meus sentidos pesâmes aos familiares do General Hélio Felgas, assim como aos de outros combatentes cujos falecimentos vêm ocorrendo e têm sido ignorados, pelas mais variadas razões…

E quando algum combatente, como já aconteceu neste site, em relação aos negros fuzilados pelo PAIGC, pergunta sobre essa vingança feita contra os outros, que também combateram do nosso lado - fuzileiros especiais, militares na generalidade e milícias -, além dos "Comandos" (20 oficiais, 29 sargentos e 4 soldados), apenas tenho a referir que as outras associações de combatentes, incluindo a recém-constituída em Bissau, Associação de ex-Combatentes das Forças Especiais da Guiné (patrocinada pelo Comandante Alpoim Calvão) devem fazer as necessárias investigações e listagens do pessoal vítima dessas atrocidades, tal como foi feito pela Associação de Comandos. Julgo que todos têm o direito de ter o seu nome no Monumentos aos Combatentes do Ultramar, no Restelo (Lisboa), já que foram fuzilados "apenas" por terem combatido por Portugal. E já têm duas bases de partida para essas investigações: as listagens de fuzilados, feitas por João Parreira, em 2006, e constantes do site de Luís Graça, e as várias relações por mim publicadas no livro atrás referido - "Guerra, Paz e Fuzilamentos dos Guerreiros, (…)", 2007.


Cor. Manuel Amaro Bernardo
Junho de 2008
__________

Nota:

1.Os nossos agradecimentos ao Cor Manuel Amaro Bernardo pelo envio do texto.
2. Fixação e adaptação da responsabilidade de vb.
3. Artigos relacionados em

21 de Junho de 2008 > Guiné 63/74 - P2971: o 10 de Junho visto pelo Cor Manuel Amaro Bernardo.

14 de Abril de 2008 > Guiné 63/74 - P2760: Notas de leitura (8): Guerra, Paz e Fuzilamentos dos Guerreiros... ou a guerra que não estava perdida (A.Graça de Abreu)

2 de Abril de 2008 > Guiné 63/74 - P2713: Notas de leitura (7): Guerra, Paz e Fuzilamentos dos Guerreiros: Resposta a um Combatente (M. Amaro Bernardo)

2 de Abril de 2008 > Guiné 63/74 - P2711: Notas de leitura (6): Guerra, Paz e Fuzilamentos dos Guerreiros, de M. Amaro Bernardo (Mário Fitas)

31 de Março de 2008 > Guiné 63/74 - P2706: Notas de leitura (5): Guerra, Paz e Fuzilamentos dos Guerreiros, de Manuel Amaro Bernardo (Mário Beja Santos)

30 de Novembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2318: Notas de leitura (4): Na apresentação de Guerra, Paz e Fuzilamento dos Guerreiros: Guiné 1970/80 (Virgínio Briote)

28 de Novembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2308: Notas de leitura (3): Guerra, Paz e Fuzilamento dos Guerreiros: Guiné, de Manuel Amaro Bernardo (Jorge Santos)

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