segunda-feira, 7 de agosto de 2006

Guiné 63/74 - P1029: O meu testemunho (Paulo Raposo, CCAÇ 2405, 1968/70) (17): Dulombi

XVII parte do testemunho do Paulo Raposo (ex-Alf Mil Inf, com a especialidade de Minas e Armadilhas, da CCAÇ 2405, pertencente ao BCAÇ 2852 > Guiné, Zona Leste, Sector L1, Bambadinca, 1968/70 > Galomaro e Dulombi).

Extractos de: Raposo, P. E. L. (1997) - O meu testemunho e visão da guerra de África.[Montemor-o-Novo, Herdade da Ameira]. Documento policopiado. Dezembro de 1997. 45-49 (1).

DULOMBI

Dulombi era uma Tabanca que já não tinha população e ficava a sul de Galomaro. Assim que lá chegámos, rodeámos o perímetro com arame farpado e começámos a fazer os abrigos onde passámos a dormir. Passámos à condição de toupeira.

Os abrigos eram feitos da seguinte maneira: abre-se uma cova até à altura da cintura. Depois cobria-se a vala com troncos de palmeiras. Em cima destas colocava-se a chapa dos tambores, que abríamos. Por fim, colocávamos terra.

Era um sufoco ali em baixo! Foi ali que, tal como os presos, comecei a contar um a um os dias que faltavam para me vir embora. O Capitão, que não estava para dormir no chão, fez um bunker em cimento só para ele.

Vou contar alguns episódios que por lá se passaram:

1. Tínhamos acabado de chegar, eu ainda estava a dormir numa tenda de campanha, pois os abrigos ainda não estavam prontos. Estava eu deitado, a meio da tarde, e lá fora havia alguns soldados a jogarem à bola no meio do recinto. Nisto, surge um ataque feroz.

Entro de imediato para o abrigo e começamos a responder ao fogo. Mesmo ao meu lado estava um tambor de ferro cheio de água. Durante a excitação do ataque apercebi-me que houve uma granada que rebentou muito perto de mim. Quando a calma regressou, reparei que o tambor estava todo furado pela granada do RPG-7 que o IN tinha atirado.

Nossa Senhora mais uma vez me valeu. Se aquele tambor não estivesse ali, era eu que tinha apanhado com todos os estilhaços.

Neste ataque um dos meus soldados ficou ferido com alguns estilhaços. Foi evacuado e ao fim de uma semana já estava de volta. No Hospital os estilhaços não eram extraídos da carne. Era o próprio organismo que os expelia.

2. Passámos a ter ataques mais frequentes e dias houve que tivemos dois no mesmo dia. Num desses ataques estava eu só com o meu grupo de combate, pois a companhia tinha saído. Era de dia. O perímetro do aquartelamento era grande e a responsabilidade também. Quis saber se havia homens em todos os lados do aquartelamento.

Durante todo o tempo que durou o fogo, percorri o perímetro para ver se tudo estava bem e ainda parei na messe para ir ao frigorífico beber um pouco de água fresca, pois estava sequioso. Regressei novamente à vala. Depois dos primeiros momentos habituamo-nos a estar debaixo de fogo e já não nos ralámos.

Nunca fiz fogo contra o inimigo. Como os soldados não se continham a fazer fogo, achava que mais um não fazia diferença e, no caso do tiroteio se prolongar, ter munições disponíveis podia ser a nossa salvação. Guardei sempre as minhas munições para o fim caso houvesse necessidade. Habituei-me a controlar-me bem nestas alturas.

Para explicar melhor o que representa uma reserva de munições vou contar uma história passada com o Alferes David. Estava ele a nível de grupo de combate numa Tabanca, que estava a ordenar, quando, à noite, teve um ataque feroz. Chovia que Deus a dava e as valas estavam cheias de água.

Começaram a responder ao fogo inimigo sempre debaixo da chuva torrencial. Com a chuva e a lama, as armas iam encravando. Por fim, só havia uma arma a disparar mas foi o suficiente para o inimigo não avançar.

Se aquela arma tivesse encravado, tinham sido todos apanhados à mão. Nossa Senhora lhes valeu. Nestas ocasiões dividia-se o trabalho. Uns abriam os cunhetes de munições, outros municiavam os carregadores e outros disparavam.

3. Passados tempos, encontrei-me na mesma posição, ou seja, s6 com o meu grupo de combate no perímetro de Dulombi, a companhia fora e um novo ataque durante o dia.

Desta vez estava na messe e corri para o abrigo de transmissões que era ali perto. Atrás e agarrado a mim, veio o Furriel Cabral, de etnia papel. Como não tínhamos armas e estávamos no meio do perímetro, no abrigo de transmissões, resolvi pedir apoio aéreo.

Ao fim de 15 minutos apareceu um Fiat. O fogo inimigo acabou de repente e nunca mais houve ataques ao novo aquartelamento durante o dia.

4. Como esta zona estava a aquecer, foi enviada uma companhia para nos reforçar e fazer patrulhamento em profundidade, de forma a permitir- nos tomar a iniciativa da ofensiva.

