quarta-feira, 4 de outubro de 2006

Guiné 63/74 - P1149: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (15): "Exmo Sr Alferes: Quero ir para Lisboa" (Jobo Baldé, antigo padeiro)



Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Bambadinca > Missirá > 1968 > Pel Caç Nat 52 > O improvisado padeiro, Jobo Baldé, a amassar a farinha num cunhete de granadas de bazuca. Anos depois escreverá ao seu antigo comandante:

"Espero que não tenhas esquecido o Jobo. Olha Alfer Becha dos Santos você tinha-me dito vai me levar em Lisboa quando eu entrego a farda da tropa. Eu era o teu antigo padeiro em Missirá. Quero ir para Lisboa"... 

Neste poste fica patente, através de excertos de cartas recebidas pelo autor, ainda na Guiné ou já em Lisboa, remetidas pelos seus soldados (ou antigos soldados), o drama pungente dos jovens africanos que lutaram ao nosso lado, e que confiavam em nós até a um ponto que já não era humano... 

Infelizmente, ficaram para detrás da História, sem esperança nem futuro... (LG).

Foto (e legenda): © Beja Santos (2006). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementae: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



1. Mensagem do Beja Santos, com data de 29 de Setembro último. Continuação da publicação das suas memórias do Cuor (1)

Caro Luís, a violência deste exercício ficou atenuada quando a Cristina me passou para as mãos as centenas de aerogramas que lhe enviei. Estou presentemente a arrumar por anos e depois passarei aos meses e dias. Até agora a memória não me tem atraiçoado, das cartas encontradas do período abordado vejo que há episódios humanos que merecem ser relatados. 

E descobri algumas cartas dos meus soldados que te vou enviar pois eles enriquecem a histórias de todas as nossas relações afectivas, o português que se usava, o amor que se instalou entre os homens. Tu farás o uso que entenderes desta correspondência, tens plena liberdade para reproduzires como e quando for mais conveniente. As aulas vão começar e peço-te concordância para tentarmos manter uma edição semanal destas memórias. Segue igualmente uma fotografia que encontrei do Mamadu Camará que vai entrar em cena na primeira flagelação de Missirá. Recebe um abraço do Mário.


Exmº Sr Meu Alferes

por Beja Santos

Passou por aqui há dias o Queta Baldé, antigo soldado do Pel Caç Nat 52. É segurança nocturno numa empresa das redondezas, e de vez em quando vem partir mantenha. Trouxe-me uma carta datada de 1 de Janeiro, de Bissau, e assinada por Jobo Baldé. A fotografia dele já aqui apareceu, era o nosso padeiro a quem demos uma concessão de vender algumas fornadas de pão à população civil.

Na época das chuvas, não era possível trazermos os sacos de farinha na viatura e pedimos apoio aéreo. Lembro a ocasião em que um helicóptero nos largou a 15 metros de altura, sob a parada, um saco de farinha que tivemos de peneirar para tirar a terra... O Jobo escreve assim:

"Antes de mais desejo-te uma boa continuação de saúde e felicidade. Espero que não tenhas esquecido o Jobo. Olha Alfer Becha dos Santos você tinha-me dito vai me levar em Lisboa quando eu entrego a farda da tropa. Eu era o teu antigo padeiro em Missirá. Quero ir para Lisboa. Cumprimento para a sua família da casa. Jobo em Bissau, telefone 25-51-25."

Guardei outras missivas do Jobo. Por exemplo: 

"Meu Senhor Alferes que eu queria dizer uma coisa que seja verdade porque meu mulher já pariu na nossa terra. Olha, ela pariu na segunda feira passada. Dá autorização a Jobo para ir a Galomaro"... 

E outra: 

"Querido Alferes, eu queria visitar meu familiar, empresta-me 500 ou 400 escudos pois tenho que fazer festa do filho e sem dinheiro eu fico com muita vergonha. Eu peço 4 dias de dispensa. Adeus".

De Cacine, recebo um areograma do José Seni Jamanca. Este querido amigo, que conheci como um soldado de milícia em Finete, foi professor e tinha uma inexcedível força de vontade para aprender. Ele escreve: 

"Eu vou fazer exame de 3ª classe, mas tenho falta destes livros: Geografia, Aritmética, Ciências Naturais e Gramática. O senhor é o meu maior e único amigo sincero e verdadeiro. O médico cá de Cacine mandou vir óculos para mim, mas até que cheguem emprestou-me uns dele. Mas talvez os óculos não venham, peço que arranje uns e que mos mande. Todos os dias peço para que o senhor tenha muita sorte, pois a guerra está cada vez pior. Quero também um livro de catecismo e uma fotografia sua. Receba um forte abraço e muitas felicidades do amigo que nunca o esquece, José Seni Jamanca". 

E em post-scriptum acrescenta: 

"Dia a Bassilo Soncó para te entregar o meu dinheiro, pois ele devia-me 200 escudos".

