sexta-feira, 21 de março de 2008

Guiné 63/74 - P2668: Operação Macaréu à Vista - II Parte (Beja Santos) (24): Cartas de Bambadinca, Janeiro / Fevereiro de 1970

"Foi uma imprevista prenda de Natal de 1969. A minha relação com Rigoletto nunca foi das mais estimáveis. Continuo a pensar que Verdi pactuou com os facilitismos, as cenas retumbantes meio vazias, momentos de dramatismo inadmissíveis. Contudo, poucas vezes uma ópera pediu tanto a um barítono. Rigoletto é de uma grande complexidade: o bobo é maldoso e mavioso; satânico e lírico; cruel e terno; eterno derrotado e sedento de felicidade. Não é por acaso que os maiores barítonos do mundo querem incarnar Rigoletto".

"Esta versão do São Carlos de Nápoles com o grande condutor Francesco Molinari-Pradelli, de 1958, não é muito boa mas nunca conheci tanta intensidade como nesta versão de Capecchi: as cambiantes de voz espelham a pulhice, a bajulação, o sofrimento de um pai conduzido à extrema humilhação, o acusador dos cortesãos que se prostituem ao Duque de Mântua. Nem Dietrich Fischer-Dieskau nem Piero Cappuccilli conseguiram este arrebatamento aos céus. Os meus camaradas de quarto em Bambadinca ouviram Capecchi emocionados. É com imensa saudade que os recordo juntamente com esta Rigoletto".


Foto (e legenda): © Beja Santos (2008). Direitos reservados.


Texto do Beja Santos (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), remetido em 8 de Janeiro de 2008:


Luís, Aqui vai o episódio n.º 24. A ilustração do Rigoletto já seguiu, os dois livros referidos seguem depois. Não te esqueças que aguardo a tua disponibilidade para almoçarmos muito em breve. Um grande abraço do Mário


Operação Macaréu à vista > Episódio n.º XXIV

CARTAS DE UM MILITAR DE ALÉM-MAR EM ÁFRICA PARA AQUÉM EM PORTUGAL (3) E OUTRAS PARAGENS EM ÁFRICA (*)

por Beja Santos

(i) Para Comandante Avelino Teixeira da Mota

Meu muito estimado amigo,

Soube pelo Ruy Cinatti que vai ser colocado em Luanda, felicito-o e desejo-lhe as maiores felicidades.

Estou em Bambadinca desde Novembro e percorro regiões que seguramente conhece muito bem, entre Xime e Xitole, é o caso dos regulados de Badora e Cossé. É o que se chama a intervenção, deixei de ir a Mato de Cão, participo num número episódico de operações, monto vigilâncias, estou de segurança na ponte de Udunduma, comando colunas de abastecimento de Bambadinca ao Xitole e Saltinho, colaboro no reordenamento dos Nhabijões, faço emboscadas, recenseamentos, patrulhamentos ofensivos no Joladu, vou ao correio, levo e trago doentes, levo e trago mantimentos e munições, enfim, sou um recoveiro militar, de manhã à noite.

Estou a pôr os meus papéis em ordem, só recentemente é que percebi porque é que o Sr. comandante queria saber quais as populações que viviam em Bucol, numa carta que me escreveu para Missirá falou várias vezes em beafadas e soninqués, e foi a estudar o António Carreira que me apercebi do significado das suas perguntas.

Li o António Carreira para procurar perceber a influência e consolidação do islamismo na Guiné. Os fulas, como sabe com tanta autoridade, foram os verdadeiros arautos do islamismo, submetendo os soninqués bebedores (animistas), em aliança com os soninqués mouros. Os mandingas misturaram-se com os beafadas, caso do Cuor, descubro agora que os Soncó eram
beafadas mandinguizados (leio no Carreira que Joladu significa chão de beafadas).

Quando tiver tempo e paciência, gostava muito que me indicasse literatura sobre este dinamismo da islamização, que foi animada pela presença europeia, pela submissão dos infiéis beafadas e dos fula-pretos animistas. Também no estudo do Carreira descobri que Boncó Sanhá (seguramente familiar do actual tenente Mamadu Sanhá, régulo de Badora) era sobrinho de Infali Soncó.

A outra pergunta que lhe deixo no ar tem a ver com Abdul Injai, que Teixeira Pinto premiou fazendo dele régulo do Oio e do Cuor, depois das campanhas de 1913-1914. Leio que ele suscitou o ódio das gentes do Oio e foi deportado para Cabo Verde. Foi mesmo assim?

