sexta-feira, 18 de novembro de 2005

Guiné 63/74 - P279: É bom! (A. Marques Lopes)


"Sei que, infelizmente, também mataram [depois da independência] alguns dos meus jagudis e até o meu guia Braima..." (A. Marques Loes, e-mail de 11 de Novembro de 2005).

O Alf Mil Lopes, da CCAÇ 3, em Barro, em 1968, com o seu guarda-costa, balanta. O seu grupo de combate era constituído pelos Jagudis...

"O meu guarda-costas chamava-se Bletche-Intete. Grande amigo. Um dia deu-me um grande empurrão durante um tiroteio... é que eu tinha-me virado de costas para o local de onde o IN estava a disparar (fiquei mal dos ouvidos desde que fui ferido em Geba)".

© A. Marques Lopes (2005)


Excerto de um aerograma, datado de Geba, 7 de Maio de 1967.

Remetente: Alf Mil António Marques Lopes, SPM 04228.



© A. Marques Lopes (2005)




Execerto de aerograma com data de Barro, 4 de Junho de 1968.



© A. Marques Lopes (2005)




Caros camaradas:

Só quero, desta maneira, manifestar a minha muito grande satisfação pelo advento a esta tertúlia de mais (ex-)camaradas combatentes na guerra da Guiné [os mais recentes, três comandos Virgínio Briote, A. Mesdes e Mário Dias].

Valorizo, sobretudo, a forma calma e serena como nos contam as suas experiências. Desta forma é que contribuem também para a calma e a serenidade de cada um de nós. Ajudam-nos a assumir a nossa história e as nossas vivências no sentido de que foi uma parte (marcante, claro) da nossa vida, que continua no nosso íntimo (não podia ser de outra maneira), mas que a estamos a ver com os olhos calmos da distância e ... da idade.

Não há fantasmas, foi simplesmente a vida que tivemos de ter, muito contra vontade, com certeza, mas que tivemos de enfrentar. Apesar das mortes e dos padecimentos creio que todos estamos a ver (e eu vejo isso por mim e pelos vários depoimentos) que não foi o IN que nos fez mal, a tal entidade que eu já vos disse que foi um tapa-olhos para não tentarmos ver, mas sim as contingências que nos obrigaram a lutar contra ele.

A não existência de rancores fundos para com aqueles que tivemos de enfrentar, apenas só o relato de situações que cada um viveu, a empatia solidária e sentimental por aquele povo da Guiné que deixamos transparecer no que dizemos, é sinal de que estamos bem connosco próprios, apesar daquilo que vimos e daquilo que passámos. É bom.

Os meus agradecimentos, por isso, a esta iniciativa do Luís e a todos aqueles que lhe têm dado corpo.

Um abraço amigo para todos do

A. Marques Lopes

(Ex-Alf Mil, da CART 1690, em Geba; e da CCAÇ 3, em Barro, Guiné, 1967/68; hoje, Coronel, DFA, na reforma).

Guiné 63/74 - P278: Projecto Guileje (5): contra o demónio étnico (Lui´s Graça)

1. Há tempos escrevi ao Carlos Scharwz, da AD - Acção para o Desenvolvimento, transmitindo-lhe algumas reticências e dúvidas (legítimas) dos nossos amigos e camaradas de tertúlia (Sousa de Castro, Humberto Reis, David Guimarães, entre outros), relativamente ao projecto Guileje. Eis as questões que eu lhe pus:

"Era bom dares mais detalhes sobre um dos subprojectos, a reconstrução do quartel... Alguns camaradas torceram o nariz: será viável (do ponto de vista técnico, ambiental e financeiro) reconstruir o aquartelamento ? tens contactos com a antiga companhia acçoreana que lá estava em Maio de 1973 ? que valor simbólico tem hoje Guileje para os guineenses ? não haverá outras prioridades ? Enfim, são perguntas legítimas"...

2. Responde-nos agora o Carlos Scharwz, a quem agradeço:

Luís,

Vou procurar responder às questões levantadas sobre a pertinência da reconstrução do quartel de Guiledje.

(i) Viabilidade técnica, financeira e ambiental:

Quando se fala em recuperar o quartel, estamos a referir-nos a utilizar as antigas instalações para actividades viradas para o futuro e não como simples depositários de memórias e recordações.

Por exemplo:

- as messes serão usadas como salas de aula do futuro CENAR (Centro de Aprendizagem Rural), onde os jovens adquirirão conhecimentos profissionais (electricidade, carpintaria, pedreiros, ferreiros, etc.) ou de artesanato (construção de camas, armários e mesas em bambú, tara e mampufa; recuperação e produção de máscars e esculturas nalús; etc.);

- a secretaria será a sede do Parque Transfronteiriço de Cantanhez;

- as casas da população será o local onde serão construídos os futuros bangalows para acolher as pessoas que visitem e turistas;

- a cantina será o museu; e assim sucessivamente.

É importante que se diga que não vamos contratar nenhuma empresa para a reconstrução do quartel. Ela será gradualmente feita utilizando o apoio comunitário e pagando a jovens carpinteiros e pedreiros locais. Os custos serão, por isso, muito baixos e evita-se ter infraestruturas luxuosas. Não se pense que se trata de retórica nossa, pois ao longo dos 14 anos a AD tem construído centros de saúde, escolas, centros culturais, casas de ambiente e cultura, etc., sempre com esta metodologia. Com resultados muito bons.

Ambientalmente a reconstrução preservará integralmente todas as árvores que existem e que dão um clima e tranquilidade muito agradáveis. A procura de um arquitecto paisagista é já o reflexo desta nossa opção.

(ii) Valor simbólico para os guineenses:

Para os mais velhos e os de meia idade, Guileje continua a ser um marco decisivo para a conquista da independeÊncia da Guiné-Bissau e o voltar da última página da luta. Foi o momento determinante que decidiu a guerra.

Poucos restam dos que participaram nesse acontecimento. É uma responsabilidade actual e urgente não os deixar morrer sem que nos transmitam o seu testemunho.
Para a concretização da iniciativa Guileje, fizemos apelo a várias pessoas dentro e fora da AD. A resposta deixou-nos absolutamente surpresos pelo entusiasmo e entrega.

(iii) Não haverá outras prioridades?

Claro que, se perguntarmos à população local, eles enumerarão as suas actuais prioridades: saúde, escola, água, meios de transporte.

Para a AD também estas são prioridades suas, não só claramente expressas nos seus estatutos, como na prática dos seus 14 anos e também no projecto que envolve a componente Guileje e que compreende o apoio ao Centro Materno-Infantil de Iemberém (análises clínicas, assistência às mulheres ante e pós-parto, campanhas de vacinação, etc.), a construção de escolas primárias (nos últimos 2 anos construímos 11 escolas, todas elas com latrinas e poços de água).

No entanto, para a AD, são tão importantes estas prioridades como a da sua sustentabilidade futura. Nenhuma escola ou centro de saúde funciona quando se instala uma lógica tribal, tanto a nível nacional como local. O demónio étnico que agora conquista terreno na Guiné-Bissau (e não só), leva a que se priorize o combate a esta lógica, sob pena das tais outras iniciativas prioritárias morrerem logo à partida.

Para a AD a recuperação da memória da luta de libertação, que é pertença de todos, independentemente das respectivas etnias, pode desempenhar um papel importante na coesão nacional e na procura de consensos nacionais.

Por outro lado, há que aliar o passado ao sentimento de progresso futuro, para que a identificação e coesão nacional não tenha um cunho passadista e saudosista, mas seja dinâmica e aglutinadora. Incrementar o ensino profissional onde ele nunca foi feito e onde os jovens estão entregues a si próprios e a repetir exclusivamente o percurso dos seus pais, ou então a emigrar para o estrangeiro ou centros urbanos, é uma iniciativa prioritária.

O ecoturismo vai permitir às associações locais de jovens e mulheres, beneficiarem financeiramente através de guias turísticos locais, venda de artesanato, esculturas, restauração e alojamento. O ambiente permitirá a defesa da biodiversidade, especialmente da fauna selvagem e da flora que é utilizada para medicamentos naturais.

Daí que a recuperação do quartel (que nunca será um quartel, mas um polo de desenvolvimento) se justifique plenamente.

Basta ver o entusiasmo que a população local está a emprestar às primeiras iniciativas já em curso (limpeza e demarcação da zona geográfica do quartel).

Sei que, quando se escreve, dificilmente se consegue explicar bem o que uma conversa ajudaria a esclarecer melhor.

Daí que insista na minha disponibilidade em encontrar-me, quando aí for em Fevereiro de 2006, com as pessoas interessadas nesta iniciativa para batermos um papo e tirarmos as dúvidas restantes.

abraços
Carlos

quinta-feira, 17 de novembro de 2005

Guiné 63/74 - P277: Tabanca Grande: Mário Dias, o nosso homem da Ilha do Como

Aqui estou eu em 1965 (pose à cinéfilo, como se dizia na altura). © Mário Dias (2005)

Texto do Mário Dias, o nosso novo tertuliano:

Caro Luis:

Obrigado pela tua receptividade e simpatia. Na verdade, o Briote já várias vezes me tinha incentivado a juntar à tertúlia mas eu, pobre de mim, por ser um autêntico nabo nas manobras dos computadores - limito-me a martelar no Word e pouco mais - não me quis aventurar a tanto.

Espero por isso que, ao fazê-lo, me sejam relevadas as nabices de ordem técnica que possa eventualmente cometer e conto com a ajuda de todos.

Então, lá vai:

1 - Em anexo seguem as fotos do ontem e do hoje.

2 - Eu resido em Alhos Vedros e tenho uma página na internet sobre Música Coral > Partituras que, embora não relacionada com os temas do foranada poderá ser visitada por quem desejar. Trata-se de uma página onde disponibilizo partituras de música coral, actividade há muito da minha especial predileção, e que agora preenche grande parte dos meus ócios de reformado.

3 - Quanto ao termo guinéus [respondendo a uma pergunta posta pelo Luís Graça], ele foi introduzido pelo General Spínola. Até essa altura, eram referidos como guineenses nos meios mais evoluídos (portugueses e africanos assimilados). Na generalidade da população que falava crioulo, o adjectivo que qualifica o natural da Guiné, não existia. Diziam francês, português, inglês, etc., mas quanto a eles diziam simplesmente fidjo de Guiné (filho da Guiné).

4 - A minha vivência na guerra também é longa e conto, a seu tempo, ir narrando alguns episódio de interesse. De momento, estou a colaborar com alguns esclarecimentos na elaboração do História dos Comandos no âmbito da Direcção de Documentação e História Militar que sobre o assunto vai publicar um livro.

5 - Sem qualquer intento de crítica destrutiva, irei colaborar no que se refere à interpretação de alguns termos do crioulo e que os nossos militares deturparam completamente ao longo dos tempos. Nada de grave uma vez que as palavras significam aquilo que quem as profere entenda ser o seu sentido.

Por exemplo: é comum os militares utilizarem tabanca como casa, mas não é. Tabanca significa um aglomerado de casas - povoação; aldeia. As casas típicas da Guiné chamam-se em crioulo palhota ou até mesmo casa. Tomam a designação de morança quando duas ou mais palhotas do mesmo agregado familiar estão agrupadas e delimitadas por uma cerca que vulgarmente é uma sebe de cajueiros,de purgueira ou paliçadas de entrançado de verga a que chamam quirintim.

Um grande abraço para todos
Mário Dias

© Mário Dias (2005)

Cá estou hoje. Instantâneo obtido em 24 de Setembro de 2005 durante a 1ª reunião de convívio (ao fim de 40 anos) dos Grupos de Comandos da Guiné (64/66).
Ao ver as diferenças, veio-me à memória Guerra Junqueiro no seu poema Regresso ao lar: "...olha o teu menino, como está mudado"...

Guiné 63/74 - P276: Antologia (25): Depoimento sobre a batalha da Ilha do Como (Luís Graça)

Fonte: Extractos de Diário do Alentejo, de 23 de Abril de 2004. Com a devida vénia.

Crónica do soldado 328, por Alberto Franco

O alentejano Joaquim Ganhão foi um dos milhares de portugueses que lutaram em África, nos anos da Guerra Colonial. Nas dificuldades e sustos que viveu em terras da Guiné – participou na célebre Operação Tridente, em 1964 – certamente muitos outros ex-militares se reconhecem. Quando passam 30 anos sobre o 25 de Abril, é oportuno recordar a longa guerra, unanimemente considerada uma das principais causas da revolução.