Com esta companhia apareceu um amigo meu, o Kiko Salema, de Oeiras. Lá lhe arranjei uma cama para ficar. Como não havia camas e os abrigos estavam cheios, tive de arranjar uma solução para o Kiko. Como durante a noite estava sempre um soldado da sentinela, que se ia revezando, aproveitei essa cama para ele dormir. Mas como o soldado quando regressava tinha a cama ocupada pelo Kiko, ia acordar o soldado que o ia render, e deitava-se na cama dele, e assim sucessivamente.

Assim durante o período que o Kiko lá esteve, os meus soldados deitavam-se numa cama e acordavam noutra por efeito da rotação. Tudo se fazia de boa vontade, para ajudar o próximo.

5. De Dulombi tínhamos de ir às vezes a Galomaro para fazer colunas de reabastecimento. Numa dessas colunas saímos de Dulombi cedo e passámos a bolanha que estava logo a seguir ao aquartelamento. Como íamos com os carros vazios, passávamos bem por todo aquele lamaçal. No regresso, vínhamos carregados, era um inferno.

O terreno estava encharcado e os carros enterravam-se. A solução era lançar o guincho que os Unimog tinham à frente, a uma árvore, para com esta ajudar a safar o carro. Havia também muitos carros que nem com o guincho saíam do lamaçal. Nestes casos tínhamos de descarregar o carro, puxá-lo, e carregá-Io de novo. Este episódio podia repetir-se várias vezes. As colunas levavam horas a percorrerem poucos quilómetros. Era um desespero.

Como os carros resvalavam no lamaçal, nem sempre os carros da frente pisavam o mesmo trilho. Nessa coluna à ida não picámos a estrada e à volta detectámos uma mina. Já lá devia estar antes. Nossa Senhora fez com que o carro resvalasse e não pisasse a dita mina.

6. Um dia à noite estávamos a conversar à porta do bunker do Capitão. De repente o Alferes Rijo diz:
- Olha uma estrela cadente.

Qual quê! Era a primeira bala tracejante do IN, que dava início a mais uma flagelação. Entrámos de rompante pela entrada estreita do bunker do Capitão. Todos quisémos entrar ao mesmo tempo. Lá dentro, foi uma risada. Naquela altura não havia cerimónias.

Uma vez que vivemos muito de perto com os Fulas, quero deixar aqui a impressão com que fiquei deles. Era gente séria e trabalhadora, com hierarquia bem definida e muito respeitada. Eram os homens grandes que, em conselho, davam as orientações que eram por todos respeitadas. A religião era muçulmana. Eram também leais e não conheciam a falsidade, a manha ou a velhacaria. No entanto eram supersticiosos.

Quanto ao inimigo, os que andavam no mato, o comportamento era igual. Estes iam passar férias a Bissau, assim como nós íamos à Metrópole. A luta era só no mato, não havia a cobardia do terrorismo urbano. Tinham um código de conduta mais digno que muitos ditos civilizados.

Contavam-se histórias de entente cordiale com o inimigo. Contaram-me que havia companhias que deixavam regularmente alimentos em determinados pontos. Por sua vez o inimigo não colocava minas nos itinerários assim como não fazia flagelações ou emboscadas.

Não houve outro povo no mundo que se tivesse ligado tão bem com os africanos como nós. O povo Cabo Verdiano é bem o exemplo disso. Salazar teve na gaveta da sua secretária o decreto que tornava Cabo Verde em llhas Adjacentes. Não o quis fazer ou não encontrou oportunidade.

A moeda circulante na Guiné era chamada o peso e valia menos 10% que o escudo. O nome corrente do dinheiro era patacão. Manga de patacão queria dizer muito dinheiro.

A minha comissão aproxima-se do fim. Chegámos à Guiné como rapazinhos e saímos como homens amadurecidos à força pela luta pela sobrevivência e desgastes físico e psíquico. O nosso facies torna-se mais carregado e ganhamos uma ansiedade natural pelo tempo que não passa.

Vou dar um exemplo para ilustrar a diferença. Numa operação que fizemos ainda em Mansoa, pouco tempo depois de termos chegado, dormimos no mato. O inimigo, que andava por perto, lançou uma rajada de arma automática sobre nós. Estava inseguro pois não sabia bem a nossa localização. Não respondemos ao fogo.

Eu estava a dormir e não dei por nada. No dia seguinte diz-me um soldado meu:
- Então, meu Alferes, ouviu as rajadas que eles nos atiraram? - É claro que não.

A dois meses do fim da comissão, como não conseguia dormir capazmente, tinha pedido à minha mãe que me enviasse uns comprimidos para dormir. Para descansar, tomava dois Mogadans antes de me deitar.
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Nota de L.G.

(1) Vd. post anterior:

3 de Agosto de 2006 > Guiné 63/74 - P1022: O meu testemunho (Paulo Raposo, CCAÇ 2405, 1968/70) (16): De novo em Bissau, a caminho de... Dulombi

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