quarta-feira, 2 de agosto de 2006

Guiné 63/74 - P1017: Estórias de Contuboel (iii): Paraíso, roncos e anjinhos (Renato Monteiro, CART 2479 / CART 11, 1969)


Guiné-Bissau > Região de Bafatá > Contuboel > 1998 > Foto tirada no centro da povoação, atravessada pela estrada que vai para Bafatá... Uma autêntica autoestrada, garantia o Albano Costa que por lá passou em 2005, onde o jipe podiachegar... aos 120!

Foto: © Francisco Allen & Zélia Neno (2006). Todos os direitos reservados.


Terceiro texto do Renato Monteiro, da série de cinco, que intitulei estórias de Contuboel, pequenos apontamentos que o meu amigo escreveu com base na sua experiência de instrutor de recrutas guineenses, em Contuboel, no 1º semestre de 1969.

O Renato Monteiro foi furriel miliciano na CART 2479 - que deu origem à CART 11 e esta, por sua vez, à CCAÇ 11 - e, mais trade, por motivos disciplinares, na CART 2520, Xime e Enxalé (1969). Encontrámo-nos, eu e ele, em Contuboel. Em Contuboel, perdemos o rasto um do outro. Há dias enviou-me a seguinte mensagem telegráfica:

Luís

Pela mão do 'Fora-Nada' (, o blogue), cheguei a Contuboel! Em que dia de Agosto nos poderemos encontrar?

Um grande a abraço,
Renato



O PARAÍSO, OS RONCOS E OS ANJINHOS


É à sombra frondosa das mangueiras, durante as breves pausas das longas oito horas diárias de instrução que Jaló, crente em Alá, me fala do paraíso perfumado, com frutos perenemente maduros, sem maçãs proibidas, abundante comida para satisfazer o apetites dos mais insaciáveis, das alegrias sem medida e das submissas mulheres de deslumbrante beleza, escolhidas a dedo, todas virgens para eterno consolo dos homens, sejam novos ou velhos.

Desse jardim implantado no céu, supremo prémio destinado aos que cuidam cumprir zelosamente não apenas com as obrigações de rezar, jejuar pela ocasião do Ramadã, fazer uma peregrinação a Meca ao longo da vida, mas também aos que recusam as tentações condenáveis pelo Islão, de que Maomé é o profeta, como o consumo de carne de porco e as bebidas alcoólicas.

Interdições que não abrangem o tabaco aspirado por cachimbos que cabem numa mão fechada ou as nozes de cola, tão azedas quanto duríssimas, que revitalizam os músculos e o resto, quando necessário, debelando a fome e dando coragem tanto para combater as agruras da vida como para enfrentar os bandidos da mata.

Nem tão pouco obrigam à fidelidade exclusiva da mulher esposada que, Jaló, tem duas e diz andar a pensar dia e noite numa terceira que vive em Gabu.

Assim não perca os roncos de couro, pagos a bom preço: o que traz atado à cintura e outro no peito, suspenso pelo pescoço, que o protegem tanto da picada dos lacraus como do veneno injectado pelas cobras; dos ferrões cravados pelas abelhas e de todo o bicho selvagem que constitua uma ameaça; da acção nefasta provocada não apenas por encontros indesejáveis com pessoas que rogam pragas, mas também contra seres diabólicos, vazios de forma e capazes de, com um único sopro, transmitirem uma enfermidade incurável morrendo-se, tarde ou cedo, dela. Ou sobrevivendo-se apenas quando se trata de uma mudez, coisa rara, ou de uma cegueira como aconteceu ao filho mais novo do antigo Chefe da Tabanca de Contuboel quando, em criança, andou perdido durante sete dias na mata, nunca mais voltando a ver as cores com que se cobre o mundo.

Com a protecção dos roncos e ainda com a inseparável e benfazeja presença do anjinho do Bem que, encavalitado num ombro do Jaló, cuida ele, há-de levar a melhor em disputa com o seu comparsa, colado ao outro ombro, ímpio por natureza e sempre pronto a pregar as mais nefastas partidas ao seu portador. Vá para onde for, mesmo em sonhos, a dormir.

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