Quando o Niassa zarpou de Lisboa, em 17 de Julho de 1963, não se pode dizer que os rapazes do Batalhão de Cavalaria 490 estivessem inquietos. Afinal, iam para Moçambique, onde a guerra que lavrava noutras colónias portuguesas não tinha ainda chegado. Mas a meio da viagem o programa sofreu alterações. O agravamento da situação militar na Guiné obriga ao reforço do contingente naquele território. O Niassa recebe ordem de rumar a Bissau, e aí desembarcar as tropas que transportava.

- Foi um balde de água fria para todos nós-, recorda Joaquim Moita Ganhão, 61 anos, nado e criado em Moura, um dos muitos alentejanos que integravam o Batalhão Quatro Noventa. A guerra na Guiné começara há escassos meses, mas o território gozava já de má reputação entre os militares portugueses. À ameaça que a guerrilha do PAIGC (Partido Africano da Independência da Guiné e Cabo Verde) representava, combinava-se com uma geografia inóspita e um clima duríssimo, quente e húmido, favorável ao paludismo e a outras doenças tropicais. Quem esperava passar dois anos em Moçambique, no sossego de Vila Pery, e se vê inesperadamente atirado para a Guiné, não podia ter outra reacção que não fosse o alarme. Mesmo que se tivesse 20 anos, muito sangue na guelra e se pertencesse a um batalhão cujo lema era Sempre em Frente.

Em casa de Joaquim Ganhão eram nove irmãos, que o curto salário do pai, caiador de profissão, não chegava para sustentar:
- Eu ficava em casa a cuidar dos meus irmãos mais novos, enquanto a minha mãe trabalhava a dias. Essa a razão porque só entrei para a escola com nove anos-. Aos 12, Joaquim perde o pai. Com o amparo reduzido, vê-se forçado a trabalhar antes do tempo. Aprende o ofício de pedreiro, que exerce até aos 20 anos, idade em que é mobilizado para a tropa.

O soldado 328 estaciona três meses em Beja e dali segue para Estremoz, onde o Batalhão 490 está a ser formado. No Quatro Noventa, os alentejanos estavam em maioria:
- Havia gente de Elvas, Estremoz, Messejana, Aljustrel, Salvada. Só os cozinheiros eram do Norte…- , assinala Joaquim Ganhão - A instrução em Estremoz foi dura. Preparam-nos para combater, segundo os modelos da época.

Vendo os conflitos que deflagravam nos territórios coloniais de outros países europeus, o exército português tinha-se preparado para enfrentar o fenómeno a que uns chamavam guerra subversiva e outros guerra de libertação. Oficiais portugueses estagiaram junto do exército francês na Argélia e especialistas estrangeiros ministraram em Portugal para acções de formação. Mas uma coisa era a guerra teórica, outra a guerrilha nos pântanos da Guiné, as bolanhas, nas matas de Angola e Moçambique. Pela sua parte, Joaquim Ganhão fez pela vida e frequentou em Estremoz o curso de cabos:
- Fui o segundo melhor classificado. Quando embarquei para África, em Julho de 1963, já era 1º cabo da minha Companhia, a 489.


Baptismo de fogo no Oio-Morés

Até àquela data, o pedreiro de Moura não tinha posto os pés num navio, e em matéria de cursos de água só conhecia o mansos rios Ardila e Guadiana. Mesmo assim não se deu mal na jornada a bordo do Niassa:
- Tive a sorte de não enjoar, ao contrário de muitos companheiros”-. Os seis dias de viagem passou-os a dormitar nas baleeiras do Niassa, a espantar as saudades com cartas para a família e em camaradagem com o seu amigo de infância Henrique Pinto, outro militar mourense em trânsito para a Guiné.

Chegados a Bissau em plena estação das chuvas, são alojados no quartel da Amura, um antigo entreposto de escravos. O clima doentio surpreende-os desde logo:
- Era diferente de tudo o que conhecíamos. Com a humidade, a roupa colava-se-nos ao corpo. Só estávamos bem debaixo do chuveiro. De vez em quando, caíam trovoadas que metiam medo -. Outro motivo de espanto é a pobreza do território. Com poucos ou nenhuns recursos naturais, sem núcleos urbanos desenvolvidos, a Guiné era a peça menos valiosa do império português, e como tal a mais desprezada por Lisboa. Ganhão sublinha “a miséria das populações, as filas de mulheres e crianças com latas, à espera que lhes dessem alguma comida”.

A guerra aberta na Guiné principiou em 23 de Janeiro de 1963, com o ataque ao quartel de Tite, embora desde 1961 se registassem actos de sabotagem levados a cabo pelo Paigc de Amílcar Cabral. Bem armada, apoiada por países fronteiriços como a Guiné-Conacri e o Senegal, a guerrilha alastra pelo território guineense como um regueiro de pólvora. A companhia do 1º cabo Joaquim Ganhão recebe o baptismo de fogo no Norte da colónia:
- Fomos render uma companhia que se encontrava em Mansabá. Aí sofremos uma emboscada nocturna, na zona do Oio-Morés, que por ser muito pantanosa e de acesso difícil era um bom refúgio para os guerrilheiros.

Joaquim Ganhão lembra-se que a noite estava escura e a mata era cerrada:
- Ia à frente da minha companhia, quando senti o encosto de uma arma. O guia deu o alarme, eu comecei a disparar no escuro e a correr pelo capim, como um doido. Quando as coisas acalmaram e a companhia se reorganizou, deparo com um guerrilheiro a apontar-me uma pistola-metralhadora. Tentou atirar, mas, felizmente para mim, a arma estava encravada -. O soldado 328 captura o homem, apreende-lhe a metralhadora e três carregadores de munições.
- O guerrilheiro chamava-se Albino Sampa. Mais tarde cheguei a ir visitá-lo à cadeia, em Bissau -. O melhor desta aventura acabou por ser o prémio de um mês de licença na Metrópole:
- Quando me deram a notícia, ia ficando maluco de alegria. O pior foi que a minha família, quando soube que eu estava em Lisboa, pensou que estava todo partido... Só descansaram quando a minha irmã me foi buscar a Estremoz e viram que estava bem de saúde.


Tridente da morte

Mas a emboscada no Oio-Morés foi uma brincadeira, comparada com o que veio a seguir. O Batalhão de Cavalaria 490, e com ele Joaquim Ganhão, foi um dos participantes na operação Tridente, uma das mais aparatosas ofensivas portuguesas na Guerra Colonial. Denominada Tridente porque envolvia a marinha, o exército e a força aérea, a operação visava ocupar as ilhas do Como, Caiar e Catunco, no Sul da Guiné, onde os combatentes do PAIGC dispunham de importantes bases. Ali se movimentava o astuto comandante Nino Vieira, formado nas técnicas da guerrilha pela Academia Militar de Pequim, que teria no Como cerca de 300 homens, incluindo militares da Guiné-Conacri. Um dos objectivos da missão consistia em conquistar o apoio da população das ilhas, que os guerrilheiros controlavam:
- Em todas as tabancas (aldeias tradicionais) do Como, se viam retratos de Amílcar Cabral-, observa Joaquim Ganhão.

A operação Tridente iniciou-se em 15 de Janeiro de 1964. O 1º cabo Ganhão só soube o que o esperava quando se viu a bordo de uma lancha LDM, dos fuzileiros. Através das bolanhas, ladeadas por uma vegetação densa e asfixiante, o tarrafo, a Companhia 489, comandada pelo capitão Pato Anselmo, avançou até à ilha de Catunco. Ganhão permaneceu ali mais de dois meses, “entrincheirado num buraco, juntamente com dois companheiros, agarrados às G3, com as balas do inimigo a passarem-nos rente”. Quem disparava?
- Nenhum de nós sabia. Os tiros vinham da mata, onde os guerrilheiros estavam bem escondidos -. Por isso, sair do buraco só em último caso:
- Tínhamos o exemplo de um companheiro que se levantou para beber uma pinga de água e foi atingido por um tiro no queixo.

Quando se iniciou a segunda fase da operação, foi necessário deixar os abrigos e patrulhar as ilhas:
- Saíamos aos ziguezagues, em grupos de três. Depois deitávamo-nos ao chão e saíam outros três. E isto sempre aos tiros. Foi numa destas acções que Joaquim Ganhão perdeu o seu amigo Henrique Pinto, o primeiro militar de Moura a tombar na guerra:
- O Henrique, que pertencia à Companhia 487, seguia numa patrulha, formada em leque. Ele, que estava numa das pontas, avançou demais e foi capturado, às três da tarde do dia 24 de Janeiro -. Ganhão e outros tinham ido buscar mantimentos à base logística da operação, instalada numa praia. Aí viu chegar um helicóptero com o cadáver de Henrique, resgatado pelos fuzileiros. O choque foi terrível. Quarenta anos passados, ainda hoje a voz de Ganhão se embarga quando fala do caso:
- Podia ter sido eu. Tive sorte, não calhou.

Os aviões F-86 e T-6 flagelavam as matas do Como com napalm, as granadas explodiam a toda a hora, mas os resultados práticos da operação tardavam em ver-se. A única evidência era o sofrimento dos militares portugueses:
- Bebia-se qualquer água e a alimentação resumia-se a rações de combate-, conta o 1º cabo Ganhão - Comemos carne fresca uma única vez, quando os fuzileiros abateram algumas vacas. Não admira que durante a operação Tridente 193 militares tenham sido retirados do teatro de guerra, por motivo de doença.

Setenta e um dias depois, a missão é considerada finda. As estatísticas apontavam 76 guerrilheiros mortos, 15 feridos e nove detidos. Do lado português contaram-se nove mortes e ferimentos em 47 soldados. Foram disparadas 124 mil balas, 1200 granadas de artilharia e 550 granadas de morteiro. Os militares aliviaram a tensão consumindo 15 500 garrafas de cerveja e fumando 10 100 maços de tabaco. Números que não maquilham o insucesso da operação. A última palavra pertenceu à guerrilha, que continuou a servir-se do Como, só abandonando a região quando os seus interesses se transferiram para outros locais.


Cruz de Guerra no 10 de Junho

Depois de intervir na Tridente, a Companhia 489 é destacada para o Norte:
- Fomos para junto da fronteira com o Senegal, com o objectivo de dificultar as entradas e saídas dos guerrilheiros e das forças que os apoiavam.

Joaquim Ganhão andou por Contima, Farim, Bula, Bafatá, Mansoa. Porém, antes de pensar em fiscalizar o que quer que fosse, era preciso construir as bases necessárias ao estacionamento de tropas. Na Guiné, como na generalidade das vastas colónias portuguesas, faltavam aquartelamentos, vias de comunicação e demais infra-estruturas. Por outro lado, no caso específico do Norte da Guiné, tornava-se necessário atrair e organizar a população que tinha cruzado a fronteira do Senegal, fugindo à guerra. Os soldados da 489 ajudavam à reconstrução de tabancas, construíam abrigos, “à mão, sem a ajuda de quaisquer máquinas”, de valas em redor dos quartéis e outras infra-estruturas defensivas, muitas vezes debaixo de fogo. Quando empunhavam a G3, vigiavam a fronteira e montavam as suas emboscadas. A tropa “saía por volta da meia-noite. Então víamo-los passar, a pé, outras vezes de bicicleta”. Nessas alturas, “a fuzilaria era tanta que nem os raios das bicicletas se aproveitavam.”

As normas da altura determinavam que o tempo de serviço militar era de 24 meses. Todavia, muitos militares excediam, contra vontade, este período. Às vezes morriam em África, quando, segundo a lei, já deviam estar em Portugal. Joaquim Ganhão lembra um episódio ocorrido em Bula, com uma companhia de caçadores que já tinha atingido os 27 meses de comissão:
- Por sermos mais novos, a nossa companhia seguia atrás deles, numa deslocação pelo mato. De repente, caem numa emboscada. Recordo-me que os guerrilheiros tinham cortiços de abelhas em cima de árvores; cortavam as cordas e os cortiços caíam em cima dos soldados. Com este truque e com o tiroteio, morreram dois ou três caçadores. Que já não deviam estar na Guiné, porque já tinham cumprido o seu tempo.

