quinta-feira, 10 de agosto de 2006

Guiné 63/74 - P1032: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (5): Uma carta e um poema de Ruy Cinatti

O poeta Ruy Cinatti. Fonte: Triplov. com > Site dedicado a Ernesto de Sousa > Poesia > Ruy Cinatti (2006) (com a devida vénia...)

Ruy Cinatti (1915-1986) foi amigo do Mário Beja Santos e com ele correspondeu-se durante a sua comissão na Guiné. O Mário já nos tinha prometido a publicação, no nosso blogue, de escritos inéditos do poeta, e em especial de alguns poemas, o que para nós é uma honra. Hoje começamos por publicar uma carta, datada de 28 de Março de 1970, que contém um desses poemas.

Mas quem foi Ruy Cinatti ?

Dos seus registos biobliográficos, consta que o Ruy Cinatti - de seu nome completo, Rui Vaz Monteiro Gomes Cinatti - nasceu em Londres, em 1915, de ascendência luso-italiana, tendo vindo, ainda em criança, para Lisboa onde se formou em Agronomia, em 1941. Viveu em Inglaterra, entre 1941 e 1945, tendo estudado Etnologia e Antropologia em Oxford. Entre 1943 e 1945 desempenhou o cargo de meteorologista aeronáutico da Pan-American Airways .
Após a II Guerra Mundial, parte para Timor como secretário do governador do território, função que exercerá até 1948. É nomeado depois chefe dos Serviços Agronómicos daquele território, por cujo povo e cultura se apaixonou. Foi também investigador da Junta de Investigação do Ultramar. A última vez que volta a Timor foi em 1966. Entretanhto, em 1961, termina o seu doutoramento, pela Universidade de Oxford, em Antropologia Social e Etnografia.

Foi co-fundador em 1940, com Tomás Kim e José Blanc de Portugal de Os Cadernos de Poesia e em 1942 da revista Aventura.
Bibliografia:
Ossonobó (1936),
Nós Não Somos Deste Mundo (1941),
Anoitecendo a Vida Recomeça (1942),
Poemas Escolhidos (1951),
O Livro do Nómada Meu Amigo (1966),
Sete Septetos (1967),
Crónica Cabo-Verdeana (1967),
O Tédio Recompensado (1968),
Borda d'Alma (1970),
Uma Sequência Timorense (1970),
Memória Descritiva (1971),
Conversa de Rotina (1973),
Os Poemas do Itinerário Angolano (1974),
Paisagens Timorenses com Vultos (1974),
Cravo Singular (1974),
Timor-Amor (1974),
O A Fazer, Faz-se (1976),
Import-Export (1976),
Lembranças para São Tomé e Príncipe ? 1972 (1979),
Poemas (1981),
Manhã Imensa (1982).
Recebeu vários prémios literários: (i) em 1958, o Prémio Antero de Quental pela obra O Livro do Nómada Meu Amigo; (ii) em 1968, o Prémio Nacional de Poesia, pela obra Sete Septetos ;(iii) e em 1971, o Prémio Camilo Pessanha, com Uma Sequência Timorense. Faleceu em 1986.

Vd. também as seguintes páginas ou textos: (ii) Peter Stilwel sobre o Timor de Ruy Cinatti, publicado na Camões- Revista de Letras e Culturas Lusófonas, nº 14, Julho-Setembro de 2001; (ii) Projecto Vercial > Literatura actual > António Rebordão Navarro > Um aceno amicissímo.; (iii) Instituto Superior de Agronomia > Pedro Bingre > Ruy Cinatti, o poeta agrónomo (LG)
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Carta de Ruy Cinatti para Mário Beja Santos:

Meu caro Mário:

Tenho pena de que a sua segunda operação não fosse tão bem sucedida como a primeira. Isto do ponto de vista estritamente militar, porque a acção reflecte-se na prosa e o entusiasmo tornou-se comunicativo. Estou a ser egoísta, bem sei. Outros diriam, pensando na sua pele, que quanto menos porrada melhor.

Recebi o livro do M.G. V[ocê] fica desde já proibído de me enviar livros, a não ser por via marítima para que eu os guarde. Livros-presente por via aérea, não. Gaste o dinheiro dos selos com os seus gadulhas.

Sobre mandingas na metrópole, parece-me asneira. Não os vejo como proletários urbanos e não me parece haver nada que os enquadre no meio rural. Falarei, no entanto, com gente da [Junta de] Colonização Interna.

A sua prosa tem qualidades: finalmente, economia, mas está um pouco desconchavada, talvez por excesso de sentimentalismo. Dela extraí o seguinte poema, que lhe é dedicado:


Sete horas húmidas, algures.
Progressão, fardas ensopadas.
Silêncio nos corpos, silêncio na terra de combate.
Estacas calcinadas.

O piar das aves, o olhar súplice.
Dois tiros quase num só eco.
O desabar de folhas, ramos rápidos.
Um grito incerto.

Missão cumprida, meta adivinhada.
Febre sem alma ou acordo.
O peso súbito de um morto
Caindo nos meus ombros estreitos
ou
Nos ombros estreitos da minha miséria.


Hoje, sábado de Aleluia. Gostaria de ter cá amanhã o meu amigo Mário. O Teixeira da Mota mandou-me novo endereço: Comando Naval, C.P. 1302. Espero que a sua carta para ele não se tenha perdido. Descobri um gadulha que foi alfero polícia militar em Timor e quer voltar para lá como antropólogo. Acaba o curso este ano. Damo-nos lindamente e, ainda por cima, é casado de fresco. Grande abraço do Ruy.

28/3/70

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