sexta-feira, 22 de dezembro de 2006

Guiné 63/74 - P1392: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (26): Missirá, 1968, um Natal (ecuménico)

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Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Missirá > 1968 (?) > Cartão de Natal recebido por Beja Santos, no SPM 3778 (Missirá).





Guiné > Bissau > 29 de Julho de 1968 > Lacónico telegrama enviado pelo Mário Beja Santos à sua noiva, Cristina Allen, dizendo: "Viagem magnífica chagámos bem. Saudades. Logo que possa escrevo". Em nota manuscrita que me mandou a acompanhar, em 10 de Outubro de 2006, o documento original, ele esclareceu o seguinte: "Aqui nos telegramas, havia controlo. Só era possível utilizar expressões inócuas e fluídas. Nada de localização, elementso concretos, assuntos bélicos. 'Viagem magnífica chegámos bem' foi a frase que me sugeriram. Guarda, fia no dossiê que tu, um dia, quando eu bater a bota, entregarás no Arquivo Histórico-Militar. Vê se sensibilizas a malta a não deitar nada para o lixo. Teu amigo e admirador, Mário".


Texto e fotos: © Beja Santos (2006). Direitos reservados.


Texto recebido em 6 de Dezembro de 2006. Post nº 26 da série Operação Macaréu à Vista, da autoria de Mário Beja Santos, ex-comandante do Pel Caç Nat 52 (Missirá e Bambadinca, 1968/70) (1).

Caro Luís, este é o penúltimo episódio de 1968. Espero enviá-lo segunda ou terça feira. Volta a fazer milagres, por favor, com as ilustrações. Segue pelo correio o mesmo O Monte dos Vendavais que li em Missirá. Recebe um abraço deste amigo que viveu ontem momentos de alegria enquanto almoçava contigo e te oferecia o exemplar nº 1 de Este Consumo que nos Consome, Mário.


Comentário de L.G.:
Mário, hoje vou provavelmente decepcionar-te. Ou melhor, não pdoerei corresponder às tuas expectativas... Mas esse é também o papel do editor do blogue.
Recebi o teu livro da Emily Brönte, mas não tive tempo de digitalizar a capa. Fica para a próxima, com muita pena minha, já que era a tua empolgante leitura do dia de 25 de Dezembro de 1968. Também não encontrei na Net nenhuma imagem - com capa deste livro, em edição portuguesa (2) - que fosse suficientemente boa e pertencesse ao domínio público.

Também não vou poder postar o teu texto exactamente no dia 25, ou na véspera, 24. Hoje, 22, sigo de manhã para o Norte, para umas curtas férias natalícias, e não tenho a certeza de poder actualizar o nosso blogue nestes próximos dias. Se tiver acesso á Net, prometo encostar o teu post mais à data e hora da Consoada.
Não preciso de apelar à tua compreensão e boa vontade. Gostei, pá, da tua festa do Natal 68 em Missirá. Chamei-lhe ecuménica... Não páras (nem pares) de nos surpreender. Luís".


O Natal em Missirá
por Beja Santos

Desde o início de Dezembro que estão a chegar ao Cuor pacotes com pinhões, broas de milho e castelar, passas, avelãs, ameixas e até tâmaras. Múltiplos e misteriosos reis magos cirandam nos céus e depositam discretamente os acepipes natalícios que aterram em Bissalanca e daqui por mar e pelo ar chegam a Bambadinca.

Repito: não há oficial, sargento ou praça que não tenha um contacto a estabelecer para trazer outros acepipes para a festa de Natal em Missirá. O Augusto virá esbaforido com um bolo-rei que só arrefeceu a bordo do avião. Quando vou a Bafatá comprar vitualhas e adornos, cruzo-me com o Almeida que regressa de férias e traz fritos. Há a consoada e há o almoço de Natal.

Enquanto correm os preparativos, continuam as obras, as aulas, os patrulhamentos. Jobo Baldé, a 25, fará uma fornada suplementar de pão para o almoço comunitário. Haverá dois cabritos (depois de acalorada discussão na messe, os católicos percebem que não pode haver leitão nas mesas a pôr na parada) que foram encomendados em Santa Helena e Bantajã Mandinga.