Ganhão teve mais sorte. Regressou a Moura em Setembro de 1965, são e salvo. Um ano depois, já casado, recebeu em Évora, nas cerimónias do 10 de Junho, a Cruz de Guerra de terceira classe, pelo seu desempenho na Guiné. Quarenta anos depois, Joaquim Ganhão, mestre de construção civil, pai de duas filhas, olha para trás com serenidade:
- É bom que se diga que fui para a Guiné obrigado. Tínhamos que livrar o corpo, para não morrer. Foi o que eu fiz. Estimo muito a Cruz de Guerra, mas lamento que além da medalha ninguém me tenha compensado pelos dois anos de vida que perdi.


A Guerra Colonial e o 25 de Abril

O desgaste que a guerra provocou nas forças armadas portuguesas e a ausência de soluções pacíficas para a questão colonial, contam-se entre as principais motivações do 25 de Abril. Treze anos de confrontos exigiram o destacamento de 70 mil homens para Angola, 42 mil para a Guiné e 57 mil para Moçambique. Segundo a Resenha Histórico-Militar das Campanhas de de África (1961-1974), registou-se um total de 8 290 mortos, nas três frentes de batalha. A este número há a juntar 112 000 feridos, dos quais 30 mil terão sofrido deficiências para toda a vida, e perto de 100 mil vítimas do stresse de guerra.

Este factor conjugou-se com uma série de transformações na instituição militar, ditadas pelo esforço de guerra. A falta de capitães para o comando de companhias levou o Governo a recorrer a oficiais milicianos, para postos normalmente ocupados por militares de carreira. Facilitou-lhes o ingresso na Academia Militar, reduziu a duração dos cursos e criou um “quadro especial de oficiais”. Por um lado, esta situação refrescou as fileiras das forças armadas, mas gerou tensões e conflitos entre milicianos e oficiais oriundos de cadetes da Academia Militar.

A gota de água acabou por ser o famoso Decreto 353/73, de 13 de Julho, que introduziu diversas alterações ao nível da antiguidade na carreira das armas. Os protestos levam o Governo a recuar, publicando um outro diploma que protege os interesses dos oficiais superiores e põe em causa os dos capitães. O avolumar da contestação, a que se junta, naturalmente, a oposição ideológica entre militares e governantes, e as aspirações de liberdade dos primeiros, está na génese do Movimento dos Capitães, que desencadeou o 25 de Abril.


Manhas de soldado

Nem sempre o soldado 328 estava disposto a dar o corpo ao manifesto. Um enfermeiro amigo livrou­-o de uma ou outra incursão, atestando que Joaquim Ganhão não se encontrava a cem por cento. “Eram manhas típicas da guerra”, recorda. O truque nem sempre resultava:
- Aconteceu quando tive que substituir um furriel, que tinha cegado com o rebentamento de uma granada. Uma noite em que me chamaram para uma operação, pedi ao Fernando, o enfermeiro, que me desse uma ou duas injecções. Ele assim fez. Passei a estar doente, incapacitado para qualquer missão. Mas o alferes que devia chefiar a missão não engoliu o truque. Chega ao pé de mim e diz-me: ‘Tu está tão doente como eu! Levanta-te da cama, que o pessoal está todo à tua espera’. E lá fui, mesmo com duas injecções.
(...)

Guiné 63/74 - P275: A verdade sobre a Op Tridente (Ilha do Como, 1964) (Carlos Fortunato / Mário Dias)

1. Texto do Carlos Fortunato [ex-furriel miliciano, de transmissões, da CCAÇ 13, 1969/71, aquartelado em Bissorã, entre outros sítios]:

Mário:

Bem vindo à nossa tertúlia, penso que poderás dar um contributo importante.

Tendo tu participado na Operação Tridente [Ilha do Como, Janeiro-Março de 1964], gostaria de te colocar uma questão: o que se passou efectivamente com esta operação, referida como de reocupação da ilha do Como?

A operação não é do meu tempo, pois estive na Guiné de 1969 a 1971 [na CCAÇ 13], e na maior parte do tempo na região do Oio, mas era uma referência para o PAIGC. Para alguns como o Héliio Felgas foi um passeio, mas para o PAIGC foi a morte de centenas dos nossos soldados, e a derrota, o que nos obrigou a retirar mais tarde.

A ilha do Como continua hoje em dia a ser uma referência, pois assisti em Bissau, em 1986, a uma peça de teatro,em que os alunos de uma escola primária cantavam a derrota dos tugas na ilha do Como, ao mesmo tempo que simulavam um ataque. A ilha sempre foi um simbolo para o PAIGC, sendo referida no primeiro livro de instrução primária do PAIGC.

Um abraço
Carlos Fortunato
(CCAÇ 13, 1969/71)

Webmaster da página sobre Os Leões Negros


2. Resposta do Mário [Dias]:

Caro Fortunato:

Gostosamente respondo às tuas dúvidas sobre a Op Tridente.

Antecedentes:

A ilha do Como, situada a sudoeste da Guiné, junto a Catió, era, de facto, pertença do PAIGC. Aí não existia qualquer tipo de ocupação administrativa.

Além das tabancas de Curcô, Cauane, Cachil e algumas palhotas dispersas, a única coisa que lá havia eram instalações do comerciante e produtor de arroz Manuel Pinho Brandão que explorava as bolanhas e praticamente era o dono e senhor da ilha.

Devido à sua localização, próxima da Guiné-Conacri, e por não existir lá qualquer autoridade que o impedisse, o PAIGC, inteligentemente, ocupou a ilha para dela fazer o seu santuário e território conquistado.

Pelo acima exposto, o Comandante-Chefe só tinha uma solução: a conquista da ilha.

Operação Tridente:

Resumidamente, esta operação não foi um passeio, como diz o Hélio Felgas (que nem sequer lá esteve) nem a derrota para os portugueses que refere o PAIGC. É natural que o PAIGC se refira a esta operação como um êxito para si, dentro da propaganda que tão habilmente soube utilizar, mas não foi. Não mataram centenas de soldados, como dizem. Eles, sim. Tiveram muitas baixas e nós conseguimos, de facto, conquistar a ilha.

Para que tudo fique melhor esclarecido, vou preparar um trabalho com algumas fotos e mais pormenores sobre este assunto e que, a seu tempo, enviarei para o blogue.
Está prometido.

Um abraço.
Mário Dias
(ex-comando, 1963/66)

Guiné 63/74 - P274: Tabanca Grande: Apresenta-se o 'comando' Mário Dias, "pai da velhice"

Estátua do Teixeira Pinto, em Bissau e não na antiga Teixeira Pinto (hoje Canchungo), como por lapso apareceu indicado no blogue. Postal da época.

Digitalizição do João Varanda (CCAÇ 2636, 1969/71).

1. Texto de Mário Dias:

Caro Luis,

Antes de mais, os meus cumprimentos e admiração pelo blogueforanada de que sou habitual frequentador e poderei mesmo dizer colaborador por intermédio do Briote que tem enviado alguns dos esclarecimentos que lhe tenho prestado.

Eu sou o Mário Dias, fui para a Guiné com 15 anos (em 1952). De lá saí em 1966. Conheço, como seria de esperar - dada a minha longa permanência naquelas terras - a quase totalidade da Guiné. Lá cumpri o serviço militar obrigatório (recruta e CSM - Curso de Sargentos Milicianos) e, estando já na disponibilidade, regressei à efectividade de serviço (em 1963) como furriel miliciano apenas com a intenção de colaborar e ajudar na guerra que tinha já começado.

Fiz parte de um grupo de oficiais e sargentos que se deslocaram a Angola para tirar o curso de comandos e, uma vez regressados, formámos um grupo que actuou na célebre Operação Tridente, na ilha do Como (Janeiro a Março de 1964). Posteriormente, demos instrução e fizemos parte dos 3 primeiros grupos de comandos da Guiné.

Mas estou a desviar-me do motivo principal desta mensagem.

Deparo, por vezes, com algumas naturais incorrecções nas descrição de assuntos relativos à Guiné como palavras do criôlo mal traduzidas e engano na identificação de alguns lugares como é o caso presente.

Ao visitar o blogue hoje, deparei com a fotografia de uma estátua de Teixeira Pinto como sendo na localidade com o mesmo nome, actual Canchungo. Ora, na verdade o postal reproduzido é em Bissau. A referida estátua ficava ao cimo da Avenida que, saindo da Praça do Império, (cujo obelisco dedicado "Ao Esforço da Raça" se pode ver ao fundo na linha do horizonte), ia até ao Alto do Crim e depois seguia como estrada para o aeroporto etc. Essa estátua estava bem próxima do depósito de água aí existente e, dada sua "pose", de mão direita estendida, nós dizíamos por brincadeira que estava a "falar mantenha" (cumprimentar) a quem passava.

Desculpe esta intromissão. Se a fiz é apenas com o desejo que quanto aqui for dito corresponda à realidade.

Um abraço do
Mário Dias .


2. Resposta do L.G.:

Mário: Muito obrigado pelos teus comentários, pertinentíssimos. Posso tratar-te por tu, já que fomos camaradas ? ! Aliás, esta é uma das regras de ouro da nossa tertúlia. Fico encantado com esta nova aquisição para a nossa tertúlia… É claro que, para além da tua vivência pessoal e do teu profundo conhecimento da Guiné e dos guinéus (eles não levam a mal, se eu usar este termo arcaico ?), tens também a tua quota-parte de operacional, de combatente…

Portanto, meu amigo, não precisas de pedir licença a ninguém para entrares: tu é que estás em casa… Em boa verdade, a maior parte de nós, mal conhece a Guiné… Quem esteve no Cacheu, passou por Bissau, atravessou o Rio Mansoa em João Landim e ficou metido num buraco o tempo todo… Quem foi para Bambadinca, não foi ao Gabu, fez a LDG Bissau-Xime e, com sorte, apanhou o barco, de regresso, ao fim de 21 meses... Por outro lado, quem esteve no sul, não conheceu o leste…

Por isso, desculpa lá as nossas ingenuidades e ignorância em muitas matérias (geografia, história, cultura, etnologia, linguística…). Estás à vontade para nos ensinar e até puxar as orelhas, tens a autoridade suficiente para isso.

Agradeço-te vivamente todas as correcções que queiras e possas fazer. Tu vais passar a ser o nosso professor da disciplina Guiné! Já agoira, onde vives ? Aqui perto de nós ? Posso inscrever-te na nossa tertúlia ? Mandas-me duas fotos, uma do antigamente e outra actual, para a nossa fotogaleria ? (Claro que isto é voluntário)…

quarta-feira, 16 de novembro de 2005

Guiné 63/74 - P273: CCAÇ 2636 (Có, 1969/71) (2): "Periquito vai no mato, que a velhice vai p'ra Bissau"... (João Varanda)


João Varanda, em Có, sentado num enorme bagabaga (feito pelas segregações das formigas gigantes).

© João Varanda (2005)

Segunda parte da história da CCAÇ 2636 (Cacheu e Zona Leste, 1969/71). Autor: João José Varanda, de Coimbra. Há uma parte sobre os "senhores da guerra" (Spínola e Nino Vieira) que será publicada, à parte, noutra altura (1).

Percurso em África

Depois de seis longos dias [em Bissau], a partida para Có levou-nos a saborear não só as implicações bélicas envolventes, mas, não menos importante, também a grandeza dos prazeres que uma terra tão pródiga e fascinante nos pode conceder.

Retirando desta experiência alguns valores acrescidos, compartilhados com o ambiente frenético e redutor da luta que então se travava dentro de uma envolvência onde a magia da terra africana serviu de estímulo e compensação perante as horas amargas da luta, do sofrimento e da alienação de outras referências essenciais.


Primeira etapa: a comissão em Có

Bissau ficará para trás passados que foram estes seis dias (sem outro atractivo que não a ausência da guerra). A noite foi toda passada a levantar arraiais e consumar despedidas, pela manhã cedo ainda nos foi servido o pequeno almoço – café com leite e casqueiro com manteiga.

Em Brá, ao longo de quinhentos metros que iam desde o centro do aquartelamento até à saída da porta de armas, a coluna auto que nos foi atribuída, composta por viaturas civis (para transporte da nossa bagagem) e viaturas militares (Unimog e GMC), foi-se espreguiçando enquanto os problemas logísticos relacionados com a nossa deslocação para Có se resolviam.

