segunda-feira, 14 de janeiro de 2008

Guiné 63/74 - P2438: História de vida (9): O Último Adeus ou as peripécias da minha partida no N/M Ambrizete (Helder Sousa)


Guiné > Bissau > s/d [1970-1972] > O Hélder Sousa no seu quarto em Bissau... Sinais dos tempos: um poster do 'Che' Guevara, um ícone da juventude da época, mas também um grande amigo do PAIGC... Ao ler a história de vida do Hélder, podemos perguntar-nos se o Exército não foi ver a ficha dele na PIDE/DGS, para saber se ele era um tipo de confiança para trabalhar em transmissões...

Foto: © Helder Sousa (2007). Direitos reservados.



1. Texto do Hélder Sousa (ex-Fur Mil de Transmissões TSF, Piche e Bissau, 1970/72) (1):


História de vida > "O Último Adeus"

Caro Luís e ilustres co-editores:

Conforme prometi, pretendo agora ser um pouco mais proactivo e, para isso, nada melhor do que começar pelo princípio.

Mas o que é o princípio?

Disse, na minha apresentação, que tendo vivido a minha infância e juventude em Vila Franca de Xira, fui naturalmente infuenciado pelas suas muitas e variadas escolas.

Podia então começar por aí, falando como fui formado no meio do gosto pela tauromaquia, nos ecos (e não só...) das lutas operárias da região, dos camponeses do outro lado do Tejo, do Ribatejo e Alentejo, da observação da vivência dos Avieiros, do facto de se estar no seio onde o neo-realismo materializou maior expressão, das Tertúlias das discussões sobre a política que se vivia e que se queria mudar, discussões essas levadas para outros locais, Nazaré, Foz do Arelho, etc.. Depois podia continuar pela descoberta da vida na cidade grande, o natural integrar no movimento associativo estudantil, o serviço militar nas suas etapas, 1º Ciclo do CSM em Santarém, 2º Ciclo em Lisboa, no BT, estágio em Tancos, na EPE, colocação para dar instrução e formação no Porto, no RT, a mobilização, etc.

Podia, de facto, começar por aí, onde certamente algumas coisas melhor se explicariam, mas é sempre bom deixar alguma coisa para dar largas à imaginação, para cada qual encontrar a sua leitura e, por isso, vou começar pelo último adeus.

E o que é isso? Pelo menos colocado deste modo?

Trata-se simplesmente de relembrar o que foi para mim a despedida dos familiares aquando do embarque para a Guiné, certamente idêntica à de tantos de nós que estão representados na Tabanca e dos outros também.

A minha teve algumas particularidades. Se na essência foi igual à de muitos outros, teve a vantagem (ou desvantagem) de ser quase confidencial pois, por minha vontade, foi restringida aos familiares mais chegados (pais, irmã e namorada) já que me tinha despedido do círculo de amigos e companheiros em tempo oportuno. Por esse aspecto não se reuniu do dramatismo que estavam associados ao grande aglomerado de pessoas que eram presentes aquando da partida dos Batalhões e cujo clamor eu ouvia distintamente, aumentando de forma a assumir um tom angustiante, nas manhãs em que chegava cedo a Lisboa e passava algum tempo no Jardim sobranceiro ao Cais.

A partida/despedida ocorreu na manhã do dia 23 de Outubro de 1970, 6ª feira, data em que oficialmente embarquei para a Guiné mas, na verdade, não foi assim.

Fui em rendição individual, como relatei quando me apresentei à porta da Tabanca, e o transporte designado foi um velho cargueiro, o Ambrizete, que foi abatido ao serviço algum tempo depois, sendo que esse cargueiro dispunha de 6 cabinas duplas para passageiros e, desse modo, levava nessa viagem 6 civis e 6 militares.

Os seis civis eram uma mulher grande e seus três filhos que ocupavam duas cabinas sendo a outra dos civis lotada com um homem já com uma idade relativamente avançada (pelo menos era isso que me parecia, naquela altura em que eu tinha 22 anos) que tinha estado emigrado em França e que ia agora para a Guiné trabalhar por conta da Tecnil na construção duma estrada qualquer e um outro indivíduo, mecânico de automóveis, da zona da Malveira, que encontrou na entrada naquele barco para um serviço qualquer à aventura na Guiné a solução para o problema que tinha pelo facto de se ter tomado de amores pela legítima esposa dum padeiro o qual, tendo descoberto a paixão e não concordado com ela, queria limpar-lhe o sebo, situação para a qual encontrou uma aliada na esposa do mecânico, razão do nosso homem se encontrar a bordo apenas com a roupa que tinha no corpo. Durante a viagem, e porque já tresandava, lá arranjámos maneira de, conluiados com a tripulação, lhe darmos um banho forçado ....

