segunda-feira, 7 de maio de 2007

Guiné 63/74 - P1738: Hospital Militar de Bissau (2): O terminal da guerra, da morte e do horror (Carlos Américo Cardoso, 1º cabo radiologista)




Guiné > Bissau > Hospital Militar 241 > 1972 > O 1º Cabo Radiologista Cardoso e os seus amigos

Fotos: © Carlos Américo Rosa Cardoso (2007). Direitos reservados.



II parte das memórias do 1º Cabo Radiologista Carlos Cardoso, dos Serviços de Saúde Militar (1972/74) (1):


No dia 18 de Novembro de 1972 ao desembarcar no aeroporto de Bissau tudo era novidade para mim, o cheiro da terra, as tabancas no percurso até ao hospital, enfim, a simpatia com que os meus camaradas do Raio X me dispensaram. Por sorte até cheguei a uma sexta feira ao fim do dia, pelo que só me tive de me apresentar na segunda feira.


O Manel Bolinhas que estava em fim de comisão e que era vizinho da minha namorada, combinou comigo no aeroporto que no sábado me ia buscar para irmos - penso que era a Safim - dar uns mergulhos na piscina e comer carne de porco frita naqueles estabelecimentos que existiam à beira da estrada.

No domingo fiquei no Hospital com os meus camaradas do Raio X: o Coelho, que era do Cadaval e que eu fui substituir; o Carvalho que era de Coimbra e que me deu a conhecer as canções do Zeca Afonso (que eu não sabia que não era permitido o Eles comem tudo, mas que eu achava piada porque era do contra); e o Teixeira que era de Ceira, perto de Coimbra.

Contavam-me histórias que eu, desconfiado, pensava:
- Não é bem assim, os gajos estão-me a meter medo... - Mas dizia-lhes que sim. Mais tarde confirmei que aquilo que me diziam até não andava muito longe da realidade.

Até ai tudo marchava bem, piscina, petiscos... E como eramos três cabos radiologistas, combinámos com os sargentos fazer entre os três o serviço nocturno de urgência e eles só fariam o serviço diurno quando estivessem de serviço. Assim dormiriamos no Raio X, passaríamos a ter mais qualidade de vida, teríamos ar condicionado e evitaríamos a bagunça da caserna. Ao mesmo tempo não estavamos tão dispersos quando houvese alguma eventualidade.

Entretanto chegou a segunda feira, dia de apresentação e entrada ao serviço. Deram-me uma G3 que nunca tinha disparado um tiro e aí vou eu direitinho ao Raio X. Nos primeiros dias nada se passou de anormal, a vida continuava com as consultas externas a que eu estava habituado em Lisboa no Hospital da Estrela quando estive a tirar a especialidade.




Guiné > Bissau > Hospital Militar 241> 1972 > O heliporto
Foto: © Carlos Américo Rosa Cardoso (2007). Direitos reservados
Mas um dia tinha de começar o meu baptismo... Deviam ser para aí umas cinco horas da tarde, ouço um burburinho, espreito à janela e vejo uma viatura do nosso exército com cinco ou seis corpos a monte. Perguntei a um camarada o que tinha acontecido, ao que ele me respondeu :
- É, pá, mararam todos, foi um acidente... Isto aqui é mato, é quase todos os dias. - E era verdade, muitos dos nossos camaradas morreram tambem por imprudência.

E eu pensei cá para com os meus botões:
- Se é assim, tens que te começar a habituar... - E assim foi durante a minha comissão de serviço, depois era o normal.

Entretanto o Carvalho estava a terminar a comissão e quem o vinha substituir era o Hermínio Clemente, o Bigodes, que era do meu curso e já tinhamos feito o estágio na Estrela juntos, sabia que era ele que marchava a seguir.