Foram longas as horas para colocar a coluna em marcha. Antes da partida, a verificação de que tudo estava em ordem, toda a bagagem, quer pessoal, quer da companhia estava nas viaturas. Cerca das 12,30 horas, com tudo em ordem, eis que após as últimas recomendações do Capitão Medina Matos, este subiu para o lado do condutor do Unimog que abria a coluna, dando ordem ao pessoal para montar nas viaturas.

G3 segura na mão, lenços coloridos no pescoço (cada cor destrinçava o grupo de combate), toca a andar!... Fora dado o sinal para iniciar a marcha até João Landim, era perto (30 Kms), estrada segura, foi rápida a viagem. João Landim era posição isolada e de paragem obrigatória. Fomos bem recebidos e assistidos por um grupo de fuzileiros que fazia segurança da zona, viviam em abrigo subterrâneo na encosta da cambança do Rio Mansoa.

Guiné > 1965/66 >

A famosa jangada que atravessava o Rio Mansoa em João Landim, ligando Bissau com a região do Cacheu

© Virgínio Briote (2005)

O rio Mansoa apresentou-se-nos calmo, com uma cor cinza. Foi atravessado de jangada. Viaturas e homens, em levas ininterruptas, foram sendo transferidos para a outra margem. Foram longas horas neste vai e vem para colocar a companhia do lado de lá de João Landim. A jangada tinha, com bom comportamento, uma vez mais realizado a sua missão. A travessia, dadas as fortes correntes, era tarefa dura. Teve de ser passada a corda de margem a margem, esta servia para evitar que se deslizasse com a corrente e para garantir a atracção no sítio certo, rampa de acesso íngreme da beira rio para a planura que nos separava de um tecto.

Cerca das 6,00 horas da tarde do mesmo dia a travessia de João Landim para a margem do corredor de acesso ao cruzamento de Bula estava finalmente no lado para onde seguíamos Có, lado esse onde nos esperavam prometidos meses de sofrimento e trabalho duríssimo.

Atravessado o rio Mansoa, tínhamos mais umas dezenas de quilómetros de tensão acrescida, uma vez que até ao cruzamento da placa para Bula era território completamente abandonado. Nem sequer era patrulhado. Um grupo de combate de tropa veterana de Có, a CCAÇ 2584, cumpriu a segurança junto à margem do rio Mansoa.

Do lado de Cá de João Landim até ao cruzamento da placa para Bula era perto e por estrada segura. Foi rápida a viagem até à pequena tabanca na margem esquerda da estrada junto à placa para Bula, onde a população veio junto da estrada ver passar a companhia, estendendo-nos o dedo polegar, à laia de saudação e boas vindas à tropa e gritando "Periquito vai no mato”.

Desta pequena tabanca para a frente foi a avançar com precaução até à fatídica curva de Bula onde do lado direito teria existido uma antiga destilaria. Esse local era zona habitualmente pouco acolhedora e de maus resultados para as nossas tropas, era (ponto negro) onde as forças do PAIGC faziam as suas repetidas emboscadas.

Daqui para a frente só Có esperava por nós, aonde chegámos já noite (cerca das 8,30 horas), exaustos por termos feito grande parte do percurso para esta tabanca em cima de viaturas sobre tapete de alcatrão que só ficara interrompido na placa que nos indicava o destacamento de Có, sem luz e cada um agarrado ao do lado para não nos perdermos na escuridão de breu. Contudo, e na primeira experiência, só o cansaço era tudo quanto se podia lamentar.


© João Varanda (2005)

Em Có fomos recebidos pela velhice daCCAÇ 2584, com grande algazarra e desejo de bom regresso. Chegados ao destacamento, o nosso pessoal começou, de imediato, o frenezim da descarga da coluna, e o desenrrascanço de como passar a primeira noite no aquartelamento de Có, já que este era pequeno e não tinha instalações suficientes para nos acolherem na sua totalidade, dado o ajuntamento da nossa companhia com a guarnição normal do aquartelamento da CCAÇ 2584. Mas na guerra há sempre lugar para mais um, e apesar dessa tensão toda a companhia ficou acomodada e tudo correu pelo seu melhor.

Era a nossa primeira noite. A companhia da velhice foi extremamente simpática para connosco, esses nossos camaradas queriam saber novidades frescas da Metrópole, porque as saudades eram imensas, escusado será dizer que todos estávamos descontraídos, embora nos sentíssemos cansados, já que a sobrecarga tinha sido bastante intensa.

Era a carga psicológica a fazer os seus efeitos. Como era dia diferente para o aquartelamento de Có, todo o pessoal, velhice e periquitos, tivemos a novidade dada pelo cantineiro de que o bar estaria toda a noite aberto e onde teríamos café e toda a espécie de bebibasd espirituosas. Foi bem passada a noite e bebeu-se muito bem.

O aquartelamento de Có tinha um aspecto airoso, cada grupo de combate tinha a responsabilidade de um sector de linha defensiva, vivíamos em abrigos subterrâneos ao longo de todo o perímetro do quadrado mal desenhado, que constituía a nossa posição, com cerca de seiscentos metros de lado. Alguns metros mais para dentro ficavam as casernas dos soldados de serviços, seguia-se o refeitório, a cozinha, a padaria, a sede (secretaria) das companhias, o posto médico, e virado para a porta de entrada do aquartelamento, ao lado de um enorme embondeiro, que dava protecção ao abrigo subterrâneo do posto rádio e à messe e alguns quartos para oficiais, ao lado destes um bar cantina, a oficina auto e nos pontos cruciais de defesa em abrigos cavados no chão estavam as peças pesadas de defesa (morteiros 60 e de 81) e as metralhadoras (Bredas, MG, Borzig). Estávamos poderosamente armados, e no centro do aquartelamento havia um imponente posto de vigia, erguido sobre troncos de palmeira e coberto a colmo.

Circundavam o aquartelamento três fiadas de arame farpado distantes entre si de alguns metros, pregadas na estacaria de palmeira, sendo a parte de fora a orla da floresta, capinada, para termos pontos de observação. Ao longo da fiada de arame mais interior estavam os postes de iluminação do perímetro do aquartelamento com os seus holofotes orientados para o exterior, e cuja a energia era garantida por um gerador, metido num abrigo subterrâneo.

Fora do perímetro defensivo situava-se a fonte de abastecimento de água, que por sua vez descarregava para um pequeno lago, onde colectivamente, nós e população, tomavamos o nosso duche diário. Ainda também, a morança e a tasca familiar (café e minimercado) do velho Tavares, um cabo-verdiano estabelecido no local, pai de duas lindas filhas, tendo uma delas perecido numa flagelação levada a cabo pelas forças do PAIGC ao aquartelamento cuja defesa estava a cargo da CCAÇ 2584, em início de comissão.

Este velho Tavares dizia-se que fazia a guerra nos dois lados, pois os guias da nossa tropa garantiam que sempre que as tropas do PAIGC se aproximavam de Có era no quintal da morança do velho Tavares que, na véspera da iminência de ataque a Có, faziam o local de abrigo e arrecadações de material de guerra inimigo.

Paredes meias com o aquartelamento ficava a tabanca, onde se poderiam ver enormes, mangueiros e palmeiras. Contornava o aquartelamento à excepção da ala norte, onde não havia habitações de africanos. A tabanca era também cercada por arame farpado, junto ao qual existiam diversos postos fortificados para sentinelas (milícias ou tropas paramilitares que faziam parte do dispositivo militar implantado no território, também designadas por tropas auxiliares, ou de segunda linha). Para estes, as causas da independência, da autonomia ou as de uma Pátria para os guineenses não constavam do seu ideário.

Sentiam-se confortavelmente bem a nosso lado, tão Portugueses como nós, sem deixarem contudo de ser Guineenses e amarem a sua terra. Nunca será demais assinalar o comportamento irrepreensível, abnegado, corajoso mesmo desta gente. Duma coragem talvez diferente da nossa, mas não menos eficaz, verdadeira, eloquente. Arquitectada numa longa experiência de combate, numa fé e num patriotismo insuperáveis. Tudo executado com simplicidade, facilidade, gosto e redobradas dose de determinação e vigor. Foram estes homens singulares que também escreveram páginas gloriosas de sangue e sacrifício, que se bateram melhor que nós por todos estes ideais, que nos fizeram acreditar no sucesso daquela guerra, que por lá ficaram. Entregues a si próprios, abandonados à sua sorte, pagando com a vida aquilo que com a mesma vida haviam combatido e sonhado, a nosso lado, sem nada nos exigirem.


A nossa história operacional

Enquanto se combatia um inimigo que não dava tréguas nem descanso numa guerra também ela intratável, havia espaço, tempo e vontade para outros combates. E homens dispostos a assumirem essas e outras preocupações que muito nos honraram, pelos resultados obtidos e pela satisfação gratificante de mais estas missões cumpridas.

À época a que se reportam estas crónicas, combatia-se por um ideário que apontava para a defesa intransigente do Império Ultramarino como parte integrante e inalienável do todo nacional. Ideário bem arquitectado e melhor montado pelo poder vigente, que entendia que a própria sobrevivência do regime e do próprio País dependia inteiramente do êxito daquelas campanhas. E a Nação, nestes primeiros anos do conflito, parecia aceitar placidamente resignada este desfecho, com algumas lamentações, outras tantas recriminações e alguns, ainda poucos, protestos. Enquanto a guerra prosseguia neste e nos restantes teatros sem outras referências ou perspectivas, alguns valores e preocupações eram simplesmente deixados para trás, num completo menosprezo pela natureza humana deste impenetrável conflito.

A vivência dos combates, pelo menos daqueles prestados em verdadeiro cenário de guerra como o nosso, ia deixando marcas impressivas em alguns dos seus intérpretes, sem que disso o poder instituído mostrasse qualquer remorso ou apresentasse qualquer tipo de terapêutica. Nós, ao nosso nível, na altura também não assumíamos por inteiro essa realidade. Não por inconsciência, má formação ou insensibilidade crónica. Unicamente, todavia, porque em relação a alguns desses aspectos não tínhamos sido alertados, nem existia no campo de preparação para este tipo de campanhas qualquer prevenção específica, profilaxia, ou simples preocupação. Não constava dos manuais, pura e simplesmente, essa séria problemática e como tal, não se discutia, sequer. Marcas essas das quais só viemos a adquirir alguma consciência no decurso dos acontecimentos e já no final do nosso percurso e, bastante tempo depois, face ao tratamento que ao assunto veio a ser dado, cientificamente, um conhecimento bem mais profundo e esclarecedor. A Nação e os seus mentores limitava-se a mandar combater a qualquer preço. Não falando já das aludidas carências materiais, técnicas, logísticas e humanas largamente referenciadas nestas ou moutras crónicas afins, o acompanhamento psicológico dos homens, se assim o quisermos singelamente denominar, em qualquer fase do seu empenhamento, nunca foi visto, tratado ou falado.

Havia efectivamente a chamada "acção psico-social", ou simplesmente "psico", mas esta era destinada unicamente aos então "terroristas", configurada a promover a sua apresentação, a renúncia à luta e aos seus propósitos, em troca de favores e de uma melhor vida, longe das agruras da mata austera. E aí alguma coisa efectivamente se fez, embora com resultados muito aquém daquilo que chegava a ser propalado. Muitos meios foram aqui empenhados, muita doutrina e recursos humanos se consumiram, muitos quadros aqui se esgotaram em campanhas de duvidosa realização, mas tudo vocacionado para a captação de um inimigo e população afectas, que nunca terá consubstanciado resultados à altura do esforço dispendido.
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(1) Primeira parte: vd post de 15 de Novembor de 2005 > Guiné 63/74 - CCXCI: Campanha da CCAÇ 2636 (Có, 1969/71) (1): De Santa Margarida ao Pilão ...

Guiné 63/74 - P272: Có? Isto é comigo! (João Tunes)


O Alf Mil, de Transmissões, Tunes, no Pelundo, em Outubro de 1969. De calções, e óculos, ao fundo...

O Pelundo fica na região do Cacheu, entre Teixeira Pinto (hoje, Canchungo) e Bula. A seguir ao Pelundo é Có, na estrada que vai para Bula. (vd. mapa dos Serviço Cartográficos do Exército, 1961)

© João Tunes (2005)

Caros Luís e João,

É-me permitido um gesto de humildade? [Se calhar é pedir muito, porque nós, os da guerra, aprendemos cedo a meter a basófia no lugar do medo que nos apertava o olho do cú, afinal uma espécie de rolha com gola, como as de champanhe.]

