sábado, 19 de agosto de 2006

Guiné 63/74 - P1038: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (6): Entre o Geba e o Oio, falando do Saiegh e dos meus livros

Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Cuor > Missirá > S/d > O comandante do Pel Cacç Nat 52, Alf Mil Beja Santos, dirige a construção dos abrigos.

Foto: © Beja Santos (2006)


Amigos e camaradas: O Tigre de Missirá volta a atacar... Regressado de férias, mandou-me, com data de 18 de Agosto, mais um texto com as suas memórias das terras do Cuor. Eu continuo de férias, na terras do oeste estremenho, a caminho, no próximo domingo, do Norte, do Porto e do Marco de Canaveses. De vez em quando tenho acesso à Net, e já inseri, roubando alguns minutos às horas sagradas das férias, alguns dos textos e mensagens da malta da nossa tertúlia, que estavam em atraso. Infelizmenet não tenho aqui acesso a fotos (novas) que o Beja Santos me mandou para enriquecer o nosso já fabuloso álbum. Numa delas aparace o furriel Saiegh, aqui evocado, no post que hoje insiro. Fica essa foto para divulgação em Setembro. Até um dia destes. Bom regresso ao trabalho ou boa continuaçãod e férias para os amigos e camaradas de tertúlia. L.G.


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Entre o Geba e o Oio

Beja Santos

A 5 de Agosto de 1968, levanto-me com a primeira luz, estonteado por não ter dormido. A minha preocupação é identificar a geografia desta guerra em Missirá e Finete. Para quem me está a ler e não vai consultar o respectivo mapa, o Cuor que eu a partir de hoje vou conhecer tem duas povoações onde se hasteia a bandeira portuguesa e no seu interior, sobretudo na região de Madina/Belel, estão os guerrilheiros (1).

Para quem nunca foi à Guiné, as distâncias que a carta marca são precisas mas a realidade alterou profundamente essa relação na marcha sobre o terreno. É que o mato cresceu por toda a parte, tirando meia dúzia de picadores experimentados atravessar rios, como os de Gambana ou de Daganã ou Queba Jilã ou Passa podem ser dificuldades intransponíveis ou fatais.

O Furriel Saiegh veio fazer-me companhia, tomamos um café horrível enquanto nos debruçamos sobre a carta. Pergunto-lhe por onde anda o inimigo, do lado do Geba. Ele responde que por vezes há indícios da sua presença sobretudo na estrada de Mato de Cão. Continuo a fazer perguntas e ele propõe-me que façamos um patrulhamento a Aldeia de Cuor.

O reconhecimento dá-me a percepção de que não teria havido nos últimos anos a preocupação de vigiar os possíveis itinerários usados pelos guerrilheiros junto ao rio, do lado de Badora. Como a experiência demonstrará, o PAIGC tinha adoptado a estratégia de nos intimidar sem asfixiar: de vez em quando uns tiros de obus e morteiro sobre Missirá, uns raptos de população civil em Finete, umas fogueiras nas bolanhas secas para se saber quem mandava no interior do mato, umas balas abandonadas ao descaso.

Até à Aldeia de Cuor, nada a assinalar: o capim cresceu naturalmente, as ruínas da destilaria erguem-se como um espectro intocado, não há um mínimo de presença humana. E regressamos a Missirá 6 horas depois. Volto a perguntar a Saiegh que outros patrulhamentos têm feito nesta área. Sinto no seu olhar uma sobrançaria de quem se sente beliscado por ter de dar contas: “É a primeira vez que alguém põe em causa o meu trabalho”. Clarifico que pretendo apurar a realidade dos factos e que não estou a emitir juízos de valor. Mal sabia eu que era o primeiro sinal de um conflito entre a autoridade cessante e a emergente.

Saiegh na véspera, depois do jantar, dera-me um sinal de cortesia levando-se ao seu abrigo para bebermos um uísque. Olhando à volta do seu ambiente privado, vi frascos que me lembraram aqueles que se encontram nos laboratórios de biologia. Vendo-me intrigado, sopesando as palavras mas atirando-as a frio, esclareceu-me:
- São restos dos meus despojos. Aproveito sobretudo orelhas.

Aclarei a voz e fui cortante:
- Saiegh, ainda nada sei desta guerra, mas asseguro-lhe que a partir de hoje não haverá despojos humanos, nem relíquias nem troféus. Não trago ódios nem os vou despertar. Recordo-lhe que esta disposição é irrevogável.