Os militares eram todos Furriéis de Transmissões, sendo 3 TPF de cursos posteriores ao meu e que não conhecia nem me lembro hoje como se chamam (disso me penitencio e peço-lhes desculpa) e os outros 3 eram, para além de mim, o Nélson Batalha que levei ao encontro em Pombal, que esteve em Catió onde foi ferido num ataque ao quartel, em Abril de 1991, e o Manuel Martinho Martins que esteve em Tite, os quais mais tarde, apartir de Agosto de 1991, formaram comigo e também com os Furriéis Eduardo Santos Pinto e José Manuel Lopes Fanha, o núcleo duro do Centro de Escuta do Agrupamento de Transmissões.

Acontece então que na época tinham ocorrido algumas acções que procuravam corporizar a oposição ao esforço de guerra através de actos como a sabotagem das Berliets e a bomba no navio Cunene, razão pela qual o nosso Ambrizete, para mais carregado com material de guerra, para além de géneros alimentícios e outras peças e maquinarias, estava ancorado ao largo, no meio do Tejo. Quando abandonámos o cais, com os familiares a dizerem o último adeus, e entrámos na lancha que nos levaria ao transporte, os elementos da tripulação que iam fazer a rendição dos que estavam lá de serviço confidenciaram-nos que "não vale a pena tanta lamúria na despedida porque não vamos hoje de certeza". E assim foi!

O barco estava com problemas de arrumação e distribuição da carga, tinha uma inclinação para a esquerda que nos fazia andar de lado, tendo o Comandante informado que iríamos largar para navegar ao largo da baía de Cascais para tentar resolver o problema, voltaríamos ao porto de Lisboa para manutenção das câmaras frigoríficas e, na melhor das hipóteses, sairíamos então a partir da 2ª feira seguinte, dia 26. É claro que os familiares, no Cais, não sabiam nada disto e ficaram a ver o barco manobrar, aproar à barra do Tejo e lá ficaram a acenar o último adeus.

Bem, encurtando a narrativa, posso adiantar que a partida aconteceu apenas no dia 3 de Novembro, mais de uma semana depois do que o Comandante previra e, durante esse tempo, não voltei mais ao barco. Todos os dias de manhã apresentava-me na Companhia de Navegação, informava-me das previsões e ia acompanhando as indicações: se era só para o dia seguinte já não contactava mais, se diziam "talvez logo à tarde já se saiba",então telefonava com as devidas cautelas para efeitos de identificação.

E assim fui andando até que no dia 3 de Novembro, dia em que efectivamente embarquei, fui com a minha namorada, ainda hoje minha mulher e companheira, ver um filme que tinha estreado na véspera, no então cinema Tivoli, com o sugestivo e felizmente não premonitório título de O Último Adeus, filme com o título original de I Girasoli, de Vittorio de Sica, com Marcello Mastrioani e Sofia Loren, que relatava a odisseia de uma mulher italiana numa desesperada busca pelo seu marido, soldado considerado desaparecido algures na Rússia quando integrava um dos Batalhões de italianos que acompanharam os alemães na invasão e acções bélicas naquele imenso território gelado.

Por ocasião do 2º intervalo estava na hora de contactar para saber das novidades quanto à partida. De manhã tinham-me dito que era muito provável que fosse o dia, mas para ligar por volta das 17 horas. Assim fiz, do foyeur do 2º Balcão (não havia dinheiro para plateis), telefonando dum daqueles orelhões que por lá havia, tendo sido o primeiro a chegar e nem tendo reparado que depois se formou uma pequena fila à espera de vez. É que eu já estava a ver as horas a passar, já seriam 17.10, quando o intervalo ocorreu e precisamente numa daquelas interrupções em situação dramática, que deixam os mais sensíveis a retomar o fôlego, quando o protagonista, alvo da busca pela mulher, é retratado em flashback andando perdido no meio da estepe gelada (andava às voltas) e reencontra o cadáver congelado dum camarada seu e ao tentar erguê-lo quebra-se o braço congelado, ficando com uma parte separada do corpo.

Certamente que essa cena estaria na mente das pessoas que estavam atrás de mim para telefonar e que me ouviram identificar como "O Furriel que ia para a Guiné no barco avariado", confirmando então que a partida seria nessa noite. Quando acabei de telefonar, pousei o telefone e me virei, deparei com três ou quatro rostos com olhos muito abertos a olhar para mim, fazendo-me sentir como a próxima vítima. Para além da ida p'ra guerra em si, a palavra Guiné era na altura já sinal de uma angústia maior.

Felizmente não foi assim. Nem sempre o último é o último. Pelo menos naquela ocasião O Último Adeus foi apenas o título de um filme, e o nosso último adeus foi apenas o último daquele dia.

Outros dias se sucederam!


Até breve

Hélder Sousa
Fur Mil Transmissões TSF

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Nota dos editores:



(...) Chamo-me Hélder Valério de Sousa, vivo actualmente em Setúbal, fui Furriel Miliciano de Transmissões, do STM, cumprindo a comissão de serviço na Guiné entre 9 de Novembro de 1970 e 10 de Novembro de 1972, tendo estado cerca 7 meses em Piche (contemporâneo do BCAV 2922) e o resto da comissão ao serviço do Centro de Escuta e de Radiolocalização do Agrupamento de Transmissões da Guiné (...).

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