E aí começou a história das fotografias: o Hermínio Clemente era (e penso que ainda é) fotógrafo profissional... Anda por aí, algures em lisboa, quem souber dele diga porque tem muito mais fotos do que quando ele chegou ao Hospital com as suas máquinas fotográficas e a sua veia jornalistica... Ele disse-me:
- Ó Cardoso, temos que fotografar isto... - E como devem calcular, não era permitido e se fossemos apanhados teríamos graves problemas. Tivemo-lo que fazer às escondidas, com a colaboração de camaradas enfermeiros e de alguns médicos.

Eu, uma vez por volta das três da manhã, estava já a dormir assim como os meus camaradas. Fomos acordados pelo enfermeiro de serviço às urgências para estarmos preparados. Tinha rebentado uma granada num café em Bissau e havia muitos feridos. Não me lembro o nome mas sei que era na avenida principal do lado direito de quem ia para o cais. Talvez Ronda, será?

Seriam para aí uns trinta feridos e, como calculam, quando há estilhaços, é radiografia da cabeça aos pés. Terminámos o nosso serviço já era de madrugada. Aí entrava o cabo do rancho porque eu ´nãoo perdoava um bife com batatas fritas para todos.





Guiné > Bissau > Hospital Militar 241 > 1972/74 > Cenas do bloco operatório e restos humanos... Imagens que podem, ainda hoje, ferir a sensibilidade de alguns amigos e camaradas... Diz o Carlos: É mau de se ver, mas faz parte da nossa história... Aqui era o terminal da guerra, da morte, do horror (2)... Aqui chegavam, quase sempre com vida e alguma esperança, os nossos camaradas feridos pelas minas e pelos rockets...
Amputados, muitos sobreviveram. Mas desses, quantos não ficaram estropiados para o resto da vida ? Quantos sofrem, ainda hoje, de stresse pós-traumático de guerra ? Quantos estiveram em reabilitação no Centro de Medicina de Reabilitação de Alcoitão ? Quantos tiveram apoio na reintegração na vida civil e profisisonal ? Quantos regressaram à Pátria e não perderam a esperança ? Infelizmente, não temos uma ideia de grandeza dos nossos feridos (graves) durante a guerra colonial. (LG)

Fotos: © Carlos Américo Rosa Cardoso (2007). Direitos reservados


Quando chegavam os feridos tanto da cidade como do mato e tínhamos oportunidade - porque nem sempre podia ser -, fechávamos as portas do Raio X e batíamos umas quantas fotos. Quando eramos chamados ao bloco operatório para fazer RX aos operados apercebemo-nos que havia material que nos interessava fotografar, então combinámos com o enfermeiro Jesus e à noite fotografávamos os restos dos nossos camaradas.

É mau de se ver mas tem que ficar para a história. Não sei o que faziam, se enterravam ou queimavam, mas se algum camarada me estiver a ler e puder complementar a informação, poderemos encontrar a verdade.

Quando em 73, nos confrontos em Guidaje e em Guileje recebemos a notícia que estavam para chegar cerca de cinquenta feridos. Passadas umas horas já só eram trinta, acabando por chegar ao hospital cerca de vinte, completamente destroçados, com o moral muito em baixo, em mísero estado.

O cheiro dos ferimentos putrefactos era insuportavél por não poderem ter sido socorridos com a devida urgência. Tivemos que andar com máscaras a socorrer os nossos camaradas.

Por tudo isto, camaradas, o meu testemunho é uma pequena amostra do que nós todos sofremos e passo a citar uma frase do nosso general Spínola quando se encontrava a visitar estes mesmos feridos no Hospital:
- É para isto que está guardada a juventude portuguesa ?

Depois veio o 25 de Abril.

Com um grande abraço
Cardoso RX

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Notas de L.G.:

(1) Vd. post de 1 de Fevereiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1481: Hospital Militar de Bissau (1): Apresenta-se o ex-1º Cabo Radiologista Cardoso

(2) 10 de Março de 2007 > Guiné 63/74 - P1578: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (37): O horror do Hospital Militar 241 e o grande incêndio de Missirá

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