Eu li o magnífico texto do João Varanda, no ilustre blogue de que o Luís é Cmdt Chefe, depois li o nº da Companhia dele (2636), o número tocou-me uma campainha, mais o período de comissão, fixei-me no local: Có.

Depois lembrei-me as vezes que estive em Có, no mesmíssimo período, enquadrado no mesmo Batalhão (sediado em Pelundo). E como era, então, uma alegria dar um salto a Có, malta bacana, ok sobre rádios e cripto?, vamos aos copos, assegurando (eles) a segurança da construção de uma nova estrada asfaltada (que já não lembro se ia para Teixeira Pinto ou para Bula ou para a puta que pariu o Caco).

Julgo até (outra falha ou confusão?) que a Companhia de Có era comandada por um Capitão Miliciano, já economista com canudo e antifascista, um gajo porreiraço, já com uns cabelos a puxar para o grisalho, com quem punha a escrita em dia, deitando abaixo a porra da guerra, o fascismo, o colonialismo, e, claro, o Caco, o Marcelo e o Tenente Coronel "facho" do Pelundo que não percebia nada da poda.

E fico-me com a pior das minhas vergonhas pelos tempos que ali andei - foda-se, não consigo lembrar-me do nome do Batalhão, em cuja CCS servi, como Alferes de Transmissões, e a que a CCAÇ 2636 terá pertencido, comandada pelo "facho" do TC Romão Nogueira (não sei se lhe acertei no nome, quanto ao "facho", isso sim, o gajo vinha da União Nacional e fez carreira "militar" na Câmara de Viseu e foi à guerra por exigência de promoção, mas era um merdas como guerreiro).

No meio de tantas amnésias, tenho a do número do meu Batalhão no Pelundo (o primeiro em que servi e com que embarquei, havia de servir ainda outros, em Catió e em Bissau) e não me lembro de ter bebido copos com o Varanda. Se calhar bebi. Mas foi-se a lembrança com o avanço da idade. Que fazer? Para já, apenas, pedir ao João Varanda que me lembre o nome do meu (e seu) Batalhão. Dás o jeito ao velhote, camarada?

Abraços para todos os tertulianos,
João Tunes

terça-feira, 15 de novembro de 2005

Guiné 63/74 - P271: CCAÇ 2636 (Có, 1969/71) (1): De Santa Margarida ao Cupilom... (João Varanda)


Caserna-abrigo com trincheira de armas pesadas em Có (Pelundo).

© João Varanda (2005)

Primeira parte da história da CCAÇ 2636 (Cacheu e Zona Leste, 1969/71). Autor: João José Varanda, ex-furriel miliciano da CCAÇ 2636, actualmente funcionário da Faculdade de Diereito da Universidade de Coimbra (FD/UC) (1).

Dada a situação geográfica em relação à Metrópole, do Arquipélago dos Açores, onde se situa o B II / 18 e o aspecto quase repentino como se revestiu a mobilização, uma parte dos graduados sé se apresentou quando a Companhia se encontrava no Centro de Instrução Militar (CIM), em Santa Margarida, onde chegou em 24 e 25 de Agosto de 1969, depois de ter feito viagem a bordo dos Navios da Marinha "Ponta Delgada" e "Angra do Heroísmo" até Lisboa, tendo a deslocação para Santa Margarida sido efectuada de comboio.

Seria no Centro de Instrução Militar, em Santa Margarida, que se iria desenrolar o IAO [Instrução de Aperfeiçoamento Operacional].

Convém, aqui referir que a maior parte dos graduados tomou, desde início, contacto com a Companhia, já que foram os instrutores dos próprios recrutas sob o seu Comando, no capítulo da ER (Escola de Recrutas) e respectiva especialidade.

Durante o IAO , a Companhia ficou instalada em Santa Margarida. Do ponto de vista administrativo ficou sob a dependência do CIM (Centro de Instrução Militar), já que para efeitos de instrução, foi a Companhia colocada sob a dependência do BCAÇ 2888.

Como o tempo de que se dispunha na IAO era demasiado curto para um completo adestramento do pessoal, para o particular tipo de luta que nos foi imposta, procurou-se incidir a instrução sobre os aspectos julgados mais convenientes: técnica individual do combate, tiro, emboscadas e reacção às mesmas, golpes de mão e, finalmente, e porventura o ponto fulcral, uma adequada mentalização. Neste aspecto, se bem que não se lograsse atingir o óptimo, dada a limitação de meios, conseguiu-se, todavia, alcançar um grau de instrução razoável, grau esse que se notou quando do falecimento de um recruta ainda durante a IAO

A composição da Companhia, segundo os locais de nascimento dos seus componentes, é algo heterogénea, notando-se, como se depreende, uma predominância do pessoal do pessoal açoreano sendo só os especialistas e a quase totalidade dos graduados do Continente.

Da contribuição ultramarina para a composição da Companhia, há a mencionar o Comandante que é oriundo de Moçambique, um Alferes de Macau e um Furriel de Cabo Verde.


Descolamento para o CTIG - Comando Territorial Independente da Guiné

A Companhia saiu de Santa Margarida, em caminho de ferro, no dia 22 de Outubro de 1969, pelas 0,30 horas, tendo chegado pelas 8,00 horas ao Cais da Rocha de Conde de Óbidos. Após o desfile e as cerimónias de despedida a Companhia embarcou em 22 de Outubro de 1969 a bordo do Navio da Marinha "Uíge", desembarcando em Bissau seis dias depois a 28 de Outubro de 1969.

Durante a viagem que de correu sem incidentes, procurou-se encontrar a linha adoptada para a mentalização do pessoal através de reuniões diárias, onde lhe eram ministradas frequentes instruções de Educação Moral Cívica e Militar com vista a dar uma noção da Província para onde se dirigiam com carácter mais objectivo, relações com a população, suas características e palestras com a finalidade de consolidar o espírito de corpo de Unidade.

A Companhia, após o desembarque seguiu para o Aquartelamento de Brá, tendo no dia seguinte participado na cerimónia de Boas Vindas realizada na parada do Depósito de Adidos e presidida por Sua Excia. o Governador e Comandante - Chefe das Forças Armadas da Guiné, António Sebastião Ribeiro Spínola.

No dia 4 de Novembro de 1969 a Companhia seguiu, em coluna auto, para Có no sector do Pelundo, tendo chegado nesse mesmo dia.

A Companhia foi empregue, logo no dia seguinte da permanência em Có, na protecção aos trabalhos da estrada Có-Pelundo.

Depois de desembarcarmos no cais de Bissau , sobrou a azáfama de transferir material e pessoal para o aquartelamento de Brá onde aguardaríamos continuar a viagem para Có. A instalação no aquartelamento foi um alvoroço habitual, embora controlado e emprestado do tédio de quem vem para uma guerra iniciar uma comissão temperada pela novidade de se enfrentar um novo cenário, o do combate.

Aqui nos foi servida a refeição do jantar, depois e dado o cansaço da viagem marítima tocou a dormir no chão, para esquecer os dias incontáveis que teríamos de aguardar por aquele monstro de ferro que, no momento nos fazia negaças, ancorado ao largo, talvez vinte e quatro meses até nos receber, de retorno.

Tudo tinha ficado para trás, passados que foram aqueles seis dias de mar com cor azul a que chamam marinho. Os peixes voam, enquanto os golfinhos, por períodos largos de viagem a nossa guarda de honra, são prateados e refulgem ao sol como os nossos sonhos. Finalmente, África.

Bissau podia resumir-se a uma avenida com ligeiro declive com estrada para a base aérea de Bissalanca e o cais do rio Pidgiguiti a seus pés. No seu seio de cidade capital, para os periquitos alí chegados Bissau era, sem dúvida alguma, simpática e de serena geometria, sem outro atractivo que não a ausência de guerra e a abundância de cerveja, lagostins, camarão e mancarra frita.

Era uma cidade pequena com o seu tédio específico e com as suas peculiaridades. Quem chega ao palco da que foi guerra colonial, os primeiros passos em terra firme eram para fazer visita à cidade, procurando um amigo, também ele pouco afortunado pela sorte, para se saber o que era a guerra e se obter notícias da guerra. Assim, e de uma maneira geral com os periquitos em terra, foi o primeiro ataque ao nosso grande amigo 2º. Sargento Cruz (todos queríamos dispensa de recolher).

Homem de saber benévolo, ainda e sempre a impor rigor para os seus subordinados nas horas das refeições, regras de atavio e diversas outras normas estritas de comportamento, que no contexto eram perfeitamente ajustadas, começámos por receber a sua primeira palestra avisando-nos do rigor da polícia militar [PM], enquanto materializava o transporte, fardamo-nos a rigor: sapatos bem polidos, meias até ao joelho calções lavados, camisa impecável, boina na cabeça com a ordem na mão, nada de roncos, fora que se faz tarde, lá vai a malta dar os primeiros passos para em pouco mais de meia hora ficar a conhecer a capital Bissau.

Pelo caminho, dada a brancura da nossa pele , os Guinéus e a velhice recebiam-nos bem, entoando a canção de guerra "Periquito vai no mato, olé lé-lé, que a velhice vai para a metrópole, ólaré lé-lé “. Os nativos exibiam uma impassibilidade no olhar e uma neutralidade de porte, recebiam-nos com gentileza no seu distanciamento e a naturalidade dos seus costumes que nunca nos permitiram discernir qual o lado da barricada porque tinham optado.

Bissau, a insalubre capital, sofreu a clássica invasão de refugiados de todas as capitais de territórios em guerra que procuraram fugir das convulsões e encontrar uma actividade para sobreviver, aproveitando a presença dos efectivos militares. A cidade mais que duplicou a sua população durante a guerra, tendo-se formado à volta da urbe de cimento, a “cidade branca”, imensos bairros negros – o Cupilon. Um quarto da população da Guiné concentrava-se no "concelho de Bissau" e ali tinham a sede o governo, os comandos militares, os estabelecimentos de ensino, o porto, o aeroporto e as principais actividades económicas.

Estes primeiros seis dias na Guiné viveram-se entre o deslumbramento do novo e o sobressalto do risco e logo aprendemos que na guerra o tempo perdia sentido objectivo. O relógio tornava-se num aparato inútil, a noite e o dia confundiam-se, fundiam-se. Fomos pontuando pela marcha do calendário, nas nossas mentes sobrava sempre o inopinado da guerra a intrometer-se no fascínio de cada pôr do sol e a escangalhar as noites africanas de que nunca perdemos a saudade.

O tempo passa a acelerar, mas tínhamos de aproveitar todos os minutos até para gastar os derradeiros escudos que restassem do último ordenado e das economias feitas na metrópole, mas não foi difícil em Bissau descobrir em que gastar dinheiro. Nas esplanadas ao longo da marginal de Bissau a tropa mostrava a sua presença a gastar na cerveja nos célebres bifes à bota da tropa, nos armazéns da Cuf, na Casa Gouveia e no Pintozinho, os artigos fotográficos, gira-discos e gravadores seduziam-nos como montras de brinquedos às crianças que nós deixávamos de ser. O que sobrou foi para repartir pelas bajudas e pelos meninos engraxadores de Bissau, o escudo deu para tudo mas como tínhamos chegado a África teríamos de nos adaptar a nova moeda os "pesos", como eram chamados os escudos na Guiné.


Breves notas de seis dias de Bissau.

1 – Cupilon

Bairro tabanca da população, geralmente na periferia, eram um misto de atractivo irresistível e de perigo potencial mas nós, os militares recém-chegados, ignorávamos que a guerrilha tinha apoio em todo o lado, e assim todos os militares chegados a esta querida terra africana procuravam saber onde era e onde ficava (local de africanização e de gozo sexual) sempre apinhado de militares, dado que nele permaneciam lindas bajudas sem cabaço e partiam catota a toda a força: desprendidas da vida teriam nos prazeres da carne sustento bastante para fazerem vida desafogada, que de uma outra forma não conseguiam (2).

O convívio com aquela gente de população fascinava. Fosse pelo exótico dos usos, fosse pela atracção das raparigas, que designávamos por bajudas, independentemente de o serem. E só o eram enquanto virgens. Os seus erectos seios, tensos de jovem e dos nossos apetites, não escapavam ao despudorado atrevimento dos militares brancos.

