sexta-feira, 8 de setembro de 2006

Guiné 63/74 - P1058: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (9): Kaputt


Capa do romance de Curzio Malaparte (1898-1957), Kaputt (Lisboa, Edições Livros do Brasil, 1962. Tr. de Amândio César. Edição original italiana: 1940).



Mensagem de 29 de Agosto de 2006:

Caro Luís, aqui vai um terceiro texto e algumas notícias:

Primeiro, e sem insídia, sugeri ao Paulo Raposo que tivéssemos este ano pelo Natal o nosso primeiro encontro bloguista ao vivo. Como tu és o pai espiritual desta matéria-prima, vê se queres animar a malta.

Segundo, em função de algumas leituras que fiz durante a guerra e que vou referir no blogue, sempre que possível seria interessante ilustrar com tais livros. Por exemplo, no texto de hoje faço referência a Kaputt e parece interessante ilustrar, já que curiosamente o livro está à venda tal como o li. Na primeira flagelação que sofri em Missirá, em 6 de Setembro de 1968, estava a ler As Sandálias do Pescador, por Morris West, editado pela Clássica Editora. O livro ardeu, como sabes, não tenho ilustração. Paciência.

Terceiro, espero enviar-te ainda esta semana três fotografias referentes a matérias que vamos abordar. Terei a preocupação de dar a informação que julgo a mais conveniente, já que tu tens sido bondoso nos comentários que fazes. Se considerares toda esta prosa está a mostrar-se excessiva, não te coíbas de me fazer reparos.

Recebe um abraço do Mário.


Kaputt


Na segunda semana de estar em Missirá, vi com os meus olhos a minha morança pronta. A palha fora toda limpa e a morança envolvida de palha nova, o chão recebeu saibro e o interior caiado. Nesse dia, um soldado das milícias, Ieró Candé, avançou para mim e olhou-me determinado:
-Quero ser guarda costa de alfero!

Como não conhecia tal intendência, perguntei-lhe o que era um guarda costas e ele respondeu:
-Alguém que leva a roupa de alfero à Binta (a lavadeira), prega os botões que a Binta estraga, limpa a arma, arruma a habitação de alfero, engraxa a bota e se necessário dá a vida pelo alfero.
Ieró foi aceite, pois nunca pensara que a vida humana era menos classificável que engraxar botas e aquela sinceridade tocou-me até aos dias de hoje. Passei horas a arrumar os meus discos, fez-se com tábuas um pequeno armário para a roupa e com mais outras tábuas e tijolos de adobe estantes para as centenas de livros que me iriam fazer companhia até arderem em Março de 69.

Na arrumação dos livros, encontrei cheio de alegria o Kaputt, de Curzio Malaparte. Para quem não conhece esta obra - prima da literatura universal, seguem-se as minhas impressões e recordações. Comprei o Kaputt em 1964, e não supunha que aquela ferocidade inumana, aquela bestialidade da II Guerra fosse transponível para outras guerras. Estão ali registados os horrores do nazismo e do facismo, descritos num estilo que hoje se poderá chamar de Romance de não-ficção (aliás, A Sangue Frio, de Truman Capote, que não li antes nem durante a guerra, é outra obra- prima deste estilo).
Malaparte era um jornalista brilhante, um enfant terrible do fascismo italiano, ideologia com o qual veio romper, sendo mesmo perseguido pela Gestapo devido à crueza dos seus comentários na correspondência que enviou da frente russa. O livro é redigido com extrema elegância, pautando-se pelo cinismo e a narrativa frontal do horrível, do imundo e da beleza.

Kaputt (palavra alemã que quer dizer estragado, perdido, estilhaçado e reduzido a pedaços), é uma narrativa em cinco partes e com protagonistas completamente diferentes. Em Os Cavalos, Malaparte encontra-se com o Principe Eugénio da Suécia, depois do seu regresso da frente filandesa. Fala-se de Paris, de Capri, dos prisioneiros soviéticos que comiam os cadáveres dos seus camaradas no campo de Smolensk, dos cavalos russos que caíram num lago e gelaram, formando a composição mais inacreditável que é possível com as cabeças de cavalo apontadas a outra margem do rio.

O irmão do Gustavo V da Suécia chora mansamente enquanto Malaparte descreve os fuzilamentos e as matanças dos nazis na frente russa, os pogroms dos fascistas romenos aos seus judeus.
Em Os Ratos que li sempre como o mais pungente episódio sobre qualquer guerra e em qualquer cultura, Malaparte encontra-se com Hans Frank, o Governador Geral da Polónia em vários momentos. Num ambiente de verdadeiro encontro do Renascimento, rodeado de altos dignatários do nazismo, fala-se dos judeus empilhados nos guetos de Varsóvia e outras cidades e os doutrinadores raciais de Hitler expendem considerações sobre a extinção dos ratos judeus. Não resisto esta transcrição que me apareceu durante anos em sonhos:

