domingo, 11 de fevereiro de 2007

Guiné 63/74 - P1513: Os três fuzileiros navais: desertores ou prisioneiros ? Aonde e quando ? (Jorge Santos)

Texto do Jorge Santos, ex- 1º Grumete Fuzileiro (DFA), Companhia de Fuzileiros nº 4 (Moçambique > Metangula, Cobué, 1968/70), estimado membro da nossa tertúlia desde o princípio de Julho de 2005, e editor do sítio A Guerra Colonial, uma das mais completas e antigas páginas existentes na Net, em português, sobre a guerra do ultramar.


Amigo Luís:

Envio-te um extracto de texto de Amílcar Cabral que encontrei na Net (1):

“Não devemos esquecer que há erros, faltas, atrasos: por exemplo, muitas emboscadas mal preparadas, tendência em chegar atrasado no lugar previsto, ausência de vigilância, importante nos rios, ainda que estejamos bem armados para atirar nos barcos, falta de coragem para atirar nos aviões, embora saibamos que, quanto mais atiremos neles, mais os aviadores têm medo. Não obstante saibamos que em Quitafine, e em outras regiões, como Boé, nossos companheiros foram capazes de combater os aviões portugueses com uma coragem extraordinária, muitos não seguiram este exemplo. Em muitos lugares atrasamos nossos ataques, imobilizamos nossa infantaria durante muito tempo. Muitos carregadores de patchanga[pistola metralhadora PPSH] foram estragados, porque, uma vez carregados, não foram esvaziados nos combates. Não fizemos os necessários reconhecimentos antes de passar aos ataques. O resultado é que, muitas vezes, durante os ataques, fomos surpreendidos pelas minas. Não soubemos traçar os planos necessários, tendo em vista os ataques: um dirigente pode definir um plano geral de ataque, mas, quando se trata de planos mais pormenorizados, os próprios comandantes, no momento do ataque, se sentiram incapazes. Portanto, não pudemos extrair o máximo rendimento desses ataques.

"Devemos reconhecer, por exemplo, que até hoje só fizemos prisioneiros portugueses durante dois ataques: a Cantancunda e a Bissassema. É muito pouco, tendo em vista todos os ataques que fizemos aos seus quartéis. Quando os portugueses fogem de mais de vinte quartéis, avaliamos as oportunidades que perdemos de matar ou aprisionar um grande número de inimigos. A falta de vigilância, de constância e de perseverança é infelizmente um dos defeitos característicos de nossas forças armadas.” (2).

Tenhamos agora em atenção o seguinte:

- Houve três prisioneiros portugueses, militares, feitos pelo PAIGC em Bissassema, aconteceu, salvo erro, em 2 de Fevereiro de 1968;
- Em 15 de Fevereiro de 1968 são entregues à Cruz Vermelha Senegalesa, pelo PAIGC, três militares portugueses feitos prisioneiros, com declarações de Amílcar Cabral sobre a disposição do PAIGC de parar o combate com a condição do reconhecimento do direito à independência da Guiné.

Este é o único caso de que li ou ouvi falar sobre TRÊS MILITARES (e aqui não interessa a que ramo pertenciam ou a especialidade que tinham).

Serão os mesmos da propaganda que é apresentada pelo PAIGC (3)? Se são, há aqui várias divergências:

(i) Na propaganda do PAIGC consta a data de 18 de Fevereiro (de que ano ?), e a entrega à cruz Vermelha Senegalesa dos militares portugueses acontece a 15 de Fevereiro de 1968;

(ii) Segundo o Amílcar Cabral, só houve prisioneiros em Cantacunda e Bissassema; em Cantacunda, segundo o relato do A. Marques Lopes, houve onze prisioneiros e um morto, na noite de 10 para 11 de Abril de 1968 (4);

(iii) Os militares com a especialidade de fuzileiro partiam para as suas comissões praticamente com um ano de serviço militar já feito, ou mais. Acontece que o António Pinto e o José Sentieiro, e segundo o que consta na propaganda do PAIGC, e pelos seus números de matrícula, são da incorporação de Abril de 1967. O Costa Alfaiate, segundo o seu número de matrícula, é da incorporação de Janeiro de 1968.

(iv) Ora, se segundo Amílcar Cabral, só houve prisioneiros em Cantacunda (onze, de uma só vez) e em Bissassema (aqui 3 militares ao mesmo tempo, possivelmente os fuzileiros identificados pela propaganda do PAIGC), pergunta-se: Quantas vezes o PAIGC aprisionou três militares portugueses duma só vez? Se foi só uma vez em Bissassema, pergunta-se se devem ser considerados prisioneiros ou desertores ? Quem desertava e se entregava ao inimigo era considerado prisioneiro ?

(v) Por fim, o PAIGC diz que os fuzileiros eram da base de Ganturé, na região do Cacheu (carta de Bigene). Bissassema, por sua vez, ficava a suodoeste de Tite.

A imagem reproduzida no blogue é de muita má qualidade, sendo difícil perceber a alegada satisfação dos desertores. Diz a legenda: "A satisfação dos fuzileiros navais Pinto, Alfaiate e Sentieiro, fotografados em lugar seguro, após terem abandonado a base fluvial de Ganturé". Além disso, se eles abandonaram a base de Ganturé, devem ter-se entregue ao PAIGC no norte, próximo da fronteira do Senegal e não no sul...

Enfim, face ao exposto atrás, ainda há muitos pontos a esclarecer... sobre este alegado episódio de deserção.


Jorge Santos

___________

Notas de L.G.:
(1) Vd. RATIO PRO LIBERTAS - discussão de idéias e propostas sobre liberdade, cidadania e sociedade > Nem vem com esta droga de Enem: Ou como não explicar a África, por Anselmo Heidrich

(2) Amílcar Cabral apud CHALIAND, Gérard. A Luta pela África: estratégias das potências. São Paulo: Brasiliense, 1982, p. 52.

(3) Vd. post de 4 de Fevereiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1496: PAIGC (2): Propaganda: Notícia da deserção de três fuzileiros navais (Fernando Barata)

(4) Vd. post de 18 Maio 2005 > Guiné 69/71 - XXI: O ataque e assalto do IN ao destacamento de Cantacunda (1968 (A. Marques Lopes)

"(...) Ataque a Catacunda. 10/11 de Abril de 1968

"(...) O soldado Aguiar (João Alves Aguiar) foi o único que tentou resistir com a G3 à boca do abrigo e morreu, por isso. Onze foram capturados, entre eles o furriel que comandava o destacamento, o Vaz. Foram libertados, depois, aquando da tentativa de invasão na Guiné-Conakri (Operação Mar Verde). Menos o Armindo Correia Paulino e o Luís dos Santos Marques, que morreram lá de cólera. Apesar das péssimas condições e dos fracos efectivos, é evidente (e sei que foi assim, porque me contaram) que houve desleixo e facilitismo em excesso. Se não tivesse havido, não tenho dúvidas que as coisas não teriam sido tão fáceis para os atacantes" (...)

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