Apalpar era palavra de ordem. Fiquei sempre, todavia, com a ideia que se riam de nós (era o custo da moeda escudos: os militares tinham esses escudos os africanos tinham necessidade deles. Algumas bajudas com quem conseguimos ter relação de alguma confiança, disputavam-nos abertamente assumindo elas o direito de posse, cortejavam-nos descaradamente e apaixonavam-se por nós. Contudo cobiçavam-nos, o seu olhar de cúpido concentrava-se sempre no prolongar da noite e com o olhar no infinito onde sempre dentro de ingenuidade não se cansavam de perguntar "se em Lisboa tínhamos bajuda e se era linda".

Bissau era local obrigatório de estacionamento, para além dos militares de diversos orgãos ligados ao comandos da máquina militar, estacionavam as tropas de elite: comandos, pára-quedistas e fuzileiros. Estes tão depressa disputavam as beldades como pensavam e tinham as mais variadas suposições de adultério e traições e não era raro, ao menor pretexto, às vezes sem pretexto nenhum, se envolviam entre si em verdadeiras batalhas. E que era a PM [Polícia Militar]e a PA [Polícia Aérea] a ser chamada para pôr cobro à situação.

2 – Clima

O clima, na Guiné, apresenta duas zonas diferenciadas: tropical, com elevadas temperaturas e humidade nas zonas costeiras, e continental, seco e quente, subsariano no interior. Existem duas estações; a seca, entre Dezembro e Fevereiro, em que as temperaturas chegam a descer aos 15º., e a das chuvas. A partir de Fevereiro, o calor associado ao vento leste, torna a atmosfera “irrespirável”, com temperaturas de 35º a 40º à sombra. O regime de monções provoca tornados no início das estações, que dificultam particularmente o tráfego aéreo.

Num clima como o da Guiné-Bissau, com altas temperaturas e elevados índices de humidade do ar, era vital acomodar a acção ao movimento, e para tal havia de adequar as nossas atitudes às condições climatéricas de cada circunstância, o pino do calor durante o dia, era matéria que não se podia deixar ao acaso, assim e na fase de adaptação para os periquitos, nada melhor que aprender os segredos depressa.

Para adaptação ao clima e como o calor na Guiné é impiedoso, nada melhor que bem sentados á volta de uma mesa de esplanada bem servida de incontáveis cervejas e whiskies de mais de 12 anos com [água de] Perrier ou Seven-up ou Coca-cola, bem gelados.

Para o guerreiro, o cigarro é de uma maneira geral companheiro inseparável. Por entre umas fumaças tínhamos longas conversas de guerra, sobre tudo e sobre nada, as mesmas aproveitavam-se para curta cura de esquecimento que o álcool providencia em maior ou menor grau.

Na Guiné só as chuvas tinham época e datas certas, de resto toda ela era na verdade um barril de pólvora, bastava um simples movimento de acender um cigarro, que já era mais que o suficiente para tudo mexer á nossa volta, fazia-se silêncio, ouviu-se no subúrbios de Bissau o súbito troar da saída de morteiro e o sequente rebentamento de granadas algures nas matas, foi o rastilho, logo de seguida o som cavo das granadas dos canhões sem recuo anunciavam mais um ataque com armas pesadas.

Que horror, os estrondos por muito longe que fossem, provocaram-nos um arrepio que nem a proximidade da morte alguma vez conseguira, por momentos pela frente dos nossos olhos passou o absurdo da guerra, porque não dizâ-lo daquela guerra.

Ainda há pouco tempo tínhamos chegado, seis dias foram o suficiente para entrar-mos dentro da dimensão do conflito que estava desenhado, das conversas da mesa da esplanada da marginal, encontramos sempre quantidade enorme de pontos obscuros e sombrios onde se escondiam as nuances que acompanhavam os momentos mais agudos da luta que iríamos travar com o PAIGC. Eram conversas de estilo conspirativo e de ambiente com armas na mão.

Destes dias para nós combatentes do ultramar ficou o cheiro. África tem cheiro a África. Ele é indisfarçável, indefinível, inesquecível, hoje é um cheiro de saudade.
___________

(1) O João Varanda já me tinha telefonado, em tempos, a prometer este material. Ele fez parte da açoreana CCAÇ 2636, que esteve na região do Cacheu (Có/Pelundo e Teixeira Pinto) e depois foi para a zona leste (passando por Bafatá, Saré Bacar e Pirada).

Vd. post de 22 de Outubro de 2005 > Guiné 63/74 - CCLIII: Notícias da açoreana CCAÇ 2636 (Bafatá, Contuboel, Saré Bacar, Pirada)

(2) Questões terminológicas:

Cupilon, Cupilom, Cupelon ou Pilão ? No meu tempo (1969/71), eu dizia Pilão... Na planta da cidade de Bissau, capital da Guiné-Bissau, que nos foi fornecida pelo A. Marques Lopes, vem Cupelon (de Cima e de Baixo),na parte setentrional, ladeada à direita pela Estrada de Santa Luzia...

Para os tugas que nunca estiveram na Guiné: (i) cabaço = hímen (o símbolo da virgindade): bajuda (com cabaço) = rapariga virgem; cabaço também é usado no nordeste do Brasil, nesta acepção; (ii) partir catota = dormir com uma mulher, ter relações íntimas com uma mulher (partir = dar, partilhar); não sei exactamente o que quer dizer catota, no creoulo da Guiné; no nordeste brasileiro, é sinónimo de meleca, ou mucosidade do nariz). L.G.

Guiné 63/74 - P270: Tabanca Grande : João Varanda da CCAÇ 2636 - Vou para a caserna dos 'tertulianos'



João Varanda, da CCAÇ 2636 (1969/71). Posto de vigia em Có.

© João Varanda (2005)

1. Mensagem do João Varanda

Estimado amigo Dr. Luís Graça

Apresenta-se ao serviço, batendo-lhe continência com a respectiva batidela forte e bastante ruidosa de tacão de bota da tropa, solicitando-lhe uma entrada na caserna de todos os que fizeram a guerra da Guiné – Bissau, de 1963 a 1974, independentemente da bandeira e da arma que empunhavam.

Curvo-me perante todos os tertulianos, num gesto sentido de agradecimento pelas mais belas páginas cheias de verdadeira história de todos quantos viveram e combateram na Guiné. Ciente de que cada página reflete a existência do sacrifício sem expressão brutal e ajuda-nos a refletir, à distância de 30 anos, a maior tragédia do nosso tempo.

A caserna dos combatentes lembra os episódios, com extraordinários relatos cheios de serenidade de quem haver cumprido uma simples missão do delírio da guerra, com um sentimento que hoje nos emociona.

O Luís Graça & Camaradas > Blogue – Fora – Nada é sem dúvida alguma o melhor, o mais real e mais autêntico de tudo o que se escreveu e contou duma guerra em que nós combatentes não abdicámos do direito à vitória de um combate em que foi preciso pôr em causa a própria vida, e registe-se a elegância e a atitude com que os tertúlianos o fazem é digna de louvor.

Na guerra colonial, na Guiné – Bissau, cruzámo-nos e, mesmo sem nos cruzarmos, percorremos os trilhos da mesma aventura, navegámos os mesmos rios, pisámos a mesma terra, vivemos os mesmos perigos, suportámos os mesmos sacrifícios, socorremos os nossos feridos, chorámos os nossos mortos, colhemos experiências comuns, e chegámos até a frequentar os mesmos quartéis.

João, hoje. Ele trabalha na Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra. Confidenciou-me que gostaria de voltar à Guiné, hoje Guiné-Bissau, mas já não sente forças para ir sozinho...

© João Varanda (2005)

Mas para além de tudo a Guiné – Bissau deixou marcas, de rigor e respeitabilidade, conforme todos os ex-combatentes reconhecem, facto este porque recomendo e aconselho a leitura da vossa obra, não apenas aos ex-combatentes, como a todas as pessoas particularmente sensíveis ao tema, mas todas em geral, porque para além das emoções que revelam em cada página, há também a beleza da linguagem que nos prende e nos seduz.

Com um grande e fraterno abraço, peço a Vª. Excª. licença para entrar na caserna da tertúlia dos ex-combatentes da Guiné (1963/74).

João Varanda

2. Comentário de L.G.

Licença concedida. Entra, e que sejas bem-vindo. O tratamento de Sua Excia era só para o Com-Chefe. Na caserna dos tertulianos, todos se tratam por tu, à boa maneira republlicana e romana...

segunda-feira, 14 de novembro de 2005

Guiné 63/74 - P269: Op Lança Afiada (IV): O soldado Spínola na margem direita do Rio Corubal (Luís Graça)

Publica-se a quarta e última do extenso relatório da Op Lança Afiada, que decorreu entre 8 e 18 de março de 1969, na região compreendida entre a linha Xime-Xitole e a margem direita do Rio Corubal, até então considerada como um "santuário do IN".

A operação, comandada pelo coronel Hélio Felgas (o patrão do Agrupamento 2947, mais tarde comando operacional de Bafatá, COP 7, se não me engano), coadjuvado por dois tenentes-coronéis, Jaime Banazol (liderando o Agrupamento Táctico Sul, com mais de 500 homens que partiram do Xitole e de Mansambo) e Manuel Pinto Bastos (comandante do BCAÇ 2852, Bambadinca, 1968/70), que encabeçava o Agrupamento Tático Norte (com cerca de 750 homens, que partiram do Xime). Ao todo 1300, entre soldados metropolitanos, milícias e carregadores...

Foi uma das últimas grandes "operações de limpeza", realizadas no primeiro ano de Spínola, enquanto Governador Geral e Comandante-Chefe (que fez questão de estar presente, junto das NT, no Dia D + 9, ou seja, 17 de Março de 1969, partilhando inclusive o transporte naval que levou os nossos esgotadíssimos camaradas da Ponta Luís Dias à Ponta do Inglês, no regresso ao Xime.

Apesar dos elevados meios humanos e materiais envolvidos, a correlação de forças não se modificou e, depois de um rápido processo e reorganização, a guerrilha voltava a obrigar as NT a acantonarem-se nos seus aquartelamentos onde flutuava a bandeira verde-rubra (Bambadinca, Xime, Mansambo e Xitole) e destacamentos dispersos. A população civil, sob a administração do PAIGC, foi a grande vítima desta megalómana e descoordenada operação.

Os soldados portugueses serviram, por sua vez, de cobaia num teste de resistência, a que o autor do relatório, sem despudor, chama processo de "selecção natural" (sic)... Num total de 700 e tal homens metropolitanos (o resto eram milícias e carregadores, habituados às duras condições do terreno), conclui-se que um sétimo fora mal seleccionado para o TO da Guiné, já que no decorrer da operação teve de ser evacuado, de helicóptero, por "insolação, ataque de abelhas e doença" (sic).

É o próprio relatório a reconhecer que, nesta época (tempo seco), as temperaturas andarvam entre os 39 e os 44 graus, à sombra, e entre os 55 e os 70º ao sol, e que nesas condições, (i) a guerra tinha que parar das 10 da manhã às 16h da tarde, precisando um soldado metropolitano de 8 a 10 litros de água (!)...

Nesta operação em que os guerrilheiros e a população por eles controlada passaram simplesmente para o outro lado do Rio Corubal (com os cães, os porcos, as galinhas...) (não havia paras, comandos nem fuzos do outro lado...), o verdadeiro inimigo das NT foi, de facto, a desidratação, além dos problemas alimentares: o tipo de rações que deram aos nossos soldados ( a ração dita normal) era tão má que provocava uma sede horrível: ao segundo dia, já não se comia; ao terceiro, começava a haver problemas...

Tratou-se de uma operação onde se foi a lugares míticos, como a mata do Fiofioli, junto ao Corubal, mas ninguém encontrou médicos e enfermeiras cubanas... Hospitais de campanha, sim, mas já abandonados, uns meses antes. Destruiram-se muitas toneladas de arroz, mataram-se milhares de animais, queimou-se tudo o que era tabanca... Em contrapartida, houve 24 flagelações do IN, mas os guerrilheiros seguiram as regras da guerrilha: retirar quando o inimigo, ataca: atacar, quando o inimigo retira... O autor do relatório, irritado, queria que os tipos do PAIGC se apresentasse de peito feito às balas e dessem luta...

