domingo, 4 de dezembro de 2005

Guiné 63/74 - P318: A vingança da PIDE (Manuel Domingues)

Caro Luís Graça.

Obrigado pelas referências ao livro Uma campanha na Guiné, que, como é explicado na Introdução, destinava-se fundamentalmente a antigos combatentes que integraram o BCAÇ 1856 (1).

No entanto acabou por interessar outros segmentos, o que para um trabalho sem qualquer suporte de divulgação ou promoção é sempre motivador.

Confesso que fiquei surpreendido pelo trabalho e abrangência do vosso blogue e, por desafio do Cor. Marques Lopes, junto envio um primeiro texto, baseado numa vivência pesssoal, que adaptei do meu livro recém publicado de Estórias Etnográficas "O Pegureiro e o Lobo - Estórias de Castro Laboreiro".

A finalidade é apenas chamar a atenção para um sistema de controlo das vidas dos jovens de então, mesmo quando não eram "revolucionários " nem comunistas e se limitavam a cumprir as normas estabelecidos pelo regime (RDM). É uma amostra do conflito latente entre os militares,sobretudo os profissionais que temiam, mais do que respeitavam, a influência da PIDE, cujo controlo poderia influenciar as respectivas carreiras profissionais.

Não bastava ser bom militar. Era também necessário estar nas boas graças da PIDE.

A maior parte dos oficiais milicianos, que não aspiravaa ser funcionário público, podia encontrar refúgio na sua condição temporária de militar, mas à saída, a PIDE esperava por ele para acertar contas!

Com os melhores cumprimentos
Manuel Domingues (2)


A Vingança da PIDE

Como oficial de informações todas as manhãs, às 07h00, a primeira tarefa era analisar as actividades operacionais e de informações ocorridas nas últimas 24 horas no Batalhão e na Zona, e elaborar o relatório diário, SITREP, a enviar ao Comando em Bissau, como aliás todas a unidades estacionadas na Guiné. O Comando sintetizava os aspectos considerados mais importantes, e distribuía a todas as unidades, semanalmente, uma síntese dos factos através do PERINTREP.

O SITREP, relatório diário, assentava nas informações recolhidas pelas subunidades do Batalhão no terreno, e no sistema de informações instituído. Era prática, recomendada pelo Comando Chefe de Bissau, a partilha de informação com a subdelegação da PIDE existente em Nova Lamego [Gabu], funcionando na Administração do Concelho, e apenas com um Agente.

Através dos relatórios semanais do Comando Chefe constatei a existência de muitas referências e informações sobre a região Leste, onde o Batalhão actuava, como sendo originárias da PIDE, quando afinal eram de origem militar e que o referido Agente obtinha-as mediante o acesso ao centro nevrálgico do Comando do Batalhão, transmitindo-as como sendo resultantes do seu trabalho, influenciando a actividade do Batalhão, pois era com base em informações que o Comando sugeria ou determinava operações no terreno.

Perante tal abuso, e obtido o acordo do Comandante, transmiti ao Agente que dada a situação do território, sob comando militar, e o facto de ele pertencer a uma instituição civil, não poderia ter acesso directo à referida Sala, sem prejuízo de ser informado dos factos com interesse para a sua actividade. Perante a eminência de ver a sua fonte secar fez várias ameaças, mais ou menos veladas, mas de facto a situação mudou, e a contribuição do referido Agente ficou reduzida ao seu trabalho próprio, quase nulo, dada a realidade existente na região.

Já neste contexto, uma manhã deparei com uma mensagem de uma das companhias, estacionada em Buruntuma, informando ter capturado dois prisioneiros, identificados como estrangeiros, e que iria remeter nessa tarde para o Comando do Batalhão para interrogatório mais detalhado. Assim aconteceu. Ao princípio da tarde e com recurso a um militar nativo, fula, como intérprete, porque dominava bem o português e a língua dos prisioneiros, concluiu-se o interrogatório.

Ainda o Relatório não estava feito quando o agente da PIDE irrompeu pela Sala de Operações reclamando a entrega imediata dos prisioneiros por se tratar de mestrangeiros, cuja competência era exclusivamente dos seus serviços. Calmamente tentei explicar-lhe que, pelo facto de a Província estar sob domínio militar, competia a este, em primeiro lugar, averiguar do interesse dos capturados e só depois decidir o seu destino

No caso concreto já concluíra pela entrega à entidade civil porque não apresentavam grande interesse militar. No entanto e apesar de escassos 50 metros separarem as instalações do Quartel e da Administração Civil, os prisioneiros seriam entregues segundo as normas militares, ou seja com uma Guia de Entrega.

