quarta-feira, 13 de dezembro de 2006

Guiné 63/74 - P1366: A galeria dos meus heróis (6): Por este rio acima, com o Bolha d'Água, o Furriel Enfermeiro Martins (Luís Graça)

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Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Bambadinca > Natal de 1969 > Sargentos e furriéis da CCAÇ 12 (1969/71) e da CCS do BCAÇ 2852 (1968/70).

Legenda: (i) da esquerda para a direita, na 1ª fila: o Jaime Soares Santos (Fur Mil SAM, vulgo vagomestre); o António Eugénio da Silva Lezinho, Fur Mil At Inf; o António M. M. Branquinho, Fur Mil At Inf; o Humberto Simões dos Reis, Fur Mil Op Esp; o Joaquim A. M. Fernandes, Fur Mil At Inf);
(ii) da esquerda para a direita, 2ª fila, de pé: 2º Sargento Inf José Martins Rosado Piça; o Fur Mil Armas Pesadas Inf Luís Manuel da Graça Henriques; um 2º sargento, de cujo nome não me lembro; o 1º Sargento Cav Fernando Aires Fragata; o Fur Mil Enfermeiro João Carreiro Martins; e um outro 1º sargento de cujo nome também já não me lembro mas que julgo ser da CCS do BCAÇ 2852... (LG)


Foto: © Humberto Reis (2006). Direitos reservados.




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Guiné > Rio Geba > LDG Bombarda > A caminho do Xime > 2 de Junho de 1969 > O Fur Mil Ap Arm Pes Inf Henriques, da CCAÇ 2590 (futura CCAÇ 12),  um periquito a bordo... Destino: Contuboel (em coluna auto a partir do Xime, com passagem por Bambadinca e Bafatá)...

Foto: ©
Luís Graça (2005). Todos os direitos reservados reservados.

O cruzeiro das nossas vidas (1): do Niassa à LDG Bombarda ou o meu primeiro herói, o Pastilhas da CCAÇ 12 (2)

por Luís Graça



(i) A bordo do Niassa. 28 de Maio de 1969

Eis-me nos tristes trópicos, parafraseando o título brasileiro do livro de viagens e de etnografia do Lévi-Strauss que levo na babagem que está no porão. Atravessei hoje o Trópico de Câncer, com velocíssimos peixes voadores e alguns alegres golfinhos a acompanhar-nos. Lembrei-me do romance escaldante do Henry Miller que li em tempos, em edição brasileira, mais tarde proibida pela ditadura militar.

Lembrei-me sobretudo do meu velhote, que esteve em Cabo Verde, como expedicionário (adoro a palavra!), com o posto de 1º cabo, em plena II Guerra Mundial. E das histórias de tubarões que ele me contava, quando criança. Ele gostava de fazer mergulho e nadar, na baía do Mindelo, mas tinha medo que se pelava dos tubarões! (3).

Cabo Verde > Ilha de São Vicnete > Mindelo > 1943 > 1º Cabo Inf Luís Henriques

Legenda: "No dia em que fiz 22 anos tirei esta fotografia em Mindelo, celebrando as minhas vinte e duas primaveras felizes. Luis Henriques. Em 19/8/943. S. Vicente, C. Verde. Senti neste dia muitas saudades dos meus, dos amigos e também da minha terra [, Lourinhã]. Luís".


Foto: © Luís Graça (2005). Todo os direitos reservados.




Do fundo da memória, vêm à superfície fotos amareladas de barcos e tubarões. Barcos ingleses, italianos, alemães, portugueses, ancorados na baía do Mindelo, ou ao largo, numa entente cordiale... Lembrei-me de um deles, o Mouzinho de Albuquerque, que tomou o nome de um trágico herói colonial... Dizem que o Mouzinho, o herói de Chaimite, se suicidou por não suportar o boato que corria nos mentideros de Lisboa de que era o amante da rainha Dona Amélia, fidelíssima esposa do seu amado rei D. Carlos...


A bordo do Niassa perguntava-me a mim próprio:

- E se Cabo Verde tivesse sido invadido, em 1941, 42 ou 43, como ao que parece chegou a estar nos planos dos Aliados ou até das potências do Eixo ? Muito provavelmente eu nunca teria nascido, ou se tivesse nascido falaria alemão,  e não estaria agora a caminho da Guiné, a bordo do Niassa, um navio da carreira colonial fretado pelo exército…



Cabo Verde > Ilha de São Vicente > Mindelo > 1942 > O Paquete Mouzinho.

