terça-feira, 24 de julho de 2007

Guiné 63/74 - P1991: O Simplex, o Kafka e o Batista ou a Estória do Vivo que a Burocracia Quer como Morto (João Tunes)


1. Com a devida vénia, reproduzimos aqui, com algumas pequenas adaptações, o seguinte post do nosso amigo e camarada João Tunes. É mais uma contribuição para que o caso Batista - o nosso morto-vivo do Quirafo, e futuro membro da nossa tertúlia - não morra na praia, e ele volte a recuperar o registo, na sua Caderneta Militar, da verdade e da memória a quem tem direito!... Vamos ajudá-lo a conseguir esta pequena vitória contra a burocracia sem rosto!... É também uma pequena homenagem ao Álvaro Basto e ao Paulo Santiago que se interessaram pelo caso (humano e militar) do António da Silva Batista. Vamos fazer chegar o caso dele até ao Chefe do Estado Maior do Exército, e por aí fora (se for caso disso). Vamos testar o tão badalado o Simplex, a vontade de transparência e de simplificação das relações entre os eleitos e os eleitores, o poder político e os cidadãos ! O Simplex não pode ser apenas Propagandex! E tem de chegar às repartições militares!

O Paulo Santiago, que é um homem generoso,solidário, emotivo e de grandes causas, deixou ointem este comentário no blogue do João Tunes: "João: Se o Batista lesse este teu post, ficaria agradecido, como ele não anda pela Net, agradeço eu, em seu nome. Sinto-me muito revoltado, mais ainda após ler o post do Luís e o teu. Apagarem anos e meses da vida de uma pessoa é uma canalhice, é uma filha da putice. Ainda não sei o que irei fazer, mas,quieto e calado não ficarei. Senti que, para ele, é mais frustante o não mencionarem o seu passado de prisioneiro de guerra que a não atribuição de qualquer pensão" (...). Hoje o Paulo já escreveu ao Coronel Ayala Botto, que foi ajudante de campo de Spínola na Guiné (vd. post anterior a este). Mais ideias, precisam-se! (LG).


Água Lisa (6), blogue de João Tunes > 23 de Julho de 2007 >
SIMPLEX E O VIVO QUE A BUROCRACIA QUER COMO MORTO


Também a guerra tem as suas burocracias. E, como qualquer burocracia, se não domada pelo sentido do humano, tende a tomar galopes soltos mesmo sem sinais humanos sentados na sela. Onde facilmente as vidas se perdem, ou se gastam, como é o caso das guerras, a burocracia da guerra pode cometer o mais caricato erro burocrático: trocar vivos por mortos, ou vice-versa.

Neste blogue [, link para o nosso blogue, Luís Graça & Camaradas da Guiné,] reconstitui-se uma odisseia burocrática que começou na guerra colonial na Guiné e se espraiou no meio da papelada, esmerando-se em caprichos, com que os militares portugueses registam os que, da guerra, saíram vivos e mortos. Mostrando-se difícil que alguém dado como morto e enterrado, afinal estando vivo, recupere a cidadania da sua vitalidade (....).

Resumindo a história do ainda vivo cidadão António da Silva Batista, antigo soldado do Exército Colonial Português:


- Em 17 de Abril de 1972, em Quifaro (Guiné), uma emboscada montada pelo PAIGC provoca um número elevado de vítimas mortais: 11 militares portugueses, cinco milícias africanos e vários civis que eram transportados na coluna militar. O soldado Batista escapa com vida e é aprisionado pelos guerrilheiros do PAIGC, sendo levado por eles para a Guiné-Conacry. Através da Cruz Vermelha, o soldado Batista escreve várias cartas à família que nunca chegam ao seu destino.

- O soldado Batista é dado como morto pela burocracia militar portuguesa, um outro cadáver faz-lhe de corpo seu, é passada competente certidão de óbito, os restos mortais substitutos são entregues à família, que procede ao respectivo funeral, ficando com campa no cemitério da sua terra natal que passa a ser cuidada e transformada em culto de saudade pela família.

- Com o reconhecimento da independência da Guiné-Bissau, o PAIGC liberta o soldado Batista, entregando-o ao exército português. Em Setembro de 1974, passados 27 meses sobre a data da sua captura pelo PAIGC, volta a casa e à família. Visita a “sua campa” no cemitério (foto na imagem, publicada em 1974 no Jornal de Notícias) onde lê na lápide que lhe era dedicada “Em memória de António da Silva Batista. Falecido em combate na província da Guiné em 17-4-1972" e deposita uma coroa de flores sobre o corpo que lhe fizera as vezes.

- O ex-soldado Batista, cujo único documento de identidade era a sua certidão de óbito, vê-se em palpos de aranha para recuperar a sua condição de cidadão vivo. Se o Exército o dera como morto em combate, com certidão de óbito devidamente emitida, como podia passar a vivo e contado o tempo de ausência como prisioneiro? A burocracia reage como é timbre da burocracia. O ex-soldado Batista é reintegrado no rol dos vivos mas ainda hoje, continuando vivo, não conseguiu que a sua permanência no campo de prisioneiros do PAIGC lhe conste, na sua caderneta, como tendo sido em serviço militar.

A burocracia não permite que um vivo tenha estado vivo enquanto os papéis, os sagrados papéis da burocracia, assinalam que o vivo estava morto. Quando muito terá estado vivo mas, nos papéis, continua morto, ou pelo menos ausente em parte incerta. E se o ex-soldado Batista quisesse documentos conformes, respeitasse o papel da certidão de óbito e, em vez de andar a atrapalhar a burocracia, aceitasse que estava morto. Nem o Simplex resolve tão intrincado desrespeito à santa burocracia?

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