sábado, 12 de maio de 2007

Guiné 63/74 - P1752: Estórias cabralianas (22): Alfa, o fula alfacinha (Jorge Cabral)

O Fado (1910 ) > A célebre pintura a óleo de José Malhoa (1855-1933). Fonte: Wikipedia: The Free Encyclopedia.


Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Bambadinca > Um fula... em traje domingueiro, diria um tuga. Difícil é imaginá-lo em Lisboa, no Bairro Alto ou em Alfama, em bairros populares de Lisboa onde nasceu o fado há 170 anos... e com ele a nata da malandragem alfacinha. (LG).

Foto: © Humberto Reis (2007). Direitos reservados.


Estória nº 22 da série Estórias Cabralianas. Autor: Jorge Cabral , ex- Alferes Miliciano de Artilharia, comandante do Pel Caç Nat 63, Fá Mandinga e Missirá, Sector L1 - Bambadinca, Zona Leste, 1969/71. Era estudante universitário, em Lisboa, quando foi convocado para a tropa. Hoje é advogado, escritor e docente universitário, na Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias, sendo o coordenador do curso de pós-graduação em Criminologia.

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Alfa, o Fula Alfacinha
por Jorge Cabral

No final do ano de 1970, apresentou-se em Missirá um soldado fula – chamemos-lhe Alfa – vindo da prisão de Bissau, onde cumprira pesada pena. Razão da punição – ausência ilegítima durante cento e oitenta dias, quando após intervenção cirúrgica no Hospital Militar Principal, desaparecera em Lisboa.

Impecavelmente fardado, com blusão e tudo, usava uma vistosa popa e farfalhudas patilhas, conservando sempre um palito dependurado ao canto da boca. Falava um calão lisboeta e aparentava ser um verdadeiro rufia alfacinha.

Quando aos domingos se vestia à paisana, envergava fato completo com colete, e na gravata vermelha brilhava um alfinete de ouro. Exibia duas valiosas pulseiras e até, calculem, botões de punho.

A poucos dias de vir de férias, não tive tempo de averiguar o que fizera na Capital, embora me tivesse causado algum espanto, a profissão que me indicou – cobrador comissionista.

No início de Janeiro, na véspera da minha partida, todos fizeram uma longa fila, a fim de dizerem o que queriam, que eu lhes trouxesse de Lisboa. Ciente da impossibilidade de os satisfazer, mesmo assim, apontei escrupulosamente todos os pedidos, incluindo os treze alfinetes de gravata, os dezoito pares de botões de punho, e as catorze pulseiras. O último da fila, foi o Alfa, que ao contrário dos outros, apenas solicitou que levasse quatro mangas, oferta para umas senhoras amigas de Lisboa. Tomei nota da morada, e prometi a entrega.

Quase a acabar o mês de licença é que me lembrei das mangas, que entretanto já haviam apodrecido. Corri à Baixa tentando encontrar frutos tropicais, e à falta de melhor, consegui arranjar tâmaras. No dia seguinte fui à procura das tais senhoras. A casa ficava na Rua do Mundo em pleno Bairro Alto. Bati à porta e entrei de imediato numa sala, onde sete senhoras sentadas pareciam aguardar.

Levantou-se logo uma que me informou – “Quatrocentos escudos e só ao natural!”
Percebi então, quem eram as senhoras amigas do Alfa e como ele passara aqueles seis meses.

Cobrador pois e até comissionista… Lá lhes dei notícias e as tâmaras.

Regressado, não contei a ninguém sobre a respeitável actividade do Alfa em Lisboa, mas junto dele louvei a beleza das amigas, das quais adivinhara a excelência profissional.

Anos depois, já Advogado, também eu trabalhei para as tais senhoras. Nunca tive clientes mais honestas e cumpridoras. Pagaram sempre os meus serviços. Só que às vezes não foi em dinheiro…

Jorge Cabral
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Nota de L.G.:

(1) Vd. último post > 24 de Abril de 2007 > Guiné 63/74 - P1696: Estórias cabralianas (21): O Amoroso Bando das Quatro em Missirá (Jorge Cabral)

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