Os olhos de Saiegh cuspiram fogo, mas ele conteve a dimensão da chama. Com o tempo, virei a saber que este descendente de sírio-libaneses também se movia por razões raciais, independentemente dos seus interesses económicos têm sido profundamente afectados pela luta de guerrilhas. O nosso conflito estava armado, mas passados estes anos todos reconheço que ele me deu uma colaboração exemplar, apagando-se progressivamente do mando e da decisão militar. Irei chorar amargamente no dia em que soube do seu fuzilamento (2).

A limpeza da morança onde vou habitar já começou. Durante a tarde, depois de ter percorrido a pé o caminho entre Missirá e a fonte de abastecimento de água e o lavadouro onde as mulheres cantam, abro as minhas malas para contemplar livros e discos. Folheio algumas obras que, mal sabia eu, décadas depois ainda serão companheiras indefectíveis: por exemplo, “Rebeca” por Daphne Du Maurier, “O Terceiro Homem” por Graham Greene e “Kaputt” por Curzio Malaparte. Trouxe comigo os livros mais representativos da minha formação, está ali todo o meu investimento de economias e presentes de entes queridos.

Estas centenas de livros irão ficar reduzidas a cinzas, em Março do ano seguinte. No entanto, a sua importância é indelével, e quase que posso justificar caso a caso a sua importância na minha postura cultural. Cito “O Terceiro Homem” de Graham Greene. Não é certamente o título mais representativo deste grande escritor britânico (pessoalmente prefiro “O Mistério do Medo” e “O Nosso Homem em Havana”) mas ensinou-me que um relato pode ser enunciado a várias vozes, em vários tons, sobrepondo protagonistas, e que tal estrutura pode constituir uma potencial riqueza no florilégio literário. “O Terceiro Homem” tem vários relatores, o que adensa magistralmente a intriga e torna ainda mais plausível o cenário de incerteza de um enredo de espionagem e corrupção passado em Viena, após o fim da Segunda Guerra Mundial. Folheio hoje “O Terceiro Homem” recordando o sonho que tive aos 18 anos quando pensei que ia ser um escritor de ficção.

Estes livros, e os que se seguirão, são companheiros fabulosos e tem pouco sentido repetir aqui todos os elogios sobre a leitura. Ainda hoje leio disciplinadamente de 2 a 4 horas por dia, entre clássicos e uma vanguarda que será joeirada na próxima geração.

Mas é bom dar livre curso à saudade daquelas caixas de livros que me preparam para a vida e para aguentar a brutalidade da guerra, ora no seu início. Nas semanas que se vão seguir , vou descobrir três coisas: tenho um quartel para reconstruir, introduzindo-lhe segurança e algum conforto; os patrulhamentos a Mato Cão são diários, e por vezes a dobrar; vou ter poucas ilusões, logo após a descoberta dos trilhos dos guerrilheiros em quatro pontos estratégicos do rio Geba, sobre a paz flexível que se instalara no Cuor. O primeiro sinal vai chegar no início de Setembro, com uma flagelação nocturna devastadora. A medição de forças vai começar.


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Nota de L.G.:
(1) Vd. post de 3 de Agosto de 2006 > Guiné 63/74 - P1021: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (4): A minha paixão pelo Cuor

(...)"No dia 3 de Agosto de 1968, o Capitão Lester Henriques, oficial de operações do Batalhão de Bambadinca, explicou-me a minha missão no regulado do Cuor:- Precisamos de si para manter o Geba navegável. A partir de Bambadinca, o Geba é intransitável já que qualquer embarcação ficará destruída por um RPG2 que dispare a três metros de distância. Você comandará Finete, tem lá um pelotão de milícias e cerca de 150 almas. A sua missão é aguentar a todo o custo Missirá, em frente a três santuários do PAIGC: Madina/Belel, Sara e Sarauol. Em Missirá tem um pelotão de caçadores nativos e um pelotão de mílicias. Não tem electricidade no quartel, aviso-o que não tem nenhum conforto à sua espera, à volta de Missirá é terra de ninguém e estamos em crer que vem muita gente do PAIGC a Badora à procura de alimentos. Das informações que disponho, você vai comandar alguns dos melhores soldados do mundo. Desejo-lhe as maiores felicidades. E acautele-se com as minas" (...)

(2) Vd. post de 23 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCLXXXIV: Lista dos comandos africanos (1ª, 2ª e 3ª CCmds) executados pelo PAIGC (João Parreira)

Vd. também o meu post de 11 de Julho de 2005 > Guiné 69/71 - CIII: Comandos africanos: do Pilão a Conacri

1 comentário:

Paulo disse...

Estranha forma de vida....