Muito obrigado pelos seus esclarecimentos. A sua antiga aluna Cristina Allen e eu casaremos em breve. Acabo de descobrir que não tenho direito a férias, tudo resultado daqueles dois dias de prisão simples, depois da visita do Felgas e do Spínola a Missirá. Ultrapassei uma depressão, estou física e psiquicamente muito melhor, tenho pelo menos mais sete meses pela frente neste teatro de operações. Peço-lhe por tudo que me continue a enviar notícias e a literatura disponível. Receba a muita estima e admiração deste seu devedor.


(ii) Para Cristina Allen

Meu adorado Amor,

No dia do nosso casamento estarei na ponte de Udunduma, mas asseguro-te que virei telefonar-te aos correios de Bambadinca, por volta do meio dia. Por aqui está tudo na mesma, andamos sempre em movimento e, não te querendo cansar com banalidades, dou-te conta do que foi o nosso dia, logo que regressei da Topázio Valioso, no último dia de Janeiro.

Ao amanhecer, mandaram-nos a Queca, que é a tabanca de Sadjo Baldé, aquele meu soldado que morreu em Missirá em Março Passado, é uma tabanca situada entre Sansacuta e Afiá, no regulado de Badora, a fim de transportar mandioca, amendoim, algodão e arroz. Os soldados que foram comigo eram voluntários, tinham lá familiares ou queriam ir às compras. O chefe de tabanca gostou de mim e ofereceu-me ovos que reverteram para a messe das praças.

A Colecção «Novos», da Portugália Editora, foi um grande acontecimento cultural dos anos 60.Por ali passaram Fiama Pais Brandão, Gastão Cruz, Baptista Bastos,Rebordão Navarro,Yvette Centeno, entre tantos outros.Este Herberto Helder anuncia o grandecíssimo poeta que renovou a nossa língua.

Foto (e legenda): © Beja Santos (2008). Direitos reservados.


No regresso, ainda fomos a Samba Juli, trouxemos a caixa do Unimog 404 cheia de cibes destinados à construção de novas casas nos Nhabijões. Depois, isto tudo ainda de manhã, fomos escoltar uma legião de trabalhadores que iniciaram o alcatroamento da estrada do Xime, acima de Amedalai, já perto da Ponta Coli. Ficou lá o pelotão de milícias de Amedalai a montar segurança, em Amedalai conheci o filhinho de Mamadu Djau, o nosso bazuqueiro, deixámos sacos de cimento na ponte de Udunduma, viemos almoçar.

À tarde, levámos doentes a Bricama, depois da consulta de Vidal Saraiva, e seguimos para Bafatá, para entregar aprovisionamentos no agrupamento e trazer correio. Ainda estava a jantar quando saímos precipitadamente para Mero e Santa Helena, havia o rumor de que andava por ali um grupo de Madina a saquear e a raptar. Felizmente, era boato falso. Acabei por trazer um bêbedo para o quartel e uma criança abandonada, de quem ninguém conhecia a origem, coisa inacreditável.

No dia seguinte, recomeçou a dança, e logo a seguir chegará a nossa vez de irmos para a ponte de Udunduma. Pelos intervalos, tenho o serviço de justiça militar, acabei o auto da granada incendiária da Fatu Conté e comecei outro sobre um acidente grave que ocorreu há dias na rampa de Bambadinca, em que ficaram dois soldados sinistrados por terem tombado de uma viatura, com a cara rasgada.

Acabei de ler um livro soberbo, Os Passos em Volta, de Herberto Helder, veio na fornada do presente que me mandou o meu Padrinho. Gosto muito da poesia do Helder e não entendo como podem dizer que isto são contos, é um vendaval lírico, talvez poemas tempestuosos sob a forma de relatos vividos na Bélgica. Escuta como ele escreve:

“Vi muita coisa, contaram-me casos extraordinários, eu próprio... Enfim, às vezes já não sei como arrumar tudo isso. Porque, sabe?, uma noite acorda-se às quatro da manhã, num quarto vazio, acende-se um cigarro... Está a ver? A pequena luz do fósforo ergue de repente a massa das sombras, a camisa caída sobre a cadeira ganho um volume impossível, a nossa vida... Compreende?... a nossa vida apresenta-se então ali como algo... como um acontecimento excessivo... Tem de se arrumar tudo muito depressa. Há, felizmente, o estilo. Não calcula o que seja? Vejamos: o estilo é aquela maneira subtil de transferir a confusão e violência da vida para o plano mental de uma unidade de significação, Faço-me entender? Não? Bem, não aguentamos esta desordem estuporada da vida. Então, pegamos nela, reduzimo-la a dois ou três tópicos que se equacionam”.

Lembra muito o Poemacto, de que tanto gostei. É o próprio Cinatti que me fala com admiração desta alquimia que se autonomizou do surrealismo. Vou enviar-te por correio. Li também o “Ateneu”, de Raul Pompeia, recorda-me Machado de Assis.

