quarta-feira, 2 de maio de 2007

Guiné 63/74 - P1722: Provetas, crime e castigo, louvores e punições, erros e perdões (Jorge Cabral)



Cópia do louvor atribuído pelo Comandante do CAOP2 ao Alf Mil Art Jorge Cabral (Fá e Missirá, 1969/71), comandante do Pel Caç Nat 63, transcrito na Ordem de Serviço nº 188, de 9 de Agosto de 1971, do Batalhão de Artilharia 2917 (pag. 774). Classificação Reservado.

Foto: © Jorge Cabral (2007). Direitos reservados

1.Mensagem do Jorge Cabral, de 20 de Abril de 2007:

Amigo Luís,

Continuo a acompanhar o teu / nosso blogue, o qual me ajuda a reconstituir um tempo demasiado importante da minha vida. Claro que escrevemos de nós para nós, sendo muito difícil a quem nunca foi a África, fez a tropa ou viveu a Guerra, entender.

Os meus alunos às vezes espreitam... mas não percebem nada. Como explicar-lhes o que era habitar Missirá?

Há anos, o meu irmão Carlos visitou a Guiné e quis ver Missirá. Conseguiu que o levassem e, lá chegado, imaginando-me ali, chorou...

Fui sempre um paisano incorrigível, desalinhado, marginal, mais do que crítico, um gozador... com óbvia falta de vocação militar. Para que serviam os Serviços Psicotécnicos do Exército? Com que critérios me classificaram como Atirador e depois me fizeram Comandante de Destacamentos?

Devia ter sido Alferes - Básico, e o certo é que se tivesse sido incorporado um ou dois anos mais tarde, acabaria também eu, tal como muitos dos meus Colegas, em Capitão - Proveta (1).

Como tu, ou o Mexia Alves, fui louvado, afirmando-se que "o (meu) trato afável e habilidade para lidar com tropa africana e populações, (me) grangearam grande prestígio".

Alguém nos ensinou essa capacidade para lidar com o outro, para o entendermos, para nos adaptarmos? Não se ensina, nem se aprende, é inata!

Tivéssemos servido entre chineses ou esquimós e os nossos louvores diriam o mesmo.

Excluindo a preparação física, muito pouco de útil, me transmitiram na Recruta e na Especialidade.

Mais ou menos Provetas éramos todos! Nos últimos meses comandei três operações. Numa delas, fui obrigado a tomar decisões complicadas. Como teria agido no início da Comissão?

Na Guerra como no Amor, só a experiência é Mestra!

Quero crer que nenhum Capitão falhou deliberadamente. Alguns obedeceram a ordens absurdas. Não tiveram coragem para desobedecer...

Erros cometemos todos. Lá e cá. Não podemos voltar atrás. Quem foi culpado de, por tibieza ou estupidez, ter contribuido para tão trágicos episódios, certamente sentiu durante todos estes anos, profundo arrependimento e enorme mágoa.

Falar hoje em perdão terá algum sentido?

Abraço Grande
Jorge


PS - Junto, muito amarfanhado, o meu Louvor.

2. Comentário do editor do blogue:

Jorge, amigo e camarada: Estou em total sintonia contigo. Não se nasce soldado. Não se nasce oficial nem cavalheiro. Não se nasce líder nem comandante. Todos fomos provetas, ou pelo menos periquitos. Todos estávamos mal preparados para compreender e fazer aquela guerra. Ou até simplesmente lidar com aquele(s) povo(s). Todos aprendemos, fazendo, errando... Com sangue, suor e lágrimas... quase sempre.

Pessoalmente, tenho dificuldade em ser juiz de quem quer que seja, o mesmo é dizer, condenar ou perdoar. Muito menos ser juiz de ex-combatentes. Só posso falar do que conheci, vivi, testemunhei... Em relação aos combatentes, de um lado e de outro, que morreram, curvo-me perante a sua memória. Outros rezarão por eles. São duas formas de respeito pelos mortos em combate. Esquecer os erros, não esqueço. Erros ou negligências graves dos nossos comandantes que estiveram na origem de morte de camaradas nossos...

Perdoar os crimes (de guerra ou contra a humanidade), tenho muito mais dificuldade, mas felizmente não participei em (nem creio ter sido testemunha de) nenhum... Mas não era sobre isso a que te querias referir, tu que és perito em direito penal.

Crime e castigo, erros, louvores, punições, perdões... Ao menos, temos uma norma (saudável), na nossa tertúlia, que é a da recusa da autoculpabilização e da responsabilidade colectiva. Crime e castigo devem ter sempre um rosto... Nem o povo português nem o povo guineense podem - ontem, hoje ou amanhã - ser acusados de crimes cometidos em seu nome, pelos seus líderes políticos e militares...

__________

Notas de L.G.:

(1) Vd. posts de:

18 de Abril de 2007 > Guiné 63/74 - P1674: Efemérides (3): A tragédia do Quirafo: rezar pelos mortos e perdoar aos vivos (Joaquim Mexia Alves)

17 de Abril de 2007 > Guiné 63/74 - P1669: Efemérides (1): A tragédia do Quirafo, há 35 anos (Paulo Santiago / Vitor Junqueira / Luís Graça)

23 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P980: A tragédia do Quirafo (Parte I): o capitão-proveta Lourenço (Paulo Santiago)

21 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P976: A morte do Alf Armandino e a estupidez do capitão-proveta (Joaquim Mexia Alves)

Sem comentários: