domingo, 18 de junho de 2006

Guiné 63/74 - P882: Historiografia da presença portuguesa em África (1): Infali Soncó e a lenda do Alferes Hermínio (Beja Santos)

Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Bambadinca > 1970 > Ao fundo, a escola primária (no telhado, ainda vísiveis as letras pintadas a branco com o nome da localidade...), frente à parada, o pau da bandeira e os memoriais das unidades que por lá passaram; à direita, a árvore de maior porte que lá existia no nosso tempo, a casa do chefe de posto (se não me engano) e, por detrás, o depósito de água... Ao tempo, era professora a Dona Violette da Silva Aires, de origem caboverdiana, aqui tão justamente evocada pelo Beja Santos... (LG)
Foto: © Humberto Reis (2006). Direitos reservados


Guiné-Bissau > Região de Bafatá > Bambadinca > 1997 : Vinte e sete anos depois, a escola, já em completa ruína... "Deambulo aos solavancos e o meu sonho vai até Bambadinca, do cemitério à vila. Bato à porta de Dona Violete da Silva Aires, professora, cabo-verdiana de pele clara, que me aguarda numa sala ampla, ao pé de um piano a cair de podre, com uma boquilha na mão. Serve-me uma infusão, faz-se silêncio, Dona Violete olha em direcção ao Geba. É uma mulher que esconde a devastação do tempo com camadas absurdas de pó de arroz e traços grossos de rímel. O cabelo oxigenado sai-lhe de um lenço vistoso, de cores fosforescentes, amarrado em laços grotescos sobre o carrapito. Tudo nela é amolecimento, solidão, alguma sensualidade mal contida" (...) (Beja Santos).
Foto: © Humberto Reis (2005) (com a colaboração do Braima Samá, professor local). Direitos reservados.


Por gentileza do autor, o nosso camarada Beja Santos, ex-alferes miliciano, comandante do
Pel Caç Nat 52 (Bambadinca e Missirá, 1968/70) (1)

A LENDA DO ALFERES HERMÍNIO DE JESUS
por Beja Santos

Para Bacari Soncó, Régulo do Cúor

A noite passada, sonhei que tinha voltado a Missirá, envolto pelo piar lúgubre dos jagudis e o restolhar dos porcos do mato. Meti-me à estrada a partir de Canturé, rápido alcancei Finete, de onde se avista o bruxulear de Bambadinca. Abudu Cassamá, de costas retalhadas por uma granada de fósforo, acompanhou-me pela bolanha enluarada. Como num sonho tudo é consentido, retiro de uma carta que trago no meu camuflado a fotografia do túmulo de Infali Soncó, reduzido a duas paredes de adobe carcomido por chuvas diluvianas e estios tórridos. Infali Soncó, Régulo do Cúor, derrotou Teixeira Pinto em 1917. É um herói mandinga, mas não foi ainda herói para a Guiné Bissau. No meu sonho ele está sepultado em Bambadinca, mas, de facto, ele jaz em Missirá.

Para procurar conhecer o sopro anímico que movia o guerreiro Infali, a noite passada percorri, em relâmpago os seus territórios, o seu império: a sul, definia-se pelas sinuosidades do Rio Geba ou Xaianga; a oeste, por Porto Gole; a norte, pelo Ôio e Mansomini; a oeste, pelo Jolado e Badora. Abro uma carta de um para cinquenta mil, dos Serviços Cartográficos do Exército, para ver o que cabe dentro do território do Cúor: nomes exóticos como Darsalame, Gã Joaquim, Paté Gidé, Flaque Dulo.
Lembro estes nomes e estremeço com a recordação de ter percorrido muitas destas ruínas do império destruído, naqueles anos da guerra, quando comandei em Missirá. Na guerra patrulhei, minei, queimei, vi gritar de dor nos rios Biassa, Gambiel e na orla do Geba, embusquei em Chicri, em São Belchior, sobretudo em Mato do Cão, onde me apavorei quando ouvi e vi as águas revoltas pelo macaréu.
Os guerrilheiros tinham os seus acampamentos em Madina, em Mansomini, em Quebá Jilã. As famílias Soncó e Mané, os descendentes de Infali, estão em Missirá e também em Finete (é aqui que conheci Bacari, hoje Régulo do Cúor). Porque o Cúor de Infali já não existe. O meu sonho prossegue. Vejo-me sentado numa raíz de poilão, junto do túmulo de Infali a perguntar ao vento: no fim desta guerra medonha, será que este Cúor se levantará, ainda terra de grumetes e ponteiros? O vento permanece impenetrável.

