sábado, 14 de junho de 2008

Guiné 63/74 - P2938: Estórias do Juvenal Amado (11): Galomaro, Bambadinca, Cancolim e Gabu (Juvenal Amado)

Juvenal Amado
Ex-1.º Cabo Condutor
CCS/BCAÇ 3872
Galomaro
1972/74


1. Em 9 de Junho recebemos do nosso camarada Juvenal Amado mais uma das suas estórias.

Caro Carlos e restante Tabanca Grande
Fiquei impressionado com o relato das condições em que se encontra o nosso camarada Rodrigues.

Pelo o que eu me lembro dele, já naquele tempo era uma pessoa muito instável. Nunca deveria ter sido exposto às situações que passou na Guiné.

Não acredito que se vá a tempo de fazer algo por ele, mas bem haja o camarada que o foi ver e tentar ajudar.

Um abraço para toda a Tabanca
Juvenal Amado


2. Galomaro, Bambadinca, Cancolim e Gabu.
Por Juvenal Amado

A coluna vinda de Cancolim está parada do lado de fora do nosso destacamento. Em cima das viaturas, os homens daquela Companhia aguardam, já estão cheios de pó e suor.

Eu e o Borges já estávamos avisados de que seguiríamos integrados na coluna para Bambadinca, a fim de fazermos o reabastecimento.

Ao anoitecer do dia anterior, o Furriel Claudino, avisou-me para estar preparado com a minha viatura e que levantasse ração de combate para um dia.

Depois de carregarmos géneros alimentares em Bambadinca, seguiríamos para Cancolim.
Regressaremos quando o destacamento voltar a fazer coluna a Galomaro.
Desta vez, no regresso, traríamos dois grupos de pára-quedistas que ali tinham estado de reforço à Companhia.

A Companhia de Cancolim foi daquelas que não foram felizes. O número de ataques, mortos, feridos, doenças várias, bem como o desaparecimento do seu capitão(*), logo no início da Comissão, tinham tornado o destacamento praticamente inoperacional, com pouco mais de dez meses de comissão.
O moral era baixo.

Chegámos já praticamente de noite. Estacionei a minha Berliet com a traseira para a porta do Depósito de Géneros. O meu amigo Correia, apontador de morteiro 81, era o responsável pelo Depósito. Descarregámos e a seguir tomámos um banho de latão, ou banho fula, (**) como lhe chamámos.

A guarnição do morteiro faz turno até à meia noite e é no respectivo abrigo que petisco o resto da ração de combate. De alguma coisa serve ser amigo do Correia, é que ele arranja um pouco de vinho fresco para acompanhar.
Essa noite não ia ser tão calma como desejaríamos.

No posto havia sempre um pequeno rádio que servia, em caso de ataque, para o tiro do morteiro ser coordenado pelo comando.

Nisto ouvem-se vozes vindas do rádio. Não se percebe nada do que dizem, mas o que nos preocupa é que o aparelho é muito limitado na sua captação. Para se estar a ouvir é porque estão muito perto.
Todos os camaradas vão para as valas. As minhas mãos no punho da G3 estão suadas, aliás o suor corre-me pela cara, costas e peito. É da tensão.
Está calor e humidade, é o tempo das chuvas.

Nada se passa de extraordinário e as horas vão passando, até que o estado de alerta é suspenso e nós, a pouco e pouco, vamo-nos deitando.
Eu sou dos últimos e não estou nada descansado.

Começou a chover. É aquela chuva tropical, que mais parece um imenso balde de água que alguém despeja de uma vez. As valas rapidamente enchem de água até aos bordos. Troveja e nisto coincide um relâmpago, com uma explosão fortíssima. Saltámos para as valas e é bom ver em que estado ficámos, todos encharcados de água barrenta. Os páras, embora sendo tropa especial, molharam-se como nós. A chuva não escolhe elites.

Tinha sido um fornilho a rebentar com a trovoada. Fartámos de rir uns dos outros e com umas tolhas, lá resolvemos o assunto.

No dia seguinte os pára-quedistas saíram em patrulha e deparam-se com um grupo de guerrilheiros. Quando estão a posicionar-se para os atacar, apercebem-se que há mais dois grupos, sendo um de artilharia. O IN é numeroso e bem armado demais para aqueles vinte homens.