Foto: ©
Luís Graça (2005). Todos os direitos reservados.


Alguém se lembrou, entretanto, de abrir uma garrafa de champagne (um espumantezeco nacional, de cabaré) como se tivéssemos atravessado o Equador em alegre cruzeiro de meninos ricos de colégio fino pelo Atlântico Sul. Com um sorriso verde-amarelo, também participei neste ritual de iniciação, erguendo a minha taça:

- Afinal, estamos todos no mesmo barco! – comentei para o meu parceiro do lado, o Furriel Miliciano Enfermeiro Martins.

Não sei se ele terá percebido o meu humor negro. Não era tipo para achar piada ao meu sentido de humor. Recordo-o, ainda hoje, como um homem simples, sensível, tímido, reservado, com ar bonacheirão mas assustado, a par de uma calvície precocemente galopante:

- Estamos todos no mesmo barco, Martins!... Quero eu dizer: estamos fodidos, quilhados, embarcados numa aventura que pode ser sem regresso… - repetia-lhe eu, em vão.

Eu que me julgava um tipo bem educado e civilizado, comecei a falar mal desde que soube da minha mobilização para a Guiné, em finais de 1969. A falar mal, a beber e a fumar. Falava-se mal, na tropa. Bebia-se e fumava-se, em demasia, no meu tempo de tropa. Como se o Niassa fosse uma extensão marítima do Cais do Sodré e das suas espeluncas. O Martins era incapaz de dizer uma asneira: constava-se que já era enfermeiro na vida civil… Mas eu sabia pouco ou nada dele. Sabíamos muito pouco uns dos outros.

A bordo comia-se e bebia-se o dia todo para matar o tédio, para suportar a angústia da viagem, para fazer lastro e sobretudo para não dar parte de fraco e andar a chamar pelo Gregório pelos cantos do navio. Não há gajas, queixava-se o Videira, 2º sargento do quadro, que à última hora ainda desafiou a malta para ir fazer a despedida ao Bairro Alto.

Era a velha tradição das rotas da navegação colonial. Havia os viciados da lerpa e do king. Como haveria depois, no teatro de operações da Guiné (no TO da Guiné, para utilizar a nossa linguagem de código), os viciados do álcool, da comida, do sexo, da caça, da guerra, da escrita diária de aerogramas às madrinhas de guerra…


Os oficiais superiores, esses, divertiam-se com o tiro ao alvo na popa do navio, enquanto a malta da turística escrevia cartas, aos pais, namoradas, noivas e mulheres, cartas que eu imaginava já molhadas de lágrimas salgadas e de saudades.

As praças, essas, vomitavam nos porões. Um riacho de água verde-escura escorria pelo convés. Todo o navio fedia, tresandava a merda,  e no meio do cheiro nauseabundo havia um desgraçado de um desertor que ia a ferros, qual gado levado para feira. Diziam que fora apanhado pela Pide na fronteira de Vilar Formoso, e recambiado para Santa Margarida, ainda a tempo de apanhar o comboio-fantasma até ao Cais da Rocha Conde de Óbidos onde o esperava o Niassa.

- De mal o menos, ia como básico, para a Guiné. Melhor do que ser atirador ou ficar a apodrecer no presídio militar…- pensava eu.

O pobre do desertor era alvo da chacota da maralha: alguém insinuara que o gajo era maricas e que não teve tomates para ir para a guerra… Era um velho truque da velha instituição militar que das tripas sabia fazer coração, que da merda fazia nervos de aço... Só para manter o moral das tropas, só para aguentar a guerra…

- Até quando ? - interrogava-me eu, em silêncio.

- Lembrem-se, seus cabrões, que vocês são a fina flor da nação! – massacrava-nos o tenente Esteves, na parada em Tavira, no Curso de Sargentos Milicianos…

Dentro de um dia desembarcaríamos na Guiné da qual espantosamente eu não sabia nada a não ser aquilo que me haviam impingido nos bancos da minha velha escola do Conde de Ferreira e que eu teria reproduzido, como um papagaio, no exame da 4ª classe ou da admissão:
- Descoberta pelo navegador português Nuno Tristão, que viria a ser morto pelos indígenas ao tentar desembarcar numa das ilhas do arquipélago dos Bijagós, a Guiné tem mais do que um terço da superfície de Portugal Continental...