O mais caricato e divertido desta operação é que o pessoal deitou fora as rações de combate e desatou a comer leitão assado no espeto!

Este é um cínico relato da dura condição da guerra da Guiné, vista pelo lado dos tugas. Por outro lado, há críticas veladas, do autor do relatório, ao Comandante-Chefe, ao Quartel General e à Força Aérea (que se teria comportado como umas verdadadeira prima dona...).

Há coisas, pouco abonatórias pars as NT, que se passaram neste operação e que eu deixo à atenção e consideração dos tertulianos e demais visitantes deste blogue. Cada um de vós que faça a sua leitura desapaixonada... Aqueles de nós, que foram operacionais, rever-se-ão mais facilmente no cenário que foi o da Op Lança Afiada... Sobre o desempenho dos actores, já não vale a pena assestar as bateria da crítica... Felizmente que a guerra acabou! War is over, baby! (*)

Seria interessante ouvir, entretanto, o depoimento de camaradas do BCAÇ 2852 que participaram na Op Lança Afiada. Infelizmente, ainda não temos ninguém dessa unidade, na nossa tertúlia.

Para uma correcta localização das povoações ao longo da margem direita do Rio Courbnal, consulte-se o mapa, dos Serviços Cartográficos do Exército, relativo ao Xime, disponibilizado, mais uma vez, pelo nosso amigo e camarada Humberto Reis, ex-furriel miliciano da CCAÇ 12 (Bambadinca, 1969/71). O mapa do Xime deve ser complementado por outros comop Fulacunda, Xitole e Bambadinca, também disponíveis on line.

Deixem-me só lembrar que, dois meses depois desta operação, o PAIGC retribuiu a visita das NT e apareceu às portas de Bambadinca em força: mais de 100 homens, três canhões sem recuo, montes de LGFoguetes, morteiros... Esse ataque ficou célebre: os tipos de Bambadinca foram apanhados com as calças na mão, faziam quartos de sentinela sem armas; enfim, um regabofe... Claro que no dia seguinte o Caco Baldé deu porrada de bota a baixo, nos oficiais todos, do tenente-coronel (o célebre Pimbas) até ao capitão da CCS...

Um caso exemplar, divertido e hilariante, da guerra da Guiné... A sorte dos gajos de Bambadinca foi os canhões s/r terem-se enterrado no solo e a canhoada cair na bolanha... Quando nós, periquitos da CCAÇ 2590 (futura CCAÇ 12), lá passámos, uma semana depois, vindos de Bissau e do Xime a caminho da nossa estância de férias (Contuboel, um mês e meio de paraíso... seguido depois de18 meses de inferno...quando fomos justamente colocados no Sector L1), os nossos camaradas da CCS do BCAÇ 2852 ainda estavam sem pinga de sangue...

"Podíamos ter morrido todos", dizia-me 1º cabo cripto Agnelo Ferreira, da minha terra, Lourinhã... Fomos depois nós , para lá, com os nossos nharros, e em 18 meses nem um tirinho: que o respeitinho (mútuo) era muito bonito... Porrada, porrada, era só quando a gente se atrevia a meter o bedelho na terra deles, que já estava "libertada"... Eu faria o mesmo, na minha terra...

Na história do BCAÇ 2852, o ataque a Bambadinca é dado em três linhas, em estilo telegráfico:

"Em 28 [de Maio de 1969], às 00H25, um Gr In de mais de 100 elementos flagelou com 3 Can s/r, Mort 82, LGF, ML, MP e PM, durante cerca de 40 minutos, o aquartelamento de Bambadinca, causando 2 feridos ligeiros".

L.G.


Op Lança Afiada (8 a 19 de Março de 1969) (IV e última parte) (**)

Fonte:

Extractos de: Guiné 68-70. Bambadinca: Batalhão de Caçadores nº 2852. Documento policopiado. 30 de Abril de 1970. c. 200 pp. Cap. 64-71. Classificação: Reservado (Agradeço ao Humberto Reis ter-me facultado uma cópia deste valioso documento em formato.pdf).


Dia D + 8 (16 de março de 1969)

Os Dest A, B e C actuaram entre Queroane e Mangai destruindo tudo à sua passagem. O que sobrara de Mangai ficou reduzido a cinzas. Foram ainda capturados 3 nativos e feitos 2 mortos confirmados.

Os Dest F, G e I voltaram a bater a mata do Fiofioli mas agora no sentido Leste-Oeste. Inicialmente, porém, deslocaram-se por indicação do guia à zona (C8-71) e aí do lado de lá da bolanha, e portanto já fora da mata do Fiofioli, encontraram espalhado pelo mato, além de novos documentos, importante e valioso material de guerra que deu para encher mais de dois helis.

Os Dest E e H bateram também no sentido Oeste-Leste e Sul da mata e foram acabar de destruir a tabanca de Fiofioli, capturando ainda muitas munições.

Nesse dia, às 10h30 houve nova reunião em Bambadinca com Sua Excia o Comandante-Chefe. Sua Excia informou que em virtude de ter de realizar uma operação noutro Sector, determinava a suspensão do apoio aéreo em 17 [de março] e o embarque dos Dest A, B e C em Ponta Luís Dias nesse dia com destino ao Xime. Os outros Dest do Agrupamento Sul não seriam reabastecidos em 17. Que o seriam em 18 mas compreendeu-se mal pois, segundo Sua Excia, em 17 o esforço aéreo não poderia ser mantido e só seria deixado o heli de evacuações. No entanto, os Dest do Agrupamento somavam nessa altura mais de 750 homens que seria necessário reabastecer de água e alimentação (os Dest A, B e C somavam entre 450 e 500 homens).

Nessa reunião foram também alteradas as instruções acerca do arroz IN: devia passar a ser todo destruído. Na véspera, porém, de acordo com a ordem recebida, comunicara-se aos Dest que deviam recolher todo o arroz possível, prevendo-se até o seu transporte por meio de colunas de carregadores a serem novamente recrutados. Havia até sido distribuído mais algumas centenas de sacos de linhagem.

Em face desta nova ordem, os helis passaram no regresso do reabastecimento a trazer homens em vez de arroz, afim de aliviar o esforço de reabastecimento. Mas foi só em 16. Neste dia fizeram quase reabastecimento e meio, pois sabia-se que não seriam feitos reabastecimentos alguns em 17.

Foi recebida uma mensagem que dizia: “Confirmação ordens verbais Com-Chefe cessa 17MAR Op ‘Lança Afiada’ Agr Norte (.) Tropas Agr. Norte em Ponta Luís Dias 170600Mar69 (.) Comandante Agr Norte coordena Oper embarque atingido cerca 1000 (.) Com-Chefe desloca-se local partir 170900(.)”.

Dia D + 9 (17 de março de 1969)

O PCV com o comandante do Agrupamento Táctico Norte sobrevoou os Dest A, B e C cerca das 07H00, verificando que estavam no local que a carta indica como sendo o “Porto” de Ponta Luís Dias. Não conseguiu entrar em contacto rádio com a FN [ Força Naval] , apesar desta força ter indicativo e frequência marcados no Anexo de Transmissões da OOP.

O PCV regressou depois a Bambadinca para se reabastecer. Cerca das 09h20 chegou a Bambadinca o heli de Sua Excia o Comandante-Chefe que deixara Sua Excia junto dos Dest A, B e C. Aparentemente o embarque não podia ser feito onde as NT se encontravam pois via-se uma grande língua de areia. O heli levantou para escolher um local onde a língua de areia fosse mais estreita, o que ocorreu cerca de 1,5 quilómetros a Norte.

Quando a maré subiu, verificou-se que a água cobria toda a língua de areia e que as LDM [lanças de desembarque médias ] e a BOR (*) podiam ter abicado no local onde as NT se encontravam inicialmente. O esforço que a estas foi exigido de caminhar quilómetro e meio pelo lodo podia ter sido poupado se a bordo do PCV tivesse ido um oficial de marinha.

Foi nessa altura que Sua Excia o Comandante-Chefe informou que, por uma questão de marés, as NT não seriam transportadas ao Xime como ficara combinado na véspera mas sim apenas a Ponta do Inglês. A CART 1743, no entanto, seguiria para Bissau. Os Dest A e B, desembarcados em Ponta do Inglês, seguiriam depois a pé para o Xime, o que aconteceu.

A avaria de uma das LDM obrigou a outra a ficar-lhe ao pé e levou a BOR a transportar 300, isto é, mais do que a sua lotação permite. Como o heli do Com-Chefe E não chegou a tempo, Sua Excia tomou também lugar na BOR, com o Comandante da Operação e com o Delegado do QG [ Quartel General ] que viera coordenar o embarque.

Cerca do meio dia as LDM e a BOR abicaram a Ponta do Inglês. Sua Excia tomou o seu heli para Bissau e o Comandante da Operação tomou o das evacuações que entretanto mandar vir para fazer duas evacuações para Bambadinca.

Os Dest A e B chegaram ao Xime cerca das 15h30 depois de terem sofrido novo ataque de abelhas que, tal como em Ponta Luís Dias, de manhã , ocasionou desorganização e levou os carregadores a abandonarem material, recuperado mais tarde.

Ao compreender-se que apenas era deixado o heli de evacuações, deu-se ordem aos Dest E, F, G, H e I para se aproximarem dos respectivos aquartelamentos [ Mansambo e Xitole]. Não se podiam abandonar sem alimentação nem água garantidos. Aliás aqueles Dest haviam saído às 03H30 da tabanca do Fiofioli onde se haviam reunido e, uns por Cancodea Balanta e por outros por Cancodea Beafada, completaram a destruição de todos os meios de vida IN da região. Encontraram vacas que mataram, levando outras consigo. Em Cancodea Beafada capturaram 2 homens, 3 mulheres e 3 crianças.

Estes Dest passaram depois por Mina e por Gã Júlio, utilizando sempre trilhos diferentes dos de ida. Quando, ao fim da tarde, foram sobrevoados pelo PCV, encontravam-se próximos da foz do Rio Bissari, tendo já percorrido nesse dia uns 30 quilómetros. Foram-lhes recomendadas todas as cautelas e autorização para prosseguirem quando quisessem pois não se poderiam reabastecer.

Mal o PCV saiu da área, o IN flagelou o Dest com 2 morteiradas e rajadas, de longe, procedimento este que afinal utilizou durante toda a operação e que revelou impotência [no original, importância] e falta de agressividade.

Dia D + 10 (18 de março de 1969)

Na [noite] de 17 para 18 os Dest H e I chegaram ao Xitole transportando consigo 4 vacas que em certos pontos tiveram quase que ser levadas ao colo para passarem troncos estendidos sobre os ribeiros. As outras capturadas tiveram que ser abatidas.

Por seu lado, os Dest E, F e G passaram pela margem esquerda do Rio Bissari, atingiram a estrada e chegaram a Mansambo cerca das 08H30. Durante a noite, enquanto pernoitavam, um dos nativos capturados tentou fugir, sendo abatido.


6. Resultados obtidos

a) Baixas infligidas ao IN

O IN sofreu 5 mortos confirmados (contando com o que tentou fugir na última noite) e cerca de 20 feridos.

b) Inimigos capturados

Foram capturados 17 nativos, na sua maioria mulheres.

c) Material e documentos capturados ao IN

1 Carabina “Mosin Nagant”, 7,62 m/m modelo 1944
1 Espingarda “Mauser”, 7,92 m/mm, K98K
Idem 7,9 modelo 904
1 Espingarda sdemi-automática “Simonov” (SKS), 7,62 m/m
2 Metralhadoras pesadas “Goryonov, 7,62 m/m
2 Pistolas metralhadoras “Shpagin”, 7,62 (PPSH)
1 Granada para LG P-27 “Pancerovka”
12 Granadas para LG RPG-7
85 Granadas para LG RPG-2
1 Granada de Mort 60
19 Granadas de Mort 82
1 Mina A/P de salto e fragmentação (Bailarina)
1 Mina A/P de fragmentação PPMI
1 Mina TMB
2 Petardos de trotil de 1,2 kg
24 Cargas suplementares para morteiro (caixas)
42 Espoletas de granada Mort 82
3 Bolsas para carregadores PPZSH
1 Bolsa para carregadores Degtyarev
Cerca de 10 mil cartuchos 7,62 e 7,9 (60% dos quais impróprios)
E ainda outro material diversos bem como livros, cartas, cadernos e objectos de uso pessoal.´

d) Baixas sofridas pelas NT

AS NT não tiveram mortos. Sofreram 22 feridos, quase todos ligeiros. Tiveram ainda cerca de 110 elementos evacuados por insolação, ataque de abelhas e doença

7. Serviços

a. Rações de combate

As R/C especiais agradaram de uma forma geral. As normais (nº 20, E) são absolutamente intragáveis e mais se tornam em operações tão prolongadas como esta.

b. Recursos locais

Só muito raramente foi encontrada água bebível. Alguns poços foram atulhados pelo IN ou estavam já secos. Outros continham água negra ou meia salgada que só os carregadores conseguiram beber. Quando, junto de Gã Júlio, por exemplo, os soldados metropolitanos quiseram seguir o exemplo dos carregadores tiveram que ser evacuados uns 16 com febre alta.