Deambulo aos solavancos e o meu sonho vai até Bambadinca, do cemitério à vila. Bato à porta de Dona Violete da Silva Aires, professora, cabo-verdiana de pele clara, que me aguarda numa sala ampla, ao pé de um piano a cair de podre, com uma boquilha na mão. Serve-me uma infusão, faz-se silêncio, Dona Violete olha em direcção ao Geba. É uma mulher que esconde a devastação do tempo com camadas absurdas de pó de arroz e traços grossos de rímel. O cabelo oxigenado sai-lhe de um lenço vistoso, de cores fosforescentes, amarrado em laços grotescos sobre o carrapito. Tudo nela é amolecimento, solidão, alguma sensualidade mal contida. Súbito, Dona Violete ganha energia e, sem pausas, segue-se a narrativa histórica dos Rios da Guiné, de Cabo Verde, uma espiral de violência, tráfego de escravos e conquista que se derrama dentro do meu sonho. Inevitavelmente, o Cúor entra no palco. Nele, o Geba é a região dos entrepostos; a estrada de Porto Gole-Enxalé avança para Geba e Bafatá, sulcando o terreno firme do Cúor, a serpentear o rio das mercadorias; e o Cúor é rico em madeiras perfumadas, tem um pau sangue único no mundo.

Sinto que o meu sonho está a terminar. A voz sumida da Dona Violete adverte: "Lembre-se, Sr. Alferes, estamos numa das regiões mais palustres da terra. Antes do combate à doença do sono e do tracoma, as grandes mortandades da malária, da lepra e do béribéri, situavam-se aqui. No fundo dos mangais, a vida só é possível à volta dos riachos e palmares. Já ouviu falar de um alferes português que no tempo de Infali morreu de amor? “.

Acordo, hoje é o segundo domingo de Janeiro de 1990, 20 anos depois regresso a Missirá na companhia de Maria Leal Monteiro e Francisco Médicis. De Bissau seguimos para Nhacra, onde as crianças acompanham a missa com batuque. A caminho de Porto Gole, o Geba é mercúrio ígneo. Paramos em Mato do Cão, que percorri todos os dias, entre Agosto de 1968 e Novembro de 1969. A ponta do cabo-verdiano está completamente destruída. Restam umas madeiras do ancoradouro e vou ver o Geba e o seu tarrafe. Subimos depois para Missirá, onde vou entrar e sair lavado em lágrimas. Após a recepção, Abudu Soncó, o filho mais novo do Régulo Malâ, apresenta-me Alage Soaré Soncó, o último filho sobrevivente de Infali. Será através dele que vou finalmente conhecer a lenda do Alferes Hermínio de Jesus.

Sentado à porta de uma tabanca, depois de termos bebido chá e comido papaia, Alage, de olhos brumosos, falou-me de Infali. Vou tomando nota do que ele diz, a partir de agora nada é ficção. A lenda do alferes português é o momento mais alto do génio militar e, simultaneamente, prenuncia o ocaso de Infali. A luta encarniçada entre Infali Soncó e as tropas portuguesas, na segunda campanha de Teixeira Pinto, em 1917, revela a sua bravura e igualmente a sua fina percepção política.

Infali terá nascido por volta de 1870, em Berrocolom no sector do Gabu, leste da Guiné. Com 19 anos, à frente de cem cavaleiros, conquista Cumpone, na região de Boké, Guiné Conakri. Tal feito grangeia-lhe a admiração dos mandingas e é convidado para Régulo de Cumpone. Infali encontrou forte rivalidade dos fulas, sobretudo do guerreiro Alfa Iaia, de Conakri, e logo fica à espreita de uma oportunidade para sair de Cumpone.
Essa oportunidade veio a acontecer em 1894, quando o seu tio Calonandim Mané, Régulo do Cossé, em Bafatá, e aliado dos portugueses, lhe pede para invadir o chão do Cúor, repito um imenso território entre a Porta do Cúor (hoje Porto Gole) e a região do Geba. O objectivo era depor o Régulo Sambel, Nhatam, que tinha a sua fortaleza em Sam-Sam (perto de Gã Gémios, totalmente desaparecida, como eu próprio confirmei). E daí partiam as hostilidades contra as embarcações portuguesas e cabo-verdianas que ele atacava com ferocidade no Rio Geba, entre Mato do Cão e Bambadinca.
Infali aceitou combater ao lado de Calonandim Mané, ambos cercaram Sam-Sam com mais de duzentos guerreiros armados de longas (canhangulos) e azagaias e Sambel Nhatam bateu em retirada. As autoridades portuguesas apercebem-se das vantagens de uma aliança com estes fogosos guerrilheiros mandingas. Logo o Governador Lito de Magalhães parte de Bolama (então a capital da Guiné) e convida Calonandim a aceitar o regulado do Cúor.