Como a minha vida mudou, Cristina. Exactamente há um ano, eu percorria o Cuor de um extremo ao outro, tinha ânimo e tropas. Neste mesmo dia, há um ano, fui a Quebá Jilã, em pleno território do PAIGC, de onde trouxemos um prisioneiro.

Hoje, saí daqui pelas seis da manhã, numa coluna ao Xitole, que decorreu sem incidentes, excepto a má recepção dos nossos camaradas que ficaram azedos com o envio de muito arame farpado e cimento em vez de géneros, como se nós fossemos os responsáveis pela intendência! Éramos setenta militares, vinte viaturas, mais de quarenta toneladas de carga. Fui com as tropas do alferes Moreira, meu companheiro de quarto, que também participou. É um itinerário com más tradições e por isso levámos dez mil cartuchos de reserva, metralhadoras, lança roquetes e morteiros.

Espero que no domingo me contes tudo sobre o nosso casamento. Os meus soldados acreditam que eu vá de férias e já tenho aqui uma relação de pedidos, desde calças de boca de sino até sapatos de palhinha. Vais ter notícias do alferes Carlão, da companhia operacional de Bambadinca, ele vai-te levar uma pulseira e outras lembranças, envia, por favor, livros, peúgas e uma lista de suplementos vitamínicos. A realizar-se o casamento religioso aí, temos que ser cuidadosos a elaborar a lista de convidados, para não provocar mais melindres.
Beijo a minha senhora dona, a saúde está óptima, estou a cair de cansaço e esta noite vou dormir na missão de sono no Bambadincazinho.

(iii) Para Carlos Sampaio

Meu querido Carlos,

As tuas cartas encheram-me de alegria, mas não posso esconder-te a minha preocupação com os relatos que me fazes da tua vida operacional. Na Guiné, é quase impossível passarmos uma semana a fazermos batidas, ao fim de um dia precisamos de água e comida, ninguém consegue dormir no mato, todos os ruídos parecem ensurdecedores, tememos ser referenciados e não sei o que se costuma fazer quando o inimigo faz fogo de morteiro à noite, perto de nós, imagino que é o caos completo.

Fico feliz pelo que dizes sobre o meu casamento e as felicidades que me desejas. Quero que saibas que estou muito melhor depois do tratamento que fiz em Bissau, ando com um apetite esfaimado, durmo muito bem, deve de ser de um psicotrópico chamado amytal sódico que me põe a dormir nove horas até em sítios horríveis com aquela ponte de que já te falei, para garantir a segurança a Bambadinca.
Nem tudo é canseira nas nossas actividades, embora haja sempre a tensão de sermos emboscados ou apanhados por uma mina. Às vezes conseguimos um jeep e vamos até às tabancas das redondezas petiscar, fazer compras de artesanato, mesmo que no dia seguinte voltemos aos mesmos locais com aparato militar. Uma vez fui a Mero com o nosso médico e dois soldados, o médico queria comprar uma corneta balanta e tábuas com inscrições islâmicas, que são muito belas, depois fomos petiscar à destilaria de Ponta Brandão, e no dia seguinte já não viemos fazer turismo mas sim numa patrulha de reconhecimento.

Casamos pois no domingo e confesso-te a minha tristeza por não gozar da tua companhia nesse dia. O que me consola é que a guerra acabará para nós este ano e temos lindos projectos para o nosso trabalho e para os nossos estudos. A Cristina fala-me sempre das cartas que recebe de ti, ela sente-se muito inquieta com os perigos que corres. Continuo sem saber se vou a Portugal, sabes melhor do que ninguém que tenho sérios problemas familiares que não sei enfrentar com esta distância toda pelo meio.
Escreve-me depressa e rezo a Deus que te proteja muito, cada carta que escreves é sinal da tua saúde mas em cada correio que não tenho notícias tuas estou sempre a temer por ti. Tu mereces o maior abraço do mundo, és um devotado irmão.


(iv) Para Ângela Carlota Gonçalves Beja

Minha querida Mãezinha,
Ainda estou a ler os livros que me mandou pelo Natal. Acabei os Retalhos da Vida de um Médico, primeira série, é um Fernando Namora de quem sempre gostei muito, comovem-me aquelas experiências de recém-licenciado que andou pelas serras bravias, pelas planuras alentejanas e pelas veredas do Diabo onde assistiu a partos, acompanhou doentes terminais, viu misérias, foi admirado e exacrado pelas populações onde trabalhou. Não querendo abusar da sua paciência, e porque aqui não consigo encontrar Domingo à Tarde, peço-lhe o grande favor, quando for possível de mo enviar.