E acrescentava, de acordo com o livro de leitura:

- O clima é tropical húmido, e o território muito plano e baixo, com vastas regiões alagadiças e pantanosas, o que torna difícil a adaptação do europeu. Quanto à vegetação, predomina a floresta tropical e a savana arbustiva. A população – um pouco mais de meio milhão de almas – divide-se por uma grande variedade de grupos da raça negra, sendo os mais importantes os balantas, animistas, e os fulas, islamizados.


E finalizava com a informação sobre a econonomia da província:Desde que deixáramos as Canárias, que eu não suportava aquele calor pegajoso, aquela angústia difusa que destilava através dos poros da pele. Tinha sintomas de febre e já não sabia distinguir onde acabava a realidade e começava o delírio.

De facto tudo fora tão brutal: a ordem de mobilização recebida em Castelo Branco; a ressaca dos primeiros copos na noite do tremor de terra; a apresentação em Santa Margarida, a Escola Preparatória de Quadros e a Instrução de Aperfeiçoamento Operacional (IAO)  com os rocambolescos assaltos nocturnos aos bivaques do inimigo para sacar tudo o que fosse bebível e comestível; os breves dias, tristes, de licença antes do embarque; a viagem directa, nocturna, quase clandestina, em comboio especial até ao cais de embarque, no porto de Lisboa; os capacetes brancos dos polícias militares; os nossos familiares e amigos de rosto tenso, alguns de gravata preta; as gaivotas estranhamente pousadas nos mastros dos navios; as fragatas do Tejo, silenciosas mas tensas; os guindastes, o Tejo, a ponte que, de Almada, eu vira elevar-se das águas nos primeiros anos de 60; o Cristo-Rei, de braços abertos como um espanta-pardais numa tela de Dali; o apito breve mas pungente do navio, breve como um tiro, arrepiante como o sentimento indefinível de quem em Lisboa partia e de quem em Lisboa ficava; o marinheiro que soltava as amarras, um vulto, uma mão, um lenço…

E, já no mar alto, ao largo dos Açores, eu próprio tivera a sensação de ter atravessado o pórtico do tempo e entrado num barco-fantasma, sobrevivente da odisseia dos antigos nautas, à deriva nos medonhos mares de que nos falavam as velhas histórias trágico-marítimas…

Que fazia eu, que fazíamos nós – o Martins, o Videira, o Piça, o Tony, o Humberto Reis, o Fernandes, o Luciano, o Sousa, o Marques, o Arménio, o Gabriel , o Abel, o Carlão, o Moreira e tantos outros, centenas e centenas de homens, milicianos ou do contigente geral -, acondicionados como gado em porões nauseabundos, ali naquele barco da carreira colonial, vogando fora do tempo e do espaço, como se Gil Eanes nunca tivesse dobrado o temido Cabo Bojador, desfeitas as lendas do Mar Tenebroso e assim aberto o caminho marítimo para o longínquo sul, para o fim do mundo, e para os eldorados que havia por achar?!...

- Duplamente embarcado, meu velho. Fodido, quilhado! – repetia eu, de novo para o Martins, ao avistarmos ao longe a luz trémula do farol da
Ilhéu dos Pássaros, à entrada do Porto de Bissau, e ao ouvirmos pela primeira vez uma tempestade tropical que, no meio do alvoroço provocado pelo grito Terra à Vista!, alguém confundira com o tão temido ribombar dos canhões.

- As principais exportações são o amendoim, o coconote, as madeiras exóticas e o óleo de palma. A capital e a residência do Governador é a linda e moderna Bisssau.

Foi a pensar nas zonas pantanosas e alagadiças da Guiné, nos seus mil e rios e braços de mar, nas suas margens lodosas, nos seus tentáculos traiçoeiras, que eu encomendei ao meu velho, pomposamente colectado nas finanças como industrial de sapateiro, um par de botas de cano alto, à cavaleiro... Julgava eu, na minha santa ignorância ou ingenuidade, que ficaria melhor protegido contra as temíveis sanguessugas e víboras... Felizmente, tive o bom senso de cancelar a encomenda à última hora, com as medidas e a forma do pé já nas mãos de um dos oficiais de sapateiro que trabalhavam para o meu pai...