Enquanto jantamos, os dois cozinheiros são inquiridos quanto às necessidades de trabalho extra e voluntário: canja, saladas de vegetais e fruta, sumos, tudo foi discutido ao pormenor, e na melhor divisão taylorista cada um conhecia as funções e desempenhos na organização de festejos, a partir de 23.

Reuni os homens grandes presididos pelo régulo. Aceitaram participar no festim, estabelecendo as regras de jogo: os homens sentados, as mulheres e as crianças comeriam quando eles partissem. E chegou o convite mais inesperado: queriam que os cristãos fossem rezar à mesquita, pedindo a Deus todo misericordioso que trouxesse a paz à Guiné, aproveitando para louvar o profeta cristão. Garanti-lhes que sim, no todo ou na parte brancos e cabo-verdianos aceitariam o honroso convite da oração comum.


Missirá: lugar de encontros e desencontros


Na azáfama, a roda dos acontecimentos continua a pregar as suas partidas, ludibriando o destino. Por exemplo, depois do José Manuel Fernandes, aqui já invocado no episódio A visita do soldado desconhecido, chegou a vez do surpreendente encontro com um civil desconhecido, mesmo no cruzamento de Canturé com a estrada que vem de Gambaná. Passo a descrever.

Finete, dava-nos sempre problemas e a burocracia de Bambadinca pediu uma relação minuciosa do armamento e fardamento. Se num aquartelamento de uma companhia de caçadores a tarefa pode ser um emaranhado de procedimentos de que toda a gente foge, na Finete mandiga e fula, expressando-se em crioulo, foi um pouco apetecível pesadelo de confere e confirma: horas e horas a ouvir as interpretações da nomenclatura local à nomenclatura oficial (para quem não sabe ou recorda, um par de peúgas era conhecido como um "ferro de meia curta" e um dólmen era conhecido por "casaquinho de ronco"...).

Findo o pesadelo, confirmada a relação do armamento e fardamento, guardados na viatura os restos da roupa podre e até pedaços de armas, regressámos a toda velocidade com a vizinhança do anoitecer. Eu ia ao lado do Setúbal que, exactamente quando avistámos o cruzamento de Canturé, me gritou:
- Porra, temos ali um gajo aos gritos e juro-lhe que não é dos nossos!

Segurei-lhe o braço com o pedido de parar imediatamente. Era de facto uma cena irreal: um homem esquálido com as mãos na nuca gritava frases inintelegíveis, enquanto corria para nós. Mandei saltar toda a gente da viatura, não fosse artimanha para emboscada. O visitante inesperado correu para nós, suava, os seus olhos parecia que tinham visto a morte, bebeu golos fartos do cantil que lhe pus nas mãos.
- Então, que se passa, meu amigo?

E veio a narrativa mirabolante, chamava-se Amadu, era natural de Bafatá e negociante de panos. Deslocara-se a Bissau a fim de se reabastecer com novos stocks. Regressara hoje de manhã num barco que fizera uma viagem normal até Porto Gole, mas junto a Ponta Varela, os rebeldes apareceram no Terrafe e foguearam com RPG2. Enquanto a embarcação guinava à deriva, o Amadu, apavorado pelo fogo e corpos esburacados à volta, atirou-se ao Geba com um pneu e à falta de melhor correu pela estrada de Mato de Cão, virou à direita e chegou a Canturé.

Isto contou ele em minutos com uma voz incendiada e olhando para trás, como se houvesse perseguidores. Usando de prudência, redobrada a cautela, rumámos para Missirá. Aqui o Amadu bebeu o leite que lhe apeteceu, banhou-se, mudou de roupa e adormeceu a refazer-se da tormenta. Amanhã, tal como fizemos com o José Manuel Fernandes, vamos reconduzir Amadu às suas lides quotidianas.

Outra história que aconteceu neste tempo merece igualmente registo. O Cabo Veloso, nosso estimado quarteleiro, partiu na companhia do Saiegh e do Domingos Ferreira. Fomos buscar o seu substituto, o Antero, um jovem de Penalva do Castelo. Passou cinco dias a aprender os locais onde se guardavam as tesouras corta-arame, as peças dos petromaxes, os livros do deve e haver da cantina. Ao fim desses cimco dias, o Teixeira trouxe uma mensagem decifrada:
- 1º Cabo Antero regressar este motivo erro de colocação.