No próximo domingo casarei por procuração e ainda não sei se poderei gozar férias perto de si. A seu tempo será informada. Há muito pouco a dizer sobre a vida que levo neste quartel de Bambadinca: visitamos as populações, recenseamos as armas distribuídas pelas tabancas, fazemos colunas a diferentes quartéis, montamos segurança numa ponte e num outro local perto de Bambadinca, é canseira de manhã à noite, mas com menos riscos que as minha idas diárias a Mato de Cão e as noite de Missirá. De vez em quando fazemos operações, a maior parte delas não têm graça nenhuma, chegamos a andar trinta e seis horas às voltas, não se consultam os soldados que conhecem as regiões por onde passamos, é um fracasso que nos entristece.

Aproveito para lhe recordar que ainda faltam sete meses para acabar a minha comissão, agradeço-lhe do coração as visitas que faz regularmente aos meus soldados feridos, as lembranças que lhes oferece, alguns deles ficam espantados quando lhes fala da sua África e do norte de Angola que a Mãezinha tão bem conhece.
Quando visitar o Quebá Soncó diga-lhe que o filho Malã está muito melhor dos estilhaços que tinha na cara, o jovem ficou ferido numa flagelação e o médico do batalhão retirou-lhe mais estilhaços da cara, está muito mais aliviado e já não tem dores.

Muitos beijinhos do filho que nunca a esquece.

As Publicações Europa- América foram felizes com o design gráfico desta edição dos anos 60. Estes «retalhos» foram publicados em 1966,11ª edição

Foto (e legenda): © Beja Santos (2008). Direitos reservados.

(v) Para Ruy Cinatti

Ruy, dear Father,

Finalmente, tive notícias suas. Gostei muito da sua prenda de Natal, um espantoso Rigoletto que me anda a aquecer a alma. Creio que fazia parte da sua discoteca, o que, como lembrança, é um valor acrescentado. O que ando a fazer desde Novembro são missões de protecção e boa vontade, nada tenho a adiantar ao que desde então tenho escrito.

Melhorei muito depois de Bissau, tomei a decisão de voltar a dar aulas aos meus soldados e renovar alguma coisa naquele quartel de que lhe falei, a ponte de Udunduma. Não gosto nada das operações que faço, revelam-se inúteis, os soldados estão desanimados, não aceitam percorrer locais que alguns conhecem bem sem lhes pedir colaboração. É evidente que estamos na época seca, o capim está muito crescido, a natureza muda bastante, a bússola por si só não chega, é preciso entrar no mato denso, espiolhar tudo à procura dos itinerários dissimulados. Nem mesmo na ponte de Udunduma podemos fazer patrulhas mais vezes como seria conveniente e até desejável para as populações em autodefesa. Estou muito pessimista com o evoluir desta condução da guerra. Durante as horas com luz, leio e escrevo. Aqui vão os meus últimos rabiscos, embora eu tenho decidido que isto é lirismo sem préstimo:

Há fontes que não secam

Aguardo a tua carta neste estio prolongado; os bissilões quietos,
os mangueiros com as raízes gretadas. Aguardo
a imprevisibilidade de um acidente atmosférico, tufão ou furacão.
Ou mesmo enxurrada.
Olhamos ao longe a mata cerrada, há quem sonhe ver arados
a rasgar estes campos, tudo sem sobressalto nem emboscadas.
Há mesmo quem delire com nevões suaves
que se espalhem pelo arame farpado, com búzios,
carapaças de tartarugas, sob céus em trovoada, um granizo
a imitar pedras de gelo.

Nós, na verdade, esperamos por uma paz inquestionável,
cercados que estamos de latas de graxa, lâminas de barbear,
atacadores, conservas de atum, água abundante
nestes açudes à escuta da energia das rias e das lalas encharcadas
que separam este oceano, entre mim e a tua carta.
Porque há fontes que não secam: a tua carta é a paz dos altos fornos.
Nada esmaga a esperança neste estio prolongado. Juro. Por Deus.

Obrigado pela companhia que dá aos meus soldados. Obrigado por os levar domingo a casa da Cristina. Obrigado por tudo. Receba o maior abraço que me é possível mandar desta ponte de Udunduma.
____________

Nota de L.G.:

(*) Vd. último poste de 14 de Março de 2008 > Guiné 63/74 - P2637: Operação Macaréu à Vista - II Parte (Beja Santos) (23): Buruntoni: um topázio muito pouco valioso

1 comentário:

Anónimo disse...

Rigoletto di Verdi em dia de aniversário de Joan S. BACH. Um dia verdi vai ser Régulo no Cuor...Falas de Herberto Helder Colecção Novos. Ele foi Editor de Nova/Magazine de Poesia e Desenho-Av D. Loulé 70 3ºLX,Organizadores:Ant,Paulouro/Ant,Sena/H.Helder.
Creio só terem saido dois numeros - peças raras - hoje, fica a poesia dele...Um AB do TM