quinta-feira, 22 de março de 2007

Guiné 63/74 - P1622: A Última Missão do paraquedista Victor Tavares (Luís Graça / Torcato Mendonça / J. Casimiro Carvalho)

Mensagem do editor do blogue (L.G.):

Amigos e camaradas:

(i) Acabámos de ver a reportagem da TVI – Última Missão -, com o nosso camarada Victor Tavares a entrar pela nossa casa dentro, as emoções contidas, a mesma coragem física de sempre, o mesmo sentido de camaradagem, a mesma dignidade humana...

Ele mostrou-nos os desolados restos do quartel de Binta, a picada até à bolanha do Cufeu, de trágicas memórias para alguns de nós, a fantasmagórica Guidaje e, por fim, o cemitério onde ficaram, para trás, o Peixoto, o Lourenço e o Victoriano ....

Nós sabemos que há outros camaradas, guineenses e portugueses, que lá ficaram, e de que não se falou na reportagem... Os actores têm sempre uma visão parcelar dos acontecimentso em que participam... O objectivo não era, aliás, esse, mas sim o de recuperar simbolicamente a memória dos ‘camaradas que nunca se deixam para trás’... A memória, logo a humanidade...

Para o Victor foi recuar a 23 de Maio de 1973, e pela enésima vez reconstituir, dolorosamente, essa terrível emboscada de 45 minutos, na bolanha do Cufeu, e voltar a levar os cadáveres do Lourenço e do Victoriano até Guidaje, cerrar os dentes, remuniciar a MG-42, romper o cerco a Guidaje, assistir aos últimos minutos de vida do Peixoto, metido numa vala, confortá-lo no último minuto e dar-lhe a ele e aos outros dois a sepultura minimamente condigna que as terríveis circunstâncias permitiam... Releiam agora, com tempo e vagar, o relato desses trágicos dias escrito pelo Victor, no nosso blogue (1)...

Ao vermos estas imagens, o que dói é não termos tido tempo para trazer os seus (e os de todos os outros) restos mortais, antes da troca de poderes entre a merópole e a colónia, entre Portugal e a nova Guiné-Bissau... O que dói é o silêncio, o abandono, a demissão, o esquecimento, o desprezo, a ignorância, o branqueamento, o faz-de-conta, o cinismo, o oportunismo... O que dói é sobretudo o facto de eles lá terem ficado (e continuarem) enterrados no perímetro do aquartelamento de Guidaje desde há 34 anos... sem nós podermos fazer o luto... O seu luto e o de tantos outros camaradas, espalhados por centenas de cantos da Guiné... Nós não fizemos o luto dos nossos mortos da Guiné, individual e colectivamente, estamos agora a fazê-lo... Um luto que hoje só pode ser patológico...

Enfim, amigos e camararadas, Binta, Cufeu, Guidaje ... hoje deram-nos a volta ao estômago, mexeram connosco, baralharam-nos as emoções... A nós e aos familiares do Peixoto, do Lourenço e do Victoriano... Seguramente, a muitos milhares de portugueses e de portuguesas que estiveram a ver a reportagem... A irmã de um deles disse, com as lágrimas na cara: “Cemitério ? Aquilo é um campo de milho, e o pobre do meu irmão lá ficou enterrado com um cão”...

Fico feliz, em todo o caso, pelo Victor que aceitou correr mais este risco, até físico... Mas foi sobretudo o risco de se expor, o risco de ver as suas emoções e sentimentos mediatizados, explorados comercialmente, transformados em espectáculo, audiometrados ... Eu, se calhar, não teria a sua coragem, física e moral... De qualquer modo, acho que a reportagem foi feita com profissionalismo, com ética, com dignidade... Parabéns também à equipa do jornalista e escritor Jorge Araújo e à TVI.