Resta dizer que o José, depois da independência, foi tirar um curso de electricista em Leninegrado, viveu em Lisboa e aqui eclodiu uma tuberculose que o matou. Ainda o fui ver ao Hospital Pulido Valente. Visitava-me amiude, era uma felicidade a sua companhia, o seu português distinto e pausado, olhar os seus olhos piscos e ouvi-lo dissertar sobre electricidade. Fez-me tremenda falta a sua partida.

Passo agora para uma pequena missiva de Saco Embaló, praticamente incompreensível, mas em que se infere que ele está há muito tempo na milícia e quer sair da tropa. Não sei o que aconteceu depois, mas o Saco Embaló apareceu-me em Bissau em 1991, era comerciante em Bandim. Passo agora para um pedido do Ussumane Baldé, o meu soldado prussiano. Ele escreve-me, como se estivesse no Pólo Norte:

 "Meu querido Alfero, eu por cá vou indo bem menos mal, graças a Deus. Desejo que esta minha carta te vá encontrar de boa saúde e mil felicidades. Peço-lhe por grande favor que me ajude uma licença de um dia a fim de eu ir a Bafatá, visitar a minha mãe. Mandaram-me dizer que ela está muito doente, todo o corpo está inchado e não pode andar. Nesta altura não quero sair daqui por causa dos trabalhos, por isso quero só um dia de féria. Recebe mil abraços do seu amigo Ussumane".

Sempre me convenci que por detrás desta correspondência deviam estar alguns manuais do tipo: como escrever cartas de amor, 100 modelos de cartas comerciais, etc. Reparem bem numa carta que me mandou o meu soldado Sila Sabali: 

"Agradecia-lhe o desígnio por amor de tudo o que é sagrado neste mundo e especialmente a sua Exmª esposa chamar-me. Como o senhor sabe, estou a entrar de licença neste mês em curso, não tenho comigo dinheiro para o meu assunto particularmente que tenciono realizar na minha terra. Razão é essa que me obriga vir pedir-te ao seus pés, confessando-lhe se o senhor consegue ajudar-me, não importo também que V. Exmª faz este desconto de uma só vez. Grato pela sua costumada atenção para comigo e para muitíssimos outros meus colegas, sou eu o teu criado e o que será o teu soldado". 

Segue-se um pedido para eu enviar uma carta ao Capitão de Galomaro a ser entregue por Madiu Culubali. Madiu, que terá comportamentos heroicos em operações, flagelações e emboscadas, tinha menos de 1,50m e era todo sumido, parecia-me um jovem com envelhecimento precoce. Sempre parei para o ver a passear com a sua Mariema, a sua alentada mulher, enorme e vociferante.

A última carta que aqui refiro foi-me escrita por Mamadu Djau, soldado milícia. Não confundir com Mamadu Djau, bazuqueiro de elite, um dos nossos mais valorosos militares. Este, irei revê-lo quando o visitar em Amedalai, em 1991, um dos encontros mais emocionantes da minha vida. Este Mamadu Djau que me escreve será verdadeiramente o grande sinistrado da flagelação de 6 de Setembro. No rescaldo do ataque, o enfermeiro veio a informar-me de uma coisa extraordinária e nunca vista: o Mamadu metera dois tiros num pé, estava a lavar o pé com água oxigenada, conversava com toda a gente como nada tivesse acontecido. E, de facto, veio a restabelecer-se depois de um mês com um pé envolto em compressas. 

Virá a morrer de paludismo, em 1970, e fui acompanhá-lo ao Cossé, onde foi enterrado com todas as honras militares. Voltaremos a falar dele, quando o for vestir com a sua farda, já no rigor mortis, na Capela de Bambadinca. Na sua carta fala-me de uma dívida de 220 escudos e pede-me para eu interceder junto do devedor.

Têm importância estas cartas? Os nossos soldados pediam insistentemente e confiavam em nós (aliás, em quem é que podiam confiar?). Temos aqui a prova provada da pouquíssima atenção que lhes demos até começar a guerra. Este português denuncia inequivocamente a ausência de civilização que a propaganda propalava, revela a fragilidade das nossas preocupações coloniais. Fomos progressivamente envolvendo esta juventude que olhava para nós como tábua de salvação. O Jobo tem a nossa idade e quer vir trabalhar para Portugal.

Fecho esta correspondência com os olhos humedecidos, absolutamente convicto que todos perdemos em não ter conseguido a tempo encontrar a solução digna para os povos da Guiné. E já que falámos de Mamadu Djau, segue-se o relato de uma noite estrelada sob o céu cego de Missirá. Vem aí o meu baptismo de fogo. Junto agora a minha carta.

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Nota de L.G.:

(1) Vd. últimpo post desta série > 29 de Setembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1129: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (14): Procurar em vão a nossa alma

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