terça-feira, 26 de setembro de 2006

Guiné 63/74 - P1118: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (13): Rebelo, meu rapaz, ninguém nasce soldado!


Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Bambadinca > Regulado do Cuor > Missirá > 1968 ou 1969 > O destacamento do Missirá (aspecto parcial) num fim de tarde calma.

Foto: © Beja Santos (2006)



Distintivo do Pel Caç Nat 52, no tempo em que era comandando pelo Alf Mil Joaquim Mexia Alves (1972/73), que sucedeu ao Wahnon Reis e ao Beja Santos.


Fotos: © Joaquim Mexia Alves (2006)


Texto enviado em 22 de Setembro último, pelo nosso tertuliano Beja Santos que, como ele confessa, está a viver um sonho, ou seja, a reviver o seu dia-a-dia de há quase 40 anos em terras do Cuor. Recorde-se que ele foi alferes miliciano e comandante do Pel Cac Nat 52 (em Missirá), tendo ainda sob a sua liderança a milícia de Finete e à sua guarda as respectivas populações. Sob o título Operação Macaréu à Vista, estamos a publicar as suas memórias de homem, de combatente e de condutor de homens no teatro de operações da Guiné (1).

Nota - Os títulos dos posts são, em geral, da responsabilidade do editor do blogue.


Caro Luís, para a semana serei mais parcimonioso pois vou preparar 20 horas de aulas que darei em breve em Carregal do Sal. Não vou comentar a questão dos cemitérios que ao contrário do que alguns dizem está devidamente repertoriada. Convém não esquecer que muitos mortos são deixados no campo de batalha ou bastante perto. Os norte-americanos que combateram no dia D e depois jazem em cemitérios que são campos de serenidade que apetece visitar. Na Líbia, visitei cemitérios onde estão sepultados alemães, italianos e britânicos. O que verdadeiramente me magoa são a incúria dos símbolos externos e da manutenção que lhes é devida, nos cemitérios espalhados por África. Na parte simbólica, destaco as homenagens aos mortos.

Seria bom que os autarcas do nosso país tivessem uma lista daqueles que morreram ao serviço da Pátria e naturais daquele concelho. Sempre que os Presidentes da República se deslocam às três ex-colónias onde combatemos devem dar sinais de preito, pois tais sinais são indispensáveis para as novas gerações. Mário Soares fez isso na Guiné, contrariando o chamado bom senso e a ira de Nino Vieira, e visitou o cemitério de Bissau.

Quanto à manutenção, os diplomatas deverão cooperar nas situações como a de Bambadinca, protestando mas dando sinais de que estão atentos à manutenção que, ao que parece, a Liga dos Combatentes pretende zelar. Aliás, prestamos-lhes bom serviço direccionando as nossas mensagens acerca dos desaparecidos.

Recebe um abraço do Mário.
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Os antepenúltimos preparativos

por Beja Santos


Há cerca de 10 anos tive um reencontro festivo com o Rebelo. Festivo e surpreendente. Bambadinca [, sede do Sector L1, Zona Leste], a pretexto de um estágio, enviou-nos o Rebelo das transmissões que trabalhou connosco desde os finais de Agosto [de 1968] até Fevereiro de 69. Depois partiu e não deu sinal de vida (2).

Se é verdade que a nossa colaboração nas operações se iniciou em Outubro, foi nos últimos dias de Agosto que recebemos ordens para partir para o Xime com o objectivo de patrulhar a Ponta do Inglês e regressar ficando dois dias no aquartelamento, enquanto a companhia local (talvez a CART 1746, já não sei) partia numa operação na região de Massambo.

Foi nessa época que me apercebi que os nomes das operações deviam ser decalcados de dicionários dos provérbios, dos cancioneiros populares e dos adágios: Fado Hilário, Vê Se Apanhas, Cabeça Rapada, Pato Rufia... A minha operação de estreia chamava-se Meia Onça, visava ir ao acampamento do Buruntoni, na mata do Baio. Dessa recordo que não percebi nem me foram comunicados os objectivos, puseram-nos à frente da coluna que saiu do Xime, andámos dois dias às voltas e ao que parece não encontrámos trilhos e os guias-picadores andaram sempre confusos.

Creio que todos nós vivemos situações caricaturais semelhantes. O que interessa é que partimos de Missirá, e não tínhamos ainda feito 2 Km quando ouvi uma imensa berrata na caixa do Unimog 404. Os soldados gritavam furiosos com o Rebelo que chorava, agarrado ao seu RACAL. Chamavam-lhe cobarde, que estava a fazer mal ao moral das tropas, que não era homem. Pedi ao Setúbal para parar imediatamente a viatura e seguiu-se um sermão violento em que fiquei convencido que eles estavam mais petrificados pelo meu gesticular do que pelo conteúdo do sermão. Em resumo, lembrei àqueles bravos que não se nasce soldado nem mesmo para herói. O Rebelo iria ter a sua oportunidade e mesmo ao meu lado. E ponto final, quem voltasse a barafustar ia ver-me virado do avesso.