O Victor pôde, também, cumprir a sua missão, a sua última missão, ele que foi, é e continuará a ser sempre um grande e forte paraquedista, de corpo, alma e coração... E aquele campo de batalha, hoje um miserável milheiral, seco – estamos na época seca -, ganhou côr, vida, humanidade: foi um momento tocante quando o Victor se encaminhou, com um antigo e velho soldado guineense, da massacrada CCAÇ 19 - exemplo vivo do miserável abandono dos nossos soldados africanos - afixou, no chão, que serviu de última morada aos seus três camaradas paraquedistas, as respectivas fotografias que a câmara do Ricardo Ferreira nos dá em grande plano ... E falou com eles e manifestou o desejo – a sua crença – de um dia os encontrar algures, “não sei bem onde”...

(ii) Quem viu a reportagem da TVI, ficou sensibilizado.... O José Casimiro Carvalho acaba-mo de dizer: “Vi a reportagem e soltaram-se-me lágrimas com 34 anos. Terrível. Eu SEI o que foi ISTO”.

O Torcato Mendonça, outro homem de sensibilidade e solidariedade, também acabou de me mandar uma mensagem tocante:

“Luís: há gotas de água que são tsunamis. Tenho alguma dificuldade em escrever, em dizer o que sinto, em ver a merda das letras no nevoeiro dos óculos. Tive que esperar um pouco, depois de ver a reportagem e não paro agora. Só para te dizer que tem que ser feito algo. Não são só os paraquedistas que não deixam ninguém para trás. É irrelevante agora. Todos nós temos o dever de contribuir para o regresso dos militares que se encontram assim sepultados. TODOS TÊM QUE REGRESSAR.

“Parece, por vezes, estarmos envergonhados com a colonização, a descolonização, a guerra. Parece estarmos a pedir desculpas …Nós, ex-combatentes…nós?...porquê? Depois aparece uma simples carta de condução… ai Jesus!… Compreendo…nesta perca de valores, nesta quebra de auto-estima, neste País que se envolve em discussões sobre o maior ou melhor português… enfim, não vamos mais além.

O Blogue, esta tertúlia, estes camaradas de certeza que ficaram como eu – apertados e revoltados – talvez a recuar no tempo, a sentir a adrenalina a subir… a velhice a desaparecer… a raiva a vir e, a mim pelo menos, o desejo de voltar e…é melhor acalmar! Caneco, eu? Chega de palhaçada. Temos o direito a ser respeitados. Humilhados e ofendidos, já o fomos demais.

“O Victor Tavares merece um abraço, um obrigado, extensível ao Rebocho e ao Oficial Pára cujo nome me esqueci. Também aos Jornalistas, para que continuem. Um voto que isto seja o tiro de partida para que um dia TODOS regressem… É que nós contamos as nossas memórias, a história será feita posteriormente com ou sem esse contributo. Há no entanto feridas não fechadas. Ou as fechamos nós, de preferência de ambos os lados, ou ficará uma mancha na memória deste (s) Povo (s).

“Envio isto ou não? Abri, não vou reler e mando-te. Convicto que me posso ter excedido mas consciente que tem que ser feito algo.

“Dói-me demais a cabeça. Se entrares em contacto com o Victor Tavares dá-lhe um abraço de um ex-combatente… Tens muito em que pensar, mais uma… Têm que voltar… e mais não digo.

“Boa noite, Luís Graça e, através de ti, deste teu espaço na Net, deixa-me abraçar todos, independentemente da cor ou da etnia -para mim raça só a humana – que por lá passaram, tenham ou não regressado… Um abraço”...

(iii) Boa noite, Lourenço, Peixoto, Victoriano... Boa noite, Victor, boa noite Jorge Araújo, boa noite Ricardo Ferreira... Boa noite, Casimiro Carvalho, Torcato... Boa noite, camaradas... Boa noite, amigos... Boa noite, tertúlia... Boa noite, Portugal... Boa noite, Guiné...
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Nota de L.G.:

(1) Vd. posts de:

25 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1212: Guidaje, de má memória para os paraquedistas (Victor Tavares, CCP 121) (1): A morte do Lourenço, do Victoriano e do Peixoto

9 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1260: Guidaje, de má memória para os paraquedistas (Victor Tavares, CCP 121) (2): o dia mais triste da minha vida

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