Contactam o quartel, vamos todos para as valas novamente. São talvez nove horas da manhã, mas já está um calor terrível. Os pára-quedistas recuam e é pedido apoio aéreo. Passado uma hora ou mais, lá aparece um FIAT que dá umas voltas por cima do objectivo e por fim dispara os roquetes na direcção da mata. Regressa a Bissau e nós lá ficámos, mas mais nada acontece. O morteiro 81 faz batimento de zona. Cinco ou seis granadas a espaços.
Parece ser uma coisa sem importância, tal foi a atenção que o Comando da Zona Leste lhe deu.

O almoço é feijoada.
Cancolim não tem refeitório, ou pelo menos ninguém o usa.
O cozinheiro costuma bater numa jante velha e cada um vai com a marmita buscar a refeição, indo comer para onde lhe der mais jeito. Hoje nem toque na jante se ouve, não vão os turras enviarem a sobremesa.

O comer estava intragável, os carneiros (larvas do feijão) dão um aspecto terrível ao molho, tal é a quantidade. Praticamente ninguém come.
Foi distribuída ração de combate para o dia.

No dia seguinte de manhã bem cedo, já nós vamos na picada com os pára-quedistas que levaremos para Nova Lamego (Gabu).

Nessa mesma noite o PAIGC atacou Bafatá com vários foguetões 120 e embora não tenha provocado mortes, o impacto psicológico foi muito mau para nós. Um dos foguetões caiu perto do hospital onde prestava serviço o nosso ex médico(***), não tendo explodido felizmente.

O grupo que efectuou o ataque, foi o mesmo que nós deixámos passar perto de Cancolim um dia antes.

O facto trouxe muitos dissabores ao comandante da Força Pára-quedista que por se encontrar em desvantagem, se furtou ao confronto. Ele entendeu que a vida dos homens dele era mais importante naquele momento e tendo em vista, o fraco apoio aéreo que nos enviaram, eu até estou de acordo com o que ele decidiu.
Seria um sacrifício praticamente inútil, tendo em conta a disparidade das forças.

Já depois do nosso regresso, em conversa com um amigo meu que foi pára-quedista na mesma altura na Guiné, vim a saber que o 2.º sargento que comandava a força em questão, estava ainda a responder por acto de cobardia perante o inimigo.

Faziam de nós carne para canhão, não prestavam o auxilio necessário e ainda à boa ordem Salazarista, exigiam o que nós nos deixássemos matar.

Já na Índia, tinham tentado fazer o mesmo com os camaradas que lá prestavam serviço. O regime queria heróis, nem que fossem mortos.

Juvenal Amado

Notas do autor:
(*) O capitão desta Companhia, após ter sido ferido no pescoço, num ataque talvez três semanas depois de terem chegado a Cancolim, veio à Metrópole e aproveitou para dar o salto para um pais do Norte da Europa, que não o entregou às autoridades portuguesas.

(**) O banho fula consistia num bidão donde nós com uma lata íamos retirando porções de água que derramávamos pela cabeça e assim retirávamos o sabão. Normalmente fazíamos isso atrás da caserna.

(**) O Dr. Pereira Coelho foi com o Batalhão logo de início. Para o final da comissão foi destacado como Director do Hospital de Bafatá. Juntamente com a sua esposa, médica também, que entretanto se juntou a ele, desenvolveu um trabalho meritório a favor das populações civis. Aliás, foi o seguimento do trabalho desenvolvido por ele já em Galomaro. Nunca se cansou de apoiar toda a população. Esteve sempre atento aos nossos problemas, chegando a fazer pequenas cirurgias. É um grande especialista na área da fecundação assistida. Foi mesmo o responsável pelo êxito do primeiro bebé proveta nascido em Portugal há mais de vinte anos. Foi uma honra da qual a o BCAÇ 3872 se pode gabar. Ter privado com ele durante tanto tempo, fez de nós homens melhores.
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 1 de Junho de 2008> Guiné 63/74 - P2910: Estórias de Juvenal Amado (10): A patrulha nocturna (Juvenal Amado)

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