O Homem mandou-se ao ar dizendo nunca tal ter acontecido, passando a constituir um precedente grave de desconfiança num elemento da PIDE, ainda para mais da parte de um oficial miliciano. Nunca receberia os prisioneiros em tais condições e assim iria ter de justificar tal atitude perante o Comando de Bissau, que ele alertaria de imediato através do seu Subdirector.

Mal o Agente abandonou as instalações encarreguei o Sargento de Informações de preencher as Guias de Entrega e levar os prisioneiros para o edifício da Administração, com ordens expressas de só os entregar se o Agente assinasse as respectivas guias. Caso contrário trazia-os de volta. Passados 15 minutos o referido Furriel voltou com a indicação de o Agente se manter intransigente e só aceitar os dois homens sem Guia.

Perante esta situação falei com o Comandante a quem expliquei a relutância em prescindir do formalismo, porque em tempos o referido Agente se gabara de ter feito desaparecer prisioneiros sem deixar rasto. Mais tarde poderíamos ser responsabilizados se eventualmente a PIDE os fizesse desaparecer.

O Comandante mandou chamar o Agente e tentou fazer-lhe compreender a situação e que o meu procedimento estava de acordo com as normas em vigor. O Agente hesitou mas como já tinha enviado um rádio para a Subdirectoria em Bissau, decidiu não voltar atrás na sua decisão.

Embora criando uma situação insólita, sugeri ao Comandante o envio dos prisioneiros por via aérea para Bissau à ordem do Comando Chefe, com a indicação dos motivos, ou seja, a recusa do agente da PIDE em assinar a respectiva Guia de Entrega, que mereceu a sua concordância.

Passadas duas semanas o Agente desapareceu, deixando o recado de que alguém iria pagar caro pela sua saída. Dois meses após o regresso da Guiné, em Julho de 1967, e já desmobilizado, requeri o passaporte no Governo Civil de Lisboa, a fim de regressar a Paris, para continuar a minha vida profissional.

Para grande surpresa foi-me recusado. Ao fim de varias diligências, consegui que me dissessem que o motivo tinha sido a informação negativa da PIDE!

Não queria acreditar! Quatro anos antes, já apurado para todo o serviço militar, tinham-me autorizado a ir estudar no estrangeiro e agora, depois de o ter cumprido, negavam-me esse direito. Era a tal vingança anunciada pelo Agente! Revoltado com a injustiça, um dia resolvi ir à sede da PIDE, na Rua António Maria Cardoso, pedir explicações.

O Agente porteiro depois de me perguntar o que pretendia mirou-me de alto a baixo, foi a uma casota telefonar e mandou-me subir ao andar superior onde outro Agente me encafuou numa pequena sala interior, mandando-me esperar.

Ao fim de mais de trinta longos minutos apareceu um inspector perguntando-me qual a razão da vinda ali. Expliquei que pretendia saber a razão da informação negativa relativamente ao meu pedido de passaporte. O Inspector olhou-me com ar de sobranceria e perguntou-me:
— É a primeira vez que vem aqui?
— É sim.
— Então fique a saber: aqui só vem quem nós chamamos! E foi-se embora.

Meio aparvalhado, desci as escadas e o porteiro, com ar trocista, deu-me as boas tardes. Na rua ia pensando como eram grandes os tentáculos de uma organização, decidindo sobre o futuro das pessoas, mesmo quando se limitavam a cumprir as leis que o próprio sistema criara.

(Adaptado, pelo Autor, do seu livro O Pegureiro e o Lobo – Estórias de Castro Laboreiro - 2005)
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(1) Vd. post de A. Marques Lopes, de 18 de Julho de 2005 > Guiné 63/74 - CXI: Bibliografia de uma guerra (5)

(2) O autor frequentou o Curso de Rangers e fez parte do BCAÇ 1856 (1965/67). Como Alferes Mil foi Comandante do Pelotão de Reconhecimento e Informação, tendo desempenhado as funções de oficial de Informações e, durante alguns meses, a de Oficial de Operações.

O BCAÇ 1856 esteve no Leste, Sector L3, com o Comando e CCS sediados em Nova Lamego [Gabu]; e as companhias operacionais em Madina do Boé (CCAÇ 1416, com um destacamento em Béli; , em Bajocunda (CCAÇ 1417, com um destacamento em Copá); e em Buruntuma (CCAÇ 1418, com um destacamento em Ponte Caiúm).

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