- Repare neste muro - disse-me Frank.- Vê realmente essa terrível muralha de cimento eriçada de metralhadoras de que falam os jornais ingleses e americanos? Na voz arrogante de Frank havia um não sei quê que eu julguei reconhecer, alguma coisa de triste: uma crueldade humilde e triste.
- A atroz imoralidade deste muro - respondi - não consiste apenas no facto de impedir que os judeus saiam do guetto, mas no facto de impedi-los de aí entrar.
- E contudo - disse Frank, rindo - embora a violação da proibição de sair do ghetto seja punida com a morte, os judeus entram e saem à vontade.
- Escalando o muro? - Oh, não! - responeu Frank. - Saem por pequenas aberturas, semelhantes a buracos de ratos, cavam durante a noite na base do muro e escondem de dia com terra e folhas. Enfiam-se por esses buracos e vão à cidade comprar víveres e roupas. O mercado negro do guetto pratica-se em grande parte através desses buracos. De vez em quando, alguns desses ratos caem na ratoeira: são crianças de oito a dez anos, não mais arriscam a vida com vedadeiro espírito desportivo...
- Em Cracóvia - disse Frau Wächter - o meu marido construiu em redor do ghetto um muro à oriental, com curvas elegantes e bonitas seteiras. os judeus de Cracóvia não têm razão de queixa.É um muro muito elegante, em estilo judaico.
Todos começaram a rir, batendo os pés na neve gelada. - Ruhe! (Silêncio) - disse um soldado que, de espingarda apontada estava ajoelhado a alguns passos de nós, escondido por um montão de neve.

O soldado visa um buraco cavado num muro à flor do chão. Um outro soldado, ajoelhado atrás dele espiava por cima do ombro do seu camarada. De repente, este disparou. A bala atingiu o muro precisamente no bordo do buraco.

-Falhou! - exclamou alegremente o soldado, carregando de novo a arma. Frank aproximou-se dos dois soldados e perguntou contra quem disparavam. - Contra um rato! - responderam eles, rindo rudiosamente. -Contra um rato? Ach so! - disse Frank ajoelhando-se para olhar por cima do ombro do soldado. Tínhamo-nos aproximado também e as mulheres riam e meneavam-se, erguendo as saias até meio da perna como fazem habitualmente as mulheres quando se falam de ratos.

-Onde está ele? Onde está o rato? - perguntou Frau Brigitte Frank. -Achtung! - disse o soldado fazendo pontaria. Pelo buraco cavado na base do muro vimos aparecer um tufo de cabelos negros desgrenhados: depois duas mão emergiram do buraco e apoiaram-se na neve. Era uma criança.

O tiro partiu. Desta vez ainda, falhou o objectivo por pouco. A cabeça da criança desapareceu. -Dá cá isso- disse Frank com impaciência- nem sequer sabes servir-te de uma espingarda!- Apoderou-se da arma e fez pontaria.
A neve caía sobre o silêncio.

A terceira parte chama-se Os Cães. Num encontro entre diplomatas, Malaparte descreve a chacina de militares soviéticos na Ucrânia. Na quarta parte Os Pássaros, a barbárie continua à solta e Malaparte conversa com a Princesa Luísa da Prússia. Falam das atrocidades praticadas pelos fascistas croatas. Na quinta parte, As Renas, Malaparte descreve o seu encontro com Himmler na Finlândia. Por fim, na sexta parte, As Moscas, é o encontro de Malaparte com Edna Ciano, a filha de Mussolini, os bombardeamentos a Nápoles pelos Aliados e a premonição do fim da guerra.

Como escreveu Malaparte: "A alegria cruel é a mais extraordinária experiência que tirei do espectáculo da Europa no decorrer destes anos de guerra.". Daí, igualmente, a impressão que Kaputt me voltou a trazer nessas noites de Agosto de 68, quando o reli sofregamente, entre dois turnos de sentinela. Porque nascera outro hábito da minha existência. Com o auxílio de um 1º Cabo e com a chancela de um furriel, eu aprovava os turnos de sentinela entre as 18 horas e as 6 horas da manhã. E aparecia de surpresa, fosse a que horas fosse para confirmar que tudo está a correr bem. Centenas de pessoas dependiam da vigilância destes guardas. Falhar era imperdoável.




Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Cuor > Missirá > 1969 > A morança do comandante do Pel Caç Nat 52 , destruída por uma granada incendiária, por ocasião de um grande ataque ao destacamento em Março de 1969. O Beja Santos perdeu tudo o que tinha, inclkuindo os seus haveres mais preciosos: os livros e os discos...
Foto: © Beja Santos (2006)


Quando cheguei a Missirá os meus soldados eram números. Eu dizia assim:
-Quero falar com Mamadu Silá.
Alguém respondia:
- Vai chamar o 109. 
Eu dizia:
-Diz ao Cherno para vir imediatamente. 
 Outra voz proclamava:
- Vai chamar o 118.

Nasceu aí uma ordem de serviço: "A partir de amanhã, toda a gente nos pelotões será conhecida como gente. Pode haver números, mas no trato seremos gente!". Quem escrevia esta declaração seria e continua a ser tratado por Veiga Santo, Beja Santo, Mário Santo e, excepcionalmente, Mário Beja Santos ou coisa mais parecida.

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