Alage Soncó contou-me que as festas deste novo régulo foram faustosas e compareceram os régulos de Mansoa e Mansabá. Calonandim reinou cerca de vinte anos e foi morto numa batalha perto de Enxalé, terra de balantas. Com a aprovação das autoridades de Bolama, Infali ascende ao trono e vinga exemplarmente Calonandim - correram rios de sangue entre Enxalé e a Porta do Cúor.

As autoridades portuguesas mostraram-se entusiasmadas com o perfil do castigador e as provas de fidelidade do aliado: Infali foi condecorado em Geba, em 1914.

Pergunto então a Alage Soncó porque se revoltou Infali contra os portugueses. Aqui ficam as explicações de Alage.
Em 1915, o Governador Fortes veio de Bolama (2) em visita de cortesia pelos regulados do leste da Guiné, fez-se acompanhar de comitiva militar , e entre os oficiais vinha o Alferes Hermínio de Jesus, um quase mancebo. Infali sai de Sam-Sam acompanhado pelos seus músicos para apresentar saudações de boas vindas. O Governador Fortes fica desorientado com o avanço da mole humana e a algazarra dos músicos. O Alferes Hermínio, desconhecedor do carácter hospitaleiro da fanfarra, manda disparar. Infali não se atemoriza com os tiros, interpretou-os como um acto de pura hostilidade e manda cercar os portugueses.
Protegido pela resistência do Alferes Hermínio, Fortes retira para Malandim e daqui para Samba Silate, perto do Xime. Infali captura o Alferes Hermínio, dois sargentos e catorze praças. Bolama interpreta estes reféns como sinal de rebelião contra Portugal. Infali não se deixa intimidar e actuou em duas direcções: cortou a navegação no Geba, paralisando toda a actividade económica entre Bambadinca e Bafatá; e, tendo comprado armas a comerciantes franceses do Casamansa, desafiou o Capitão Teixeira Pinto para as matas do Ôio. O Alferes Hermínio, entretanto, ficou a viver numa morança em Gâ Gémeos, perto da Aldeia do Cúor.
Um amigo de Infali Soncó, de nome Pedro Moreira, dono de uma destilaria entre Gâ Gémeos e Aldeia do Cúor, negociou com Infali a liberdade do oficial português. Veio, entretanto, um barco do Bolama para recuperar todos reféns, e um segundo tenente trouxe, em nome de Fortes, uma proposta de paz. Tinham-se passado cerca de vinte meses após o incidente com os músicos e a fuga do Governador Fortes.
Alage Soncó confessa então que as opiniões dos mandingas se dividiram quanto às razões da morte de Hermínio. Uns disseram que se apaixonara loucamente por Cumba Mané, filha de Inderissa Mané, comerciante de tabaco, panos e álcool em Canquelifá (3) e no rio Cheche. Havia mesmo quem dissesse que o casal era feliz e que Hermínio se dedicava à agricultura, aprendia crioulo, ourivesaria e as artes equestres. Outros, foram premptórios quanto à progressiva insanidade mental e isolamento do oficial, que se passeava sozinho pelo mato como um sonâmbulo. Ao gosto da época, o alferes suicida-se num palmar entre Caranquecunda e Missirá, deixando uma carta de despedida aos pais, pedindo-lhes perdão por não querer regressar, tal a paixão que sentia pelas terras da Guiné.
Nessa carta, reza a lenda, Hermínio referia-se ao Geba, aos pôr–do- sol em fogo que caiam repentinamente sobre a terra, à vida da tabanca, ao filho que ia nascer. Certo e seguro, o segundo tenente regressou a Bolama com um cadáver que era incómodo para todos. Aqui, Alage Soncó observa a fatalidade: a desdita do Alferes Hermínio marcava o início da queda política da Infali Soncó.

De facto, no fim da segunda campanha de Teixeira Pinto, Infali, que negociara a sua manutenção no poder após a derrota do contigente português nas matas do Ôio, desavençou-se com os régulos do Jolado e Cossé - os fulas abandonaram-no e Infali só dispunha do apoio dos mandingas e dos beafares. Bolama não perdeu a oportunidade para se desembaraçar do aliado instável. Infali é desterrado para Fulacunda (região de Quínara) onde morrerá em 1926. Um dos filhos de Infali, Bacari, é designado para régulo. É Bacari Soncó quem transfere a sede do regulado de Sam-Sam para Missirá, onde eu estou a recolher o depoimento de Alage Soaré Soncó.