Centenas de galináceos e cabritos ou leitões foram capturados e comidos em tabancas abandonadas, compensando assim um reabastecimento alimentar que se revelou algo deficiente quer em qualidade quer em quantidade.

c.Pessoal do Serviço de Saúde

As forças levavam o seu pessoal orgânico.

O médico de Bambadinca foi para Mansambo. A CMF [?] dos Serviços de Saúde colocou um médico no Xitole (em permanência) e outro no Xime (só durante a operação). O médico de Bafatá foi a Bambadinca sempre que necessário.

d. Evacuações

Os feridos e os doentes foram evacuados por heli.

8. Apoio aéreo

a.Ligação Ar-Terra

Foi relativamente boa.

b.Resultados da acção aérea

Não houve propriamente acção aérea se por acção aérea se pretende significar: apoio aéreo pelo fogo. Só no dia 12 de Março, o helicanhão actuou na margem oposta do Rio Corubal contra a tabanca de Inchandanga Balanta. E em 14 de Março, a FA [ Força Aérea ] bombardeou a mata de Fiofioli, não tendo as NT notado no dia seguinte quaisquer vestígios deste bombardeamento.

Não se teve conhecimento de outras acções aéreas pelo fogo.

c.Apoio aéreo

Inicialmente o apoio aéreo, no que respeita a reabastecimentos, revelou-se deficiente. O facto de não ter sido cedido o heli ao Comandante da operação, dificultou a acção de comando e influiu nos rendimentos dos meios à disposição, pois previra-se que esse heli colaboraria com o das evacuações e com o dos reabastecimentos.

Além disso, a coordenação levou o seu tempo a rodar, o que é naturalíssimo pois não tem havido muitas operações como esta.

Em terceiro lugar, os meios aéreos não deram inicialmente o rendimento que se esperava, uns por avarias, outros por serem desviados para outras missões e outros por estarem na altura das inspecções e revisões.

A situação quanto ao apoio aéreo era a seguinte em 13 de Março de 1969, às 13H45 (MSG 735/I/BCAÇ 2852):

- 1 DO estava avariado havia 2 dias;
- O outro DO só começou a trabalhar às 10H00;
- O heli trabalhava pouco mais de 1 hora, seguindo para Bissau;
- O outro heli seguira às 08H00 directo de Bafatá para Bissau (parece que podia ter ido ficar a Bissau na véspera);
- O helicanhão saira para Bissau às 10H30, só regressando no dia seguinte às 11H00;
Os helis que haviam seguido para Bissau só foram substituídos cerca das 11H00 ; só depois desta hora, portanto, se regularizou o serviço de reabastecimentos e evacuações.

No dia 13 a actividade dos meios aéreos fornecidos para a operação foi a seguinte:

- A DO levantou de Bafatá para a área 9 [ Mina – Gã Júlio ]às 07H20 com o Comandante do Agrupamento Táctico Sul, o Major Negrão da FA e o Cap Lopes que ia assumir o comando do Dest G e ficou no Xitole; à tarde foi para Bissau;

- Os 2 helis levantarm às 07H30 com o comandante da operação para Bambadinca (serviço normal);

- O helicanhão, saído da zona de operações em 11 de março, às 10H30, e regressado a 12, às 11h00, fez escolta ao heli de Sexa Comandante-Chefe; não prestou serviço à operação, que se tivesse conhecimento;

- A DO chegou de Bissau, foi a Piche buscar o Coronel Neves Cardoso para uma reunião em Bambadincas onde chegou às 11h00; à tarde voltou a levar a Piche o mesmo oficial.

Em 14 os helis chegaram a Bambadinca às 08H30 e só aqui é que se abasteceram (pelo menos um). Podiam tê-lo feito em Bafatá. No entanto, a situação melhorou por vários motivos. Primeiro, porque se acabou com os recomplementos. Segundo, porque a selecção natural fez baixar o número de evacuações. Terceiro, porque os meios aéreos ficaram mais tempo na zona da operação. Quarto, porque a coordenação ar-terra ganhou experiência e tornou-se por isso mais eficiente.

9. Ensinamentos colhidos

Dentro do espírito das NEP, este parágrafo “não é uma crítica mas uma análise objectiva que permite obter ensinamentos”..


a) Torna-se evidente que a Op Lança Afiada foi bem sucedida, tendo sido alcançados todos os objectivos e cumprida integralmente a Missão.

Não há dúvida porém que o IN podia ter sofrido muito mais baixas e que as NT podiam ter capturado muito mais população se simultaneamente tivessem sido montadas emboscadas nocturnas na outra margem do Rio Corubal, conforme pedido. Esta margem fica fora dos limites do Agrupamento Leste e, concordo, é difícil de alcançar a partir de Buba. Mas uma companhia de paraquedistas ou de comandos teria operado maravilhas nela e evitado que a maior parte do IN e da população da margem Norte fugisse para a margem Sul como se sabe que fugiu durante as noites.

b) O facto de o IN nunca ter tentado resistir pode levar-nos à conclusão de que ele não era tão forte como se julgava.

 No entanto, não se tirou desta Operação um tal ensinamento. O que ele se viu foi varrido por todos os lados. Ao descobrir o “furo” da margem oposta passou-se para ela. Mas se tivéssemos podido tapar esse furo, ele teria sido talvez obrigado a resistir e mostraria então uma força que agora não mostrou porque achou inconveniente fazê-lo.

As 24 flagelações sofridas e os documentos apreendidos mostram porém que não devemos subestimar precipitadamente o IN. Nem sobre-estimá-lo, é claro.

c) A inicial deficiência do apoio aéreo podia ter acarretado consequências graves se o IN tivesse reagido com maior agressividade.

Concordamos que o heli é uma arma cara (15 contos por hora). Mas é indispensável neste tipo de guerra.

d) As rações de combate normais voltaram a ser um elemento destruidor do moral das NT.

 Provocando a sede quando menos água há. Temendo a sede, os homens deixam simplesmente de comer e ficam rapidamente exaustos.

e) A Op Lança Afiada decorreu durante 11 dias. As temperaturas verificadas neste período foram as seguintes: Máxima à sombra – Entre 39 e 43,6 graus centígrados; Máxima ao sol – Entre 70 e 74,5 graus centígrados. 

Estes números são elucidativos. Por um lado justificam que um homem necessite muita água (entre 8 a 10 litros por dia). Por outro lado aconselham as NT a deslocarem-se e a actuarem ou de noite ou ao amanhecer. Entre as 11 e as 16h, o melhor é parar, se possível à sombra.

10. Não será talvez exagerado afirmar que o IN ficou desorganizado e que as destruições operadas pelas NT vão criar-lhe grandes problemas.

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NOtas do editor:

(*) Título de um poema de L.G., (re)publicado no Blogue-Fiora-Nada... e Vão Dois > 28 de Setembro de 2005 > Blogantologia(s) II - (5): War is over, baby!

(**) Vd. as partes anteriormente publicadas neste blogue:

9 de Novembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCLXXXIII: Op Lança Afiada (1969): (iii) O 'tigre de papel' da mata do Fiofioli

9 de Novembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCLXXXI: Op Lança Afiada (1969) : (ii) Pior do que o IN, só a sede e as abelhas

15 de Outubro de 2005 > Guiné 63/74 - CCXLIII:Op Lança Afiada (1969): (i) À procura do hospital dos cubanos na mata do Fiofioli

Guiné 63/74 - P268: Memórias de Turpin e da Bissau do seu tempo (Mário Dias)

Elisée Turpin (n. 1930, em Bissau), co-fundador do PAIGC (1956).

Fonte: PAIGC (2003) > Depoimento de Elisée Turpin

Mais informações, pormenorizadas, sobre o Turpin, por parte do Sargento Mário Dias, dos comandos, ex-camarada do Virgínio Briote (por cujo intermédio chegou esta mensagem:

Ao passar pelo foranada li as memórias do Elisée Turpin de quem me recordo perfeitamente. Era empregado no escritório da SCOA que ficava num edifício com a estrutura em grande parte de ferro, ao lado da catedral.

O Elisée Turpin tinha um irmão, de nome Antoine, que eu conheci quando estava em Farim. Ele era o encarregado do armazém de produtos (mancarra e coconote) que a NOSOCO tinha em Binta. Ali estive muitas vezes com ele quando embarcávamos os referidos produtos nos barcos da SG que iam carregar ao porto de Binta.

Mas voltando à SCOA, onde o Turpin foi empregado de escritório: Depois do encerramento dessa casa comercial, esse edifício serviu como sede do Sindicato e da Caixa Sindical onde curiosamente eu trabalhei no período que mediou entre a minha passagem à disponibilidade - Outubro (?) de 1960 - e o regresso ao serviço militar activo, em Janeiro de 1963. Actualmente esse edifício é uma pensão, segundo tenho visto publicado no blogue - onde inclusivamente dele existe uma foto.

Já agora, e apenas também como curiosidade, eu fui trabalhar para o Sindicato porque, enquanto estava no serviço militar (com o Domingos Ramos, Rui Jassi, Constantino Teixeira, etc. etc.), a NOSOCO, firma comercial francesa onde eu trabalhava, encerrou a sua actividade na Guiné.

A sede da NOSOCO ficava junto ao rio, estendendo-se as traseiras para a actual Rua Guerra Mendes, mesmo junto a um dos baluartes da Amura. Ao lado era a PSP, comandada pelo major Pezarat Correia, pai do actual brigadeiro (ou general?) ligado ao 25 de Abril de 1974. Este edifício foi, durante a guerra, sede e armazém da Manutenção Militar.



















A pacata Bissau colonial dos anos 60. A Praça da República. Postal da época.

Imagem enviada por João Varanda, ex-militar da CCAÇ 2636 (Có, 1969/71).

Das pessoas referidas pelo Elisée (1) recordo-me perfeitamente de:

- Benjamim Correia, que tinha uma loja de bicicletas e acessórios e era um conceituado comerciante muito estimado e considerado entre a população da Guiné, "colonos" incluídos;

- Rafael Barbosa, que era funcionário das Obras Públicas e tinha uma pequena deficiência numa perna que o obrigava a mancar;

- Quanto ao Inácio Semedo, o único Semedo de que me recordo era o guarda-redes do Sporting de Bissau, alcunhado de "Swift"; talvez não seja o mesmo;

- Luís Cabral, irmão do Amílcar, trabalhava na Casa Gouveia.

Porém, aqueles de quem melhor me lembro - por com eles ter lidado mais de perto - são:

- Fernando Fortes que era funcionário dos Correios em Bissau: tinha um irmão (Alfredo, salvo erro) que nos meus tempos de Farim (1953/55) era o Delegado Aduaneiro naquela localidade;

- João Rosa foi meu colega de trabalho na NOSOCO. Era o guarda-livros. Fui muitas vezes a casa dele no Chão Papel (2). Era muito meu amigo e fui visitá-lo ao hospital quando ali foi internado, já sob prisão da PIDE;

- João Vaz era o alfaiate dos serviços militares. A oficina era na Amura e era ele que fazia o fardamento para os recrutas e demais militares. Ainda tenho comigo um camuflado que ele me fez sob medida.

E chega por hoje. Se me ponho a desbobinar as recordações da Guiné, nunca mais paro.

Mário Dias
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(1) Vd. post de 12 de Novembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCLXXXV: Antologia (24): Elisée Turpin, co-fundador do PAIGC.

(2) Vd. planta da cidade de Bissau (pós-independência): o Chão de Papel ficava a sudoeste da cidade, contígua a Bandim.