quarta-feira, 6 de setembro de 2006

Guiné 63/74 - P1052: Pel Caç Nat 63: A paz em Missirá (Jorge Cabral)

Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Missirá > 1971 > Jorge Cabral, comandante do Pel Caç Nat 63, o mais paisano dos oficiais milicianos que eu conheci na Guiné (LG)

Foto: © Jorge Cabral (2006)


Texto enviado, em 24 de Agosto último, pelo nosso camarada Jorge Cabral (ex-alf mil, comandante do Pel Caç Nat 63, Fá Mandinga e Missirá, 1969/71)

Amigo,


Sei que é tempo de férias, mas aí vai texto acompanhado de fotografia onde apareço arranjadinho para ir a Bambadinca.


Tenho aproveitado estes dias para revisão do material publicado no blogue, o qual merece um estudo.


Por ora, um Abração, com votos de descanso e Paz.


Jorge



A Paz em Missirá

Estivemos lá, é certo. Alguns nos mesmos sítios. Iguais foram os sons, as cores, os cheiros. Diferentes as memórias… O que recordamos e o que esquecemos, tem a ver com o que fomos lá e ao longo da vida, e reflecte a nossa forma de estar e ser, quase quarenta anos passados.

É impossível sentir o que sentíamos e pensar o que pensávamos, então. O que agora contamos surge filtrado pelo tempo, pela razão, pela experiência da vida. Tentamos reconstruir o ontem, com a cabeça de hoje e dessa forma moldamos uma realidade, a nossa verdade, inteiramente lícita e legítima, mas não obviamente única.

Menos de um ano após a saída do Beja Santos, fui eu para Missirá. Já contava quinze meses de comissão, conhecia o Mato Cão, passara uma temporada em Finete, e convivera com o Saiegh, o qual me havia informado sobre o que iria encontrar.

Missirá constituía um Destacamento isolado, de importância quase simbólica, e com diminuta capacidade de intervenção, numa área de forte implantação do PAIGC. As operações na zona eram escassas. Enquanto lá estive, apenas tomei parte em duas. Fui, a título individual, com os Páras a Madina/Belel, creio que em Abril de 1971, e com a CCAÇ 12 a Salá, já em Julho do mesmo ano.

Assim, e com exclusão das Seguranças em Mato Cão, a actividade operacional resumia-se a alguns patrulhamentos, o que me deixou tempo para passear. Gostava muito de ir pescar à granada, no rio Gambiel, junto ao qual fiz um prisioneiro que praticamente se entregou com arma e tudo, e me forneceu informações curiosas sobre os comerciantes de Bambadinca… Levei-o ao Batalhão, onde inventaram uma ordem de patrulhamento, que eu cumprira com óptimos resultados…

Também tentei, e quase consegui, restabelecer a ligação rodoviária com o Enxalé, como já relatei. Comigo, nunca o quartel foi atacado, o que me levou a pensar que os turras se haviam transferido, apesar de encontrar vestígios da sua passagem, presumivelmente para Mero. Aliás, por essas bandas encontrei um porco, não tendo percebido se o animal havia fugido, ou se se tratava de uma oferta… Comido foi e em festa…

Ainda hoje não compreendo as razões desta Paz, tanto mais que quando visitei Madina/Belel (1), constatei o poder e importância da base ali existente. Bem armada e com significativa guarnição, possuía abrigos, posto de socorros, escola e um recheado depósito de víveres, com centenas de quilos de arroz. Teria o respectivo Comandante, Corca Só, sido atacado de preguiça? Ou convencera-se do meu inventado parentesco com Amílcar Cabral? (2)

Claro que tão estranha quanto pacífica situação gerou opiniões, palpites, invenções, dizendo-se no Batalhão que eu era amigo dos turras. Quanto aos Africanos, não tinham dúvidas.:
- Alfero Cabral tem grande feitiço.

Estou em crer que tinham razão!

Jorge Cabral


P.S.

1. É verdade que sofri três mortos e um ferido, mas por via de minas, que rebentaram sempre atrás de mim. Quando teriam sido colocadas?

2. Constitui uma dolorosa surpresa a revelação de que o meu Amigo Saiegh coleccionava orelhas. Conheci-o muito bem, cheguei a jantar em casa dele, em Bissau, e nunca suspeitei que se dedicasse a semelhantes práticas. Antes pelo contrário, quando aconteceu o tristíssimo episódio da cabeça cortada pelo João Uloma, o Saiegh foi dos poucos da Companhia de Comandos Africanos a criticar o feito (3).

__________

Notas de L.G.

(1) V. post de 27 de Junho de 2006 > Guiné 63/74 - P918: Operação Tigre Vadio (Março de 1970): uma dramática incursão a Madina/Belel (CAÇ 12, Pel Caç Nat 52 e outras forças)

(2) Vd. post de 5 de Janeiro de 2006 > Guiné 63/74 - CDXXI: Cabral só havia um, o de Missirá e mais nenhum...

(3) Vd. posts de:

19 de Agosto de 2006 > Guiné 63/74 - P1038: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (6): Entre o Geba e o Oio, falando do Saiegh e dos meus livros

23 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCLXXXIV: Lista dos comandos africanos (1ª, 2ª e 3ª CCmds) executados pelo PAIGC (João Parreira)

11 de Julho de 2005 > Guiné 69/71 - CIII: Comandos africanos: do Pilão a Conacri

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