Terei eu retido o essencial sobre a história do Alferes Hermínio? Alage pergunta-me de sopetão: “A família de Hermínio respeita a terra onde ele viveu e morreu?”. Digo que sim, como se Missirá não estivesse no meu sonho, e esta história tivesse alguma importância a não ser a de eu voltar a Missirá no segundo domingo de Janeiro de 1990, vinte anos após dela ter partido, a Missirá, que vi três vezes queimada e reconstruída, onde os meus mortos estão sepultados no cajueiro virado para Gambiel (4).

Está na hora de regressar. É difícil sair de Missirá, e, repito, tal como entrei saio lavado em lágrimas. Abudu Soncó entrega-me um livro que eu deixei em Missirá. Tem uma dedicatória e tem também um pensamento escrito numa máquina dactilográfica. O pensamento diz: “Se capturares o momento antes de maduro/As lágrimas de arrependimento certamente te fustigarão/Mas, uma vez que deixas escapar o maduro momento,/tu nunca poderás limpar as lágrimas de desespero”. William Blake. Acordo do meu sonho. Amanhã vou perguntar ao Abudu se Alage Soncó ainda é vivo. Tenho para ele uma resposta acerca dos familiares do Alferes Hermínio. Também eles gostavam de ir às terras do Cúor. A carta chegara a Lisboa. Hermínio morrera de amor por uma mulher e por um território. Muito ao gosto da época, afinal. (5)

__________

Notas de L.G.

(1) Vd . post anterior

(2) Bolama foi a primeira capital da província portuguesa da Guiné desde 1879 até 1941.

(3) Canquelifá: a nordeste de Nova Lamego

(4) Rio Gambiel, afluente do Rio Geba
(5) Em relação aos factos recolhidos oralmente pelo Beja Santos, parece haver algumas notórias discrepâncias, quando confrontrada a versão local com a historiografia portuguesa. Por exemplo, na Nova História Militar de Portugal (ed. lit. Manuel Themudo Barata e Nuno Severiano Teixeira), vol. 3 (Lisboa: Círculo de Leitores, 2003), pode-se ler a seguinte nota (p. 449):
"1908 - O governador Oliveira Muzanty, obtendo reforços da metrópole, organiza a maior expedição efectuada na Guiné até 1963, vencendo a resistência biafada, encabeçada por Unfali Soncó em Cuor e Canturé e restabelece as comunicações entre Bissau e Bafatá (5 a 24 de Abril)".
Carlos Bessa , autor do capítulo "Guiné. Das deitorias isoladasa ao 'enclave' unificado" (pp. 257-270), escreve o seguinte sobre o régulo Soncó:
"(,...) O régulo Unfali Soncó, aliado do régulo de Badora, Bonco Sanhá, com o assentimento de outros régulos fulas, pretendeu impedir a navegação no Geba, criando o risco de sufocar Bissau extinguindo-lhe o comércio. Contando com a aliança do régulo do Xime, Abdulai Kassalá, violento e impopular, e de Monjour, célebre régulo do Gabu, Muzanty fez frente a Soncó (...).
"Em 18 de Março [de 1908] desembarcou a expedição prometida pelo governo, com um efectivo de 358 oficiais e soldados portuguese. A resistência de Unfali Soncó ainda durava, e Muzanty organizou e assumiu o comando da maior expedição do exército regular ao interor da Guiné até 1963. Unfali Soncó, vencido em Cuor e Ganturé, entre 5 e 24 de Abril, viu-se abandonado. A resistência das tabancas biafadas foi pequena, e a navegação comercial entre Bissau e Bafatá restabelecida. Abdul Injai, aventureiro senegalês, distinguiu-se no apoio dado. Foi nomeado réglo do Cuor, efectuou avultadíssima cobrança do imposto e ele próprio enriqueceu" (pp. 266-267).
Na referência de Carlos Bessa ao "pacificador" da Guiné, Teixeira Pinto, e à sua "segunda campanha" (1913-1915), não surge o nome de Unfali (ou Infali) Soncó.
João Augusto de Oliveira Muzanty foi governador da Guiné entre 1906 e 1909. Não encontro nenhum Fortes nem nenhum Lito de Magalhães na lista dos governadores da Guiné. Muzanty é, juntamente com Teixeira Pinto, um dos grandes protaganistas da "pacificação" da Guiné, tendo em sua honra sido erigida uma estátua em Bafatá.

Sem comentários: