terça-feira, 5 de junho de 2007

Guiné 63/74 - P1816: Estórias cabralianas (23): Areia fina ou as conversas de Missirá (Jorge Cabral)

Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Bambadinca > Fá Mandinga > 1969 ou 1970 > "Aqui está o Rocha afagando um cão, de quem aliás já falei na minha estória O Amoroso Bando das Quatro. Os outros são: de pé – Soldado Mamadú, eu, 1º Cabo Injai; em baixo – Soldado Demba, 1º Cabo Marçalo, Soldado-maqueiro Adão" (JC)...



Como se pode deduzir da foto acima, o Jorge estava protegido por manga de mezinhos... Hoje continua a usá-los, pelo menos alguns, só que andam todos trocados... Ainda há dias, na discussão da tese de doutoramento do Leopoldo Amado, se falava da importância do pensamento mágico na guerra da Guiné. Tanto o PAIGC como as NT aproveitaram-se do pensamento mágico que é um traço cultural forte de todos os grupos étnicos da Guiné.

Fotos: © Jorge Cabral (2006). Direitos reservados.

1. Mensagem do Jorge Cabral:

Amigo,

Só agora me foi possível enviar a estória que te prometi na Casa do Alentejo (1). Logo que de lá saí, em pleno Rossio, senti-me mal e recolhi ao Hospital, onde coincidência ou destino, fui observado por uma médica guineense, a qual tendo reparado no ronco-mezinha que continuo a usar na cintura, me tratou como um verdadeiro Homem Grande, tendo-me informado que o amuleto afinal não é fula, como sempre pensei, mas mandinga e que me protege sim, das balas, do mau olhado e das invejas, mas não do stress e dos excessos.

Já quase recuperei, mas lamento não ter podido comparecer no Doutoramento do Leopoldo, e muito principalmente, no funeral do Neto.

Finalmente o Beja Santos chegou ao meu tempo na Guiné. Fiquei a saber que inaugurei o Destacamento da Ponte do Rio Udunduma, pois lá me encontrava no dia 30 de Junho de 1969, conforme atesta o aerograma que enviei a uma Amiga, no qual comparo a minha situação, com o romance A Ponte, descrição da odisseia de um pelotão de jovens alemães na defesa de uma ponte, que acaba dinamitada pelo seu próprio exército.

Enfim, as peças do puzzle da memória vão-se encaixando.

Abração
Jorge


2. Estória nº 23 da série Estórias Cabralianas. Autor: Jorge Cabral , ex- Alferes Miliciano de Artilharia, comandante do Pel Caç Nat 63, Fá Mandinga e Missirá, Sector L1 - Bambadinca, Zona Leste, 1969/71.

Era estudante universitário, em Lisboa, quando foi convocado para a tropa. Hoje é advogado, escritor e docente universitário, na Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias, sendo o coordenador do curso de pós-graduação em Criminologia.

Ficamos agora a saber que o nosso alfero anda com os amuletos trocados... Tenho a obrigação moral, como seu amigo, camarada e editor literário, de lhe dizer que o stresse mata, é um assassino silencioso... Está na altura de ele mandar a máquina à revisão geral e requisitar amuletos novos da Guiné-Bissau... LG

Conversas em Missirá – Areia Fina,

por Jorge Cabral (2)


Conheci muito bem o Alferes que esteve em Missirá nos anos de 1970 e 1971. Diziam que estava apanhado, mas penso que não. Era mesmo assim. Quem com ele privou em Mafra e Vendas Novas certamente o recorda, declamando na Tapada:

No alto da Vela
Fui Sentinela
de coisa nenhuma
Quem hei-de guardar
Quem irei matar…

Ou no Cine-Teatro de Vendas Novas, diante das autoridades civis e militares, na récita do final da Especialidade, para a qual encenou uma peça absurda, onde o Tenente Gengis Khan saltava do helicóptero, e avançava capim dentro.

Dessa vez, o Comandante zangou-se mesmo, e interrompeu a representação…

Em Missirá, apenas recolhia ao seu abrigo – quarto para dormir. Passava os dias, à conversa com os negros, e com brancos, e queria saber tudo. Petiscava com as mulheres, de cócoras, metendo a mão no alguidar, fazendo bolas de arroz, que depois saboreava… Frequentava a pequena mesquita, mas quando o Padre Puím (3) lá foi, até ajudou à Missa…

Perguntava-nos tudo. Das aldeias, das profissões, das lendas, das crendices, do futuro… Ouvia mais do que falava, mas às vezes, punha-se a contar estórias.

Uma noite, após o jantar, como era habitual, continuámos à mesa. Ainda cheirava a grão. Bebíamos todos. Recordo os copos, feitos das garrafas, e a colorida caneca do Alferes, velhíssima e não muito limpa. Já vinha de Fá, e aí em visita, uma vez, o Major B.B. (4) recusou beber por ela…

Naquela ocasião, quis que falássemos da nossa primeira vez. Mas com verdade, acrescentou, pois desconfiava que alguns ainda não tinham experimentado. Começou ele, e falou de uma virgem loira, à beira rio, num fim de Março, quase Primavera. Não percebemos nada. No início chamava-se Cloé, depois Isolda, e terminou Julieta envenenando-se. Mais tarde confessou-me que inventara. Na realidade acontecera em Badajoz, custara cem pesetas, a mulher era gorda, vesga, e tresandava a alho…

O Pechincha, como sempre, delirou. Logo na Escola primária com a contínua… pois então.

O Monteiro falou da rapariga murquês, termo que nunca mais ouvi, e que dará outra estória, mas quem mais nos divertiu foi o Cozinheiro Teixeirinha.

Completados os dezasseis anos, embarcara num paquete de luxo, onde era camareiro, competindo-lhe fazer as camas e arrumar os camarotes. Logo ao segundo dia da viagem, foi procurado por uma senhora que se queixou de não conseguir dormir. Os lençóis estavam cheios de areia fina – afirmou ela. O Teixeirinha mudou os lençóis e pensou ter resolvido o problema. Mas não. A dama voltou à carga. E lá tornou ele, a colocar lençóis lavados, que previamente escovou. Porém, a passageira continuou a reclamar. Não conseguia dormir.
- Olhe, passe por lá esta noite a ver se não encontra areia fina.

O Teixeirinha passou e ficou. Óptima areia fina, até chegar ao destino…

Hoje quando o Alferes telefona ao Branquinho, logo no início da conversa, interroga sempre:
- Rapaz, como vamos de areia fina?

Jorge Cabral

_________


Notas de L.G.

(1) Vd. post de 27 de Maio de 2007 > Guiné 63/74 - P1788: Convívios (10): Pessoal de Bambadinca 1968/71: CCS do BCAÇ 2852, CCAÇ 12, Pel Caç Nat 52 e 63 (Luís Graça)

(2) Vd. último post da série Estórias cabralianas > 12 de Maio de 2007 > Guiné 63/74 - P1752: Estórias cabralianas (22): Alfa, o fula alfacinha (Jorge Cabral)

(3) Vd. post de 17 de Maio de 2007 > Guiné 63/74 - P1763: Quando a PIDE/DGS levou o Padre Puim, por causa da homília da paz (Bambadinca, 1 de Janeiro de 1971) (Abílio Machado)

(4) Oficial superior de operações do BART 2917 (Bambadinca, 1970/72)

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