- Tite, Fulacunda, Buba! - alguém alvitrava nomes, como se fosse o cicerone daquele estranho tour by ngiht de aproximação à capital de um país em guerra...



(ii) Bissau. 29 de Maio de 1969

No dia seguinte, de manhã, desembarcávamos numa cidadezinha térrea, de casas térreas, de adobe, rachas de cibe e chapas de zinco, com quintais cheios de mangueiras, e onde em dois ou três quarteirões feitos a régua e esquadro se concentrava a administração, o comércio e a tropa (4).

Nas ruas, sujas das primeiras enxurradas de Maio, putos vendiam mancarra e eu começava a aprender as minhas primeiras palavras de crioulo. Gilas, de balandrau branco, óculos de sol e transistor a tiracolo, mercadejavam bugigangas de contrabando, falando um estranha mistura de francês, crioulo e dialectos locais (5). Os sons, os sabores e as cores de África baralhavam-me os sentidos e as emoções.


Nunca esquecerei aquela baforada de ar quente quando, nos primeiros dias, saímos dos Adidos e púnhamos o pé em cima da terra vermelha escaldante ou do asfalto quase líquido... E dos primeiros pesos gastos em bebidas de latas bem geladinhas... Foi em Bissau - creio eu - que eu pela primeira vez vi bebidas em lata que se bebiam dum sorvo, à sombra de uma magueira ou debaixo de uma ronceira ventoínha... Foi em Bissau que descobri a Seven-Up, a Orange ou a Coca-Cola, em lata...

Em relação à Cola-Cola, devo confessar que não me tornei fã, talvez por uma razão tão esrtúpida como  político-ideológico: partilhava dos preconceitos da época segundo a qual a Coca-Cola era a água suja do imperialismo norte-americano...

As imagens que eu tenho de Bissau, entre 30 de Maio e 2 de Junho de 1969, são fugidias, impressionistas, estereotipadas... Logo de manhãzinha, já as esplanadas estavam cheias de tropa à civil, beberricando cerveja, enquanto no mastro da fortaleza oitocentista da Amura flutuava uma descolorida bandeira verde-rubra. Indiferente aos velhos canhões de bronze, uma mulher passava com o filho às costas e um balaio à cabeça. Canoas talhadas em grossos troncos de poilão partiam do mítico cais do Pijiguiti, sulcando as águas lamacentas da Ria, em busca de mafé. Ronceiros aviões levantavam voo de Bissalanca e, no meio da praça do Império, em cima de um Unimog, de pé e de braços abertos, alguém de nós, militar, exclamava:
- Camaradas, cinco séculos de história vos contemplam!


(iii) Pelo Geba acima, na LDG Bombarda

Três dias depois iriam dar-nos uma G-3, novinha em folha, e uma ração de combate, para de seguida nos porem no fundo duma LDG, a caminho do Leste, Rio Geba acima, escoltados por uma equipa de fuzileiros navais que, à medida que o ri estreitava, batiam com fogo de morteirete a cerrada vegetação das margens (o tarrafe) até às proximidades do Xime…

Íamos dois, eu e o Martins, sentados em cima de uns colchões de espuma, empilhados numa Berliet… O fogo de morteirete dos fuzileiros apanhou-nos de surpresa… Qual não é o meu espanto quando o Martins, à saída da primeira granada se lançou de cabeça para o fundo da LDG!… Eu, que era de armas pesadas de infantaria, não tive felizmente reflexos tão rápidos como os do Martins que, na queda, acabou por ser a nossa primeira vítima na Guiné.

Com um olho à Belenenses e com contusões no rosto, o pobre do Martins, por ironia enfermeiro, foi o primeiro de nós a testar a competência dos nossos cabos maqueiros, seus subordinados dos serviços de saúde militar, que, noutras circunstâncias bem mais dramáticas, irão salvar a vida a alguns de nós…
- Como um cão apanhado na rede! - resmungava eu sentado na capota da Berliet, prescrutando a linha do horizonte, a bordo da LDG Bombarda...

Pobre Bolha d’Água, pobre Pastilhas!... A alcunha, as alcunhas, ficaram-lhe para sempre coladas à pele. Hoje, reconstituindo os acontecimentos em retrospectiva, penso que ele foi o meu primeiro herói, ou melhor, o meu primeiro anti-herói: nunca o vi a pegar uma arma, duvido até que fosse capaz de pôr a G-3 em posição de tiro; nunca alinhou connosco em operações, mesmo nas grandes operações; recordo-o sempre de bata branca, na palhota que servia de enfermaria, no posto médico de Bambadinca, e onde todos os dias uma interminável fila de mulheres, crianças e velhos aguardava a sua consulta de enfermagem (alguns seguramente gente de Nhabijões, quiçá até vivendo no mato, sob controlo do PAIGC...


Como enfermeiro, era um tipo competente, despachado, lesto, e a quem de resto recorríamos, com frequência, para picar as nossas bolhas de água nos pés, curar os nossos esquentamentos, com umas valentes doses de penicilina, ou aliviar os febrões do nosso paludismo..

Ele foi o mais útil de todos nós, soube cuidar de nós e da população local... Em contrapartida, gostávamos de lhe pregar partidas, algumas de mau gosto, gratuitas e até perigosas: recordo-me de um dia - às tantas da noite, no regresso de uma emboscada - o termos acordado, com uma pistola Walther apontada à cabeça; ou de o termos obrigado, com a cumplicidade do comandante da CCAÇ 12, já na parte final da comissão, a vestir no camuflado, a pegar na G-3 e a pôr ao ombro a mochila dos primeiros socorros... Simulámos uma ida ao mato, soprando-lhe ao ouvido um temível nome como Ponta Varela, Poindão ou Ponta do Inglês... Dissemos-lhe que ele não nunca poderia voltar connosco a Lisboa, virgem, sem o baptismo de fogo...

Cinquenta metros depois de termos passado a porta de armas a caminho do objectivo, o Martins teve um colapso, um ataque de pânico, vomitou por cima e por baixo, acabou por ser ele a pregar-nos um grande susto... Levámo-lhe de urgência ao posto médico...

No dia seguinte lá estava ele a servir as suas pastilhas aos doentes africanos, de Bambadinca, Bambadincazinha e tabancas dos arredores... Era aí que ele se sentia gente, e sobretudo enfermeiro a tempo inteiro... Um homem absolutamente deslocado na tropa e na guerra...

Voltei a encontrá-lo, muitos anos mais tarde - vinte anos depois - , numa situação algo insólita: era enfermeiro chefe no Hospital Curry Cabral, em Lisboa, e estava a agora a frequentar um curso de administração de serviços de enfermagem, na Escola Superior de Enfermagem Maria Resende. Os nossos papéis agora eram outros: ele, aluno; eu, professor...

Sei que ele hoje está reformado... Voltei a encontrá-lo mais tarde e lembro-me de ele me ter falado, com muito orgulho, com um brilhozinho nos olhos, dos seus seus dois filhos, agora médicos... Perdi-lhe depois o rasto, mas confesso que gostaria de voltar a encontrá-lo, em Lisboa, ou aqui na nossa tertúlia, para lhe dizer que ele agora faz parte da minha de galeria de heróis e também para lhe pedir desculpa de algumas das nossas brincadeiras mais estúpidas que o terão magoado...

A guerra é cruel, e torna os homens estúpidos e cruéis. E o homem - primata social, territorial e predador - tem, além disso, a particularidade comportamental de ser o único animal do mundo que mata ou humilha as suas presas por mero prazer, usando a violência gratuitamente, sem necessidade...

O Martins teve o azar de ter sido marcado, desde muito cedo, como alguém que parecia transmitir medo, fraqueza, vulnerabilidade, insegurança - sinais a que qualquer predador está atento, quando observa uma potencial presa. O Martins era um verdadeiro animal acossado nos primeiras semanas ou meses de Bambadinca: ainda antes do lusco-fusco era frequente vê-lo a rondar os abrigos como se estivessemos na iminência de um ataque... Ora no tempo dele, no nosso tempo, nunca houve felizmente uma ataque directo ao aquartelamento de Bambadinca...

