terça-feira, 15 de novembro de 2005

Guiné 63/74 - P271: CCAÇ 2636 (Có, 1969/71) (1): De Santa Margarida ao Cupilom... (João Varanda)


Caserna-abrigo com trincheira de armas pesadas em Có (Pelundo).

© João Varanda (2005)

Primeira parte da história da CCAÇ 2636 (Cacheu e Zona Leste, 1969/71). Autor: João José Varanda, ex-furriel miliciano da CCAÇ 2636, actualmente funcionário da Faculdade de Diereito da Universidade de Coimbra (FD/UC) (1).

Dada a situação geográfica em relação à Metrópole, do Arquipélago dos Açores, onde se situa o B II / 18 e o aspecto quase repentino como se revestiu a mobilização, uma parte dos graduados sé se apresentou quando a Companhia se encontrava no Centro de Instrução Militar (CIM), em Santa Margarida, onde chegou em 24 e 25 de Agosto de 1969, depois de ter feito viagem a bordo dos Navios da Marinha "Ponta Delgada" e "Angra do Heroísmo" até Lisboa, tendo a deslocação para Santa Margarida sido efectuada de comboio.

Seria no Centro de Instrução Militar, em Santa Margarida, que se iria desenrolar o IAO [Instrução de Aperfeiçoamento Operacional].

Convém, aqui referir que a maior parte dos graduados tomou, desde início, contacto com a Companhia, já que foram os instrutores dos próprios recrutas sob o seu Comando, no capítulo da ER (Escola de Recrutas) e respectiva especialidade.

Durante o IAO , a Companhia ficou instalada em Santa Margarida. Do ponto de vista administrativo ficou sob a dependência do CIM (Centro de Instrução Militar), já que para efeitos de instrução, foi a Companhia colocada sob a dependência do BCAÇ 2888.

Como o tempo de que se dispunha na IAO era demasiado curto para um completo adestramento do pessoal, para o particular tipo de luta que nos foi imposta, procurou-se incidir a instrução sobre os aspectos julgados mais convenientes: técnica individual do combate, tiro, emboscadas e reacção às mesmas, golpes de mão e, finalmente, e porventura o ponto fulcral, uma adequada mentalização. Neste aspecto, se bem que não se lograsse atingir o óptimo, dada a limitação de meios, conseguiu-se, todavia, alcançar um grau de instrução razoável, grau esse que se notou quando do falecimento de um recruta ainda durante a IAO

A composição da Companhia, segundo os locais de nascimento dos seus componentes, é algo heterogénea, notando-se, como se depreende, uma predominância do pessoal do pessoal açoreano sendo só os especialistas e a quase totalidade dos graduados do Continente.

Da contribuição ultramarina para a composição da Companhia, há a mencionar o Comandante que é oriundo de Moçambique, um Alferes de Macau e um Furriel de Cabo Verde.


Descolamento para o CTIG - Comando Territorial Independente da Guiné

A Companhia saiu de Santa Margarida, em caminho de ferro, no dia 22 de Outubro de 1969, pelas 0,30 horas, tendo chegado pelas 8,00 horas ao Cais da Rocha de Conde de Óbidos. Após o desfile e as cerimónias de despedida a Companhia embarcou em 22 de Outubro de 1969 a bordo do Navio da Marinha "Uíge", desembarcando em Bissau seis dias depois a 28 de Outubro de 1969.

Durante a viagem que de correu sem incidentes, procurou-se encontrar a linha adoptada para a mentalização do pessoal através de reuniões diárias, onde lhe eram ministradas frequentes instruções de Educação Moral Cívica e Militar com vista a dar uma noção da Província para onde se dirigiam com carácter mais objectivo, relações com a população, suas características e palestras com a finalidade de consolidar o espírito de corpo de Unidade.

A Companhia, após o desembarque seguiu para o Aquartelamento de Brá, tendo no dia seguinte participado na cerimónia de Boas Vindas realizada na parada do Depósito de Adidos e presidida por Sua Excia. o Governador e Comandante - Chefe das Forças Armadas da Guiné, António Sebastião Ribeiro Spínola.

No dia 4 de Novembro de 1969 a Companhia seguiu, em coluna auto, para Có no sector do Pelundo, tendo chegado nesse mesmo dia.

A Companhia foi empregue, logo no dia seguinte da permanência em Có, na protecção