terça-feira, 13 de dezembro de 2005

Guiné 63/74 - P344: O meu primeiro contacto com um leproso (Rui Esteves)

1. Texto do Rui Esteves

Amigo Luís Graça,

Desta vez envio um texto sobre a minha prática como enfermeiro topa-a-tudo na Guiné.

Trabalhei sempre sem médico – médico só havia na sede do Batalhão – e portanto tive sempre que me virar sozinho.

No meio de uma tragédia particular (o meu pai morreu quando estava na Guiné), a minha fuga foi trabalhar muito para não chorar.

Um abraço do

Rui Esteves


O meu primeiro contacto com um leproso

Em Outubro de 1971, vivi um dos piores períodos da minha comissão na Guiné Bissau.

Tinha vindo de férias em Agosto, viajando até à Metrópole, e encontrei o meu pai muito doente: quando cheguei ainda andava pelo seu pé; em 5 de Setembro de 1971, quando fui embora, já estava acamado e eu sabia que não voltaria a vê-lo e que morreria dentro de pouco tempo.

O cancro matou o meu pai a 9 de Outubro e eu recebi a notícia – um telegrama da minha mãe – no dia 11, data do meu 23.º aniversário. O meu pai tinha 48 anos.

Os primeiros tempos foram muito difíceis e a minha fuga foi dedicar-me ainda mais ao trabalho.

Começava bem cedo e, enquanto houvesse gente para tratar, não parava.

Aparecia-me de tudo: a população era a larga maioria, homens, mulheres e crianças com paludismo, com conjuntivite, com sarna, com tuberculose, elefantíase, matacanhas…

À medida que os dias passavam, cada vez me aparecia mais gente: já não eram só os manjacos de Chulame.

Ajudado por um homem de Chulame com quem falava mais facilmente em francês do que em português, atendia toda a gente e ia aprendendo a falar um pouco de crioulo.

(Quinhentos anos de colonização portuguesa e o meu interprete quase não falava português mas desenrascava-se muito bem em francês do tempo que esteve emigrado em Dakar, Senegal. Curiosamente, ele dizia ter estado em Paris mas depois de longas conversas cheguei à conclusão que o Paris dele era, afinal, Dakar.).

Um dia, no meio daquela gente que aguardava a sua vez, vejo um homem alto, de cabelos brancos, apoiado a um pau, olhando para mim.

Nunca tinha visto nada assim: a cara já não tinha o nariz nem os lábios e aqueles olhos olhavam para mim do fundo da caveira em que ele se tinha transformado.
Era um leproso em fase muito avançada da doença (1).

Estremeci, cheio de compaixão por aquele pobre homem e sem saber o que fazer, dei-lhe de tudo um pouco, vitaminas, xaropes fortificantes, o que havia ali à mão que pudesse ajudar.

Nessa tarde fui a Teixeira Pinto (2) falar com um médico a quem pedi orientação para poder ajudar aquela pobre gente.

Não voltei a ver aquele homem: provavelmente desiludi-o e ele desistiu.

Soube que havia mais gente como ele, com lepra e com tuberculose, famílias em que a miséria era tanta que, aos poucos e poucos, todos ficavam contagiados.

Lavadores, 13 de Dezembro de 2005.

Rui Esteves
Ex-furriel enfermeiro miliciano
CCAÇ 3327 (companhia açoriana independente)
Guiné, 1971-1973 (Teixeira Pinto/Cacheu, Bissássema/Tite)
___________

Nota de L.G.

(1) Sobre a lepra ou mal de Hansen, vd. a respectiva entrada na enciclopédia livre Wikipédia

(2) Hoje Canchungo, na região do Cacheu.

Vd. post de 7 de Setembro de 2005 > Guiné 63/74 - CLXXX: Teixeira Pinto ou Canchungo ?

25 Setembro 2005 > Guiné 63/74 - CCXI: Coisas sobre Canchungo (antiga Teixeira Pinto)

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