Por outro lado, ele cometera em Contuboel (onde estivemos um mês e meio, no início da comissão) um erro tático ao relacionar-se, de maneira preferencial, com o grupinho do 1º Sargento Fragata, com quem de resto tinha mais afinidades... Os milicianos, sobretudo os operacionais, em conflito com o Fragata, marcaram o Martins e às vezes faziam-lhe a vida negra...

Meu caro Martins: neste Natal de 2006 desejo-te longa vida e muita saúde, contrariando o provérbio popular que garante Muita saúde, pouca vida, que Deus não dá tudo... Se leres esta mensagem, contacta-me por favor... Há uma conversa que começámos no Niassa e que ficou por terminar...
_______

Notas de L.G.:

(1) Vd. postes de:

21 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1301: O cruzeiro das nossas vidas (4): Uíge, a viagem nº 127 (Victor Condeço, CCS/BART 1913)

21 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1300: O cruzeiro das nossas vidas (3): um submarino por baixo do TT Niassa (Pedro Lauret)

19 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1296: O cruzeiro das nossas vidas (2): A Bem da História: a partida do Uíge (Paulo Raposo / Rui Felício, CCAÇ 2405)


12 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1271: O cruzeiro das nossas vidas (1): O meu Natal de 1971 a bordo do Niassa (Joaquim Mexia Alves)

(2) Sobre a série Galeria dos meus heróis, vd posts de:

13 de Setembro de 2005 > Guiné 63/74 - CLXXXVIII: A galeria dos meus heróis (1): o Campanhã (Luís Graça)

14 de Outubro de 2005 > Guiné 63/74 - CCXLII: A galeria dos meus heróis (2): Iero Jau (Luís Graça)

12 de Janeiro de 2006 > Guiné 63/74 - CDXLIV: A galeria dos meus heróis (3): A Helena de Bafatá (Luís Graça)

1 de Agosto de 2006 > Guiné 63/74 - P1011: A galeria dos meus heróis (4): o infortunado 'turra' Malan Mané (Luís Graça)

1 de Agosto de 2006> Guiné 63/74 - P1014: A galeria dos meus heróis (5): Ó Pimbas, não tenhas medo! (Luís Graça)

(3) Sobre o meu pai, Luís Henriques, 1º cabo de infantaria, expedicionário em Cabo Verde, Ilha de São Vicente, Mindelo (1941/43), vd. posts de:

12 de Julho de 2005 > Guiné 69/71 - CIV: Cabo Verde (1941/43) (1): os mortos e os esquecidos do império (Luís Graça)

26 de Julho de 2005 > Guiné 63/74 - CXXVI: Cabo Verde (1941/1943) (2): esperando os invasores (Luís Graça)

22 de Outubro de 2005 > Guiné 63/74 - CCLIV: Cabo Verde (1941/43) (3): sodade di Son Vicente

4 Dezembro 2005 > Guiné 63/74 - CCCXXXV: Cabo Verde (1941/43) (4): Mindelo, terra de B.Leza e de Cesária Évora (Luís Graça)


(4) Vd. série Estórias de Bissau:

11 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1266: Estórias de Bissau (1): Cabrito pé de rocha, manga di sabe (Vitor Junqueira)

11 Novembro 2006 > Guiné 63/74 - P1267: Estórias de Bissau (2): A minha primeira máquina fotográfica (Humberto Reis); as minhas tainadas (A. Marques Lopes)


14 Novembro 2006 > Guiné 63/74 - P1278: Estórias de Bissau (3): éramos todos bons rapazes (A.Marques Lopes / Torcato Mendonça)

17 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1286: Estórias de Bissau (4): A economia de guerra (Carlos Vinhal)

18 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1288: Estórias de Bissau (5): saudosimos (Sousa de Castro)

18 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1289: Estórias de Bissau (6): os prazeres... da memória (Torcato Mendonça)


18 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1290: Estórias de Bissau (7): Pilão, os dez quartos (Jorge Cabral)

24 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1314: Estórias de Bissau (8): Roteiro da noite: Orion, Chez Toi, Pilão (Paulo Santiago)

(5) Alguns termos do crioulo da Guiné:

Balaio=cesto grande;
Cibe=palmeira;
Gilas (lê-se: djilas)= vendedores ambulantes;
Mafé= peixe, conduto que acompanha o arroz, base da alimentação da população local;
Mancarra=amendoim.
Peso= unidade da moeda local (mais ou menos equivalente ao escudo)

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