E o Antero partiu para Bedanda. Partiu emocionado pois não precisamos de ser jovens para sabermos quanto pesa a boa camaradagem. E mais outra história. Continuamos a reconstruir as moranças seriamente atingidas pela flagelação de 6 de Setembro. Nem eu nem os furriéis recebemos noções de arquitectura militar. Quando, em Março de 69, aparecer no Batalhão de Engenharia de Brá e perguntar se existe algum manual para este tipo de edificações, a risota dos engenheiros Rui Gamito e Emílio Rosa foi farta e sincera: cada um constrói como sabe, quanto muito alguém da delegação de Bambadinca poderá emitir alguns pareceres no local. Quando em Bambadinca pedi uma ajuda voluntária, vi o pânico estampado no rosto dos furréis e cabos:
- Ir a Missirá? Só se formos de manhã e viermos à noite.

Ora os problemas surgiam como cerejas, umas vezes o reboco ficava imperfeito, outras vezes a parede ficava assimétrica, outras vezes era preciso mestria de carpinteiro para que a esquadria da porta fosse fixada. Pois é exactamente nesta balbúrdia que chega um enxame de gente que vem do Cossé ajudar a gente de Missirá nos cultivos. De um dia para o outro, soldados nativos em férias, mulheres, crianças de peito, bajudinhas, baús, camas de ferro desmontadas, galinhas e sacos de arroz entraram pelo cavalo de frisa de Missirá como se fosse um êxodo bíblico.

Paro por aqui, pois estou ansioso por vos relatar a consoada e o almoço de Natal. Abalados com o desastre do Paulo, não escondíamos a tristeza naquele sentimento contraditório de quem vive uma festa com uma alegria naturalmente mitigada. Por sugestão do Raposo e do Adão a consoada começou pelas 11h da noite com um bacalhau cozido, batatas e couves. Soube que houve peripécias para arranjar alho, ele lá apareceu com a pimenta, a salsa e a cebola picada.

Seguiram-se os fritos e todos os meus pedidos à moderação caíram por terra: não sobraram coscorões nem fatias paridas para o dia seguinte, isto depois de uma discussão horrível e acusações injustas ao Setúbal que tinha feito uma calda a descontento dos fundamentalistas. Avisei a comunidade cristã que havia limites para a consoada, que findou com copos de vinho do Porto.

Às 2 da manhã, uns com lágrimas do álcool alargado e generoso, outros exaustos, partimos para a cama, arrumada a messe. Fui acabar de ler uma obra prima de que vos vou falar adiante, O Monte dos Vendavais, de Emily Brontë.

Como nos bastidores de um filme, a parada, a 25 de Dezembro, era um movimento de mesas, panos e baixela para a comida. Tudo o que servia para sentar apareceu dos locais mais inesperados. Pelas 11 da manhã, a criançada cercava Jobo Baldé, Gibrilo Embaló e Dauda Seidi, os padeiros de serviço. Ainda hoje guardo o cheiro do pão e a chilreada das crianças nesse dia. O pão seguiu em cunhetes de bazuca para a messe, a aguardar a hora do banquete. Seguiu-se o cheiro dos cabritos assados e, por exigência dos nossos cabo-verdianos uma tachada de arroz no forno.

Ao meio dia, toda a Missirá se juntou ao ágape. Vou ser conciso para travar a profunda emoção daquele momento. Após uma saudação curta de boas vindas, convidei os homens grandes a servirem-se. Avançou seguidamente o pelotão de milícias e recebi um abraço do seu comandante, Albino Mamadu Baldé, a quem eu muito afectuosamente sempre chamei o Príncipe Samba. Tomou depois lugar à mesa a malta do 52.

Para minha surpresa, o Domingos da Silva falou do dia de paz e a importância do nascimento do Menino e recordou outros Natais passados em Bissau. Pelas duas horas, a tropa abandonou a mesa e entregou a festa a mulheres e crianças de todas as idades. Cada um de nós regressou às suas moranças e abrigos, conforme previamente se acordara. Fiquei a fazer horas até irmos à mesquita, ao fim da tarde.