Do Xime fomos à Ponta do Inglês, nessa altura já quartel abandonado. Fiquei com a recordação que o Rio Corubal era muito belo. Pois bem, há cerca de 10 anos, apanhei no Marquês de Pombal o autocarro 44 (Moscavide-Cais do Sodré), ao fim da tarde, ia eu com destino dos Restauradores. Então não é que quando me dirijo ao motorista, ele olha para mim, fixa-me esbugalhado, salta do banco, abre a cabine e entra-me no autocarro aos gritos:
- Ó meu alferes, eu sou o Rebelo e andei consigo na guerra!

Abraçamo-nos perante uma plateia atónita até que uma velhota pôs ordem na festa: `
- Ó Sr. motorista, acabe lá com essas expansões e leve-nos ao destino!.

Ganhei muito por reencontrar o Rebelo e por ele ter vencido aquela prova de fogo. Em Missirá aprendo novos misteres. Por exemplo, já descodifico rapidamente as mensagens. Será que vocês se lembram? As coisas passavam-se assim:

De LVO
Para DKO
INFO

EDITE NOITE GUITA BERRO LUIS
GRETA GOZO DENTE GINA CEDRO
GUITA GRETA MANGA SOLAR AFINO
GRETA BABEL BUDA GUITA HORTA

Pode ser que alguém tenha guardado desse tempo os manuais do cripto. Decifrada esta mensagem, quebra-se o enigma e fica-se a saber o que Bambadinca me comunica: "Ida hoje mecânico esse. Seguirá esse com pessoal desse que tiverem este fim reabastecimento".

Para quem quer sorrir lembro aquela famosa mensagem: "Info Vexa Sexa Passou Aqui Toda Mexa".

É manhã cedo e hoje Missirá terá o meu olhar frívolo e mundano. À porta da sua morança, Binta Sambu medita, acocorada. Cumprimento-a (corpo s'tá bom?) e pergunto-lhe se tem notícias do Uam. Ele ficara ferido semanas antes de eu chegar. Ao que creio numa desactivação de mina. É um mansoanque, uma figura original. Quando ele morrer nos meus braços, no amanhecer de 1 de Janeiro de 1970, direi dele: "Canhoto chupado, preto de mansoanque, manto de Navarra, um gamo antigo. Trouxe-o moribundo, a laquear toda a esperança que a guerra aspira fundo. Um anjo lhe acobertou a nudeza de tiros imprevistos, no lento rio, a todos irmanado. E houve batuque no céu.".

Cumprimentei depois o Campino, o bazuqueiro. Estou em crer que ele se conferia ao direito de ser o galã da companhia e para dar mais intensidade à pose tinha mesmo um barrete de campino. Em Fevereiro [de 1969], quando o Comandante-Chefe, nos visitar, perante a minha aceitação de todo este multiculturalismo, o brigadeiro vociferará:
- Tenho impressão que você comanda um quartel disfarçado de circo!

Depois de Campino, falo com Mamadu Silá, um gigante futa-fula que tem um fio de voz de criança. Silá aproveita para me pedir uns dias de férias, tem um choro à espera dele. Eu pareço que ando a despachar serviço enquanto deambulo sem direcção.

Missirá enche-se de vida, as mulheres seguem dengosas para a fonte, as crianças chilreiam, os civis partem para os trabalhos agrícolas. Sinto que a minha relação se aprofundou com aquele lugar que continua espesso, e mesmo opaco, à minha compreensão. Nessa noite, depois de ler, rememorando aquelas primeiras horas da manhã em que conversei, fiz perguntas ociosas, bebi chá com Lânsana, com o Saiegh a olhar-me desconfiado não estivesse eu doente com tanta despreocupação, folheei alguma lírica camoneana. E depois de visitar os postos de sentinela, escrevi:

A Luis Vaz de Camões

1 Adamastor. Passamos o limite onde chega/
O Sol, que para o Norte os carros guia. Para lá de as Dorcadas /
a bolanha de Finete sobe um elevado morro.
É no anoitecer súbito, tropical, com piares lúgubres de pássaros desconhecidos/
Um Unimog embrenha-se na floresta de galeria, e suspiro por Missirá/
Cuidado com os perigos, grita-me o Adamastor

2 Camões convivial. Acima de Galileu, depois de Calecute, Alexandria e Parnaso, sextina ou redondilha, Jau ou Gama, canto de moço, de velho do Restelo, de trança, tu és o Camões da peregrinação, mendicante da prisão, mas também Inês sem razão. Camões, máquina lusíada, de ti recebemos a vida frugal e exuberante. Tu és a tuba da ditosa Pátria e explica-me porque é que na guerra fui lançado
.

Venho ver o mundo fora do abrigo, o céu estrelado. Missirá dorme. Mal sabia eu que amanhã vou ser posto à prova perante um tema desconhecido de sensibilidade e sexo secreto. Eu vou contar. E depois Missirá vai ser flagelada.

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Nota de L.G.

(1) Vd. post de 22 de Setembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1102: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (12): Os meus irmãos de Finete

(2) Sobre os nossos homens de transmissões (trms), vd. posts de:

2 de Julho de 2005 > Guiné 69/71 - XCIV: Um alfa bravo para os nossos Op TRMS (1)

9 de Julho de 2006 > Guiné 69/71 - XCVIII: Um Alfa Bravo para os nossos Op TRMS (2)

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