O Monte dos Vendavais

Acabei então a leitura de O Monte dos Vendavais. Não houve maior gratificação depois da festa de Natal mais linda de toda a minha vida. Visitei em 2004 Haworth, no Yorkshire, onde viveram as três irmãs Brontë (Charlotte, Emily e Anne). Introduzido naquela minúscula casa, um cicerone ilustrava as fases da vida quotidiana das filhas do reverendo Patrick Brontë. Como eu tinha lido esta obra prima décadas atrás, quando ele explicou que as três irmãs andavam à roda da mesa da sala de jantar contando os seus sonhos e falando das obras que queriam escrever, não me saía da cabeça aquelas leituras que fizera em Dezembro de 1968.

O Monte dos Vendavais é certamente uma das histórias mais prodigiosas do amor eterno. Emily recorreu a uma estrutura profundamente original para este romance. Socorre-se de um novo inquilino que vai viver na Herdade dos Tordos, o Sr Lockwood que é muito mal recebido no Monte dos Vendavais pelo Sr. Heathcliff. Uma criada e ama, Ella Dean, vai contar todas as vicissitudes afectivas do passado e presente do Monte dos Vendavais. Um proprietário abastado, Earnshaw traz uma criança que encontra abandonada no decurso de uma viagem. A filha do proprietário, Catherine, ou Cathy, irá apaixonar-se por Heathcliff. Nesta Inglaterra rural esta paixão conhece as reviravoltas da fortuna, a ponto de Cathy casar com outro e Heathcliff, por processo vingativo, casar com a irmã de Cathy, Isabella. A obra, na narrativa da ama, Ella Dean, vai de clímax em clímax, Cathy morta, haverá muitos falecimentos que levam a um final inesperado em que uma jovem e outra Cathy se vai apaixonar por um outro jovem que conhecera humilhações parecidas como as que sofrera Heathcliff na sua juventude.

O que ainda hoje guardo desta obra maravilhosa é o esplendor romântico de um amor que roça permanentemente a partida para a sepultura. Emily Brontë socorre-se de imagens do desespero, de declarações desvairadas em que a prosa manipula o melhor fraseado teatral, tornando o ultra-romantismo plausível. No final da obra, os espectros de Heathcliff e Cathy vão pairar sob as charnecas e os vales de Yorkshire. As juras de amor eterno foram mesmo cumpridas.

Ainda no êxtase destes sentimentos arrebatadores, sou convocado para a oração comum. Compareço bem como toda a comunidade cristã. Lânsana convida-nos a erguer as mãos e ouvimo-lo elevar o seu cântico até Deus. O Deus monoteísta terá regozijado por este encontro de Natal. Quando saímos para a ampla parada dou com um céu muito claro mas pontilhado de estrelas. Vão seguir-se as obrigações da guerra.

Quero reflectir convosco como vi, como estou a ver e a viver depois de 150 dias em Missirá. Eu e a gente de Madina já nos medimos e grandes recontros estão para vir. Até ao fim do ano, vou patrulhar metro a metro as margens do Geba, sobretudo a margem direita por onde se cambam vacas e arroz, seremos vistos em Fá Balanta, Fá Mandinga, Jada, Biana e Bissaque. É daqui que parte sustento fundamental para o outro lado do Cuor.

Vou desafiar a ferro e fogo esta corrente de abastecimento. Daqui até Outubro de 69 tudo nos irá acontecer: logo em Janeiro, mais sangue derramado em Chicri, a captura de um civil em Quebá Jilã. Depois, em Fevereiro a vinda do Brigadeiro Spínola e do Tenente-Coronel Hélio Felgas a Missirá. Mais tarde, a dolorosíssima Anda Cá onde vai ficar brutalmente ferido Fodé Dahaba. Muito e muito sofrimento para vos contar.

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Notas de L.G.:

(1) Vd. posts anterior > 18 de Dezembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1376: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (25): O presépio de Chicri

(2) Há uma edição portuguesa popular deste romance de Emily Brönte, de 1953 (Editora Romano Torres, 347 pp). Confesso que as Brönte, as irmãs Brönte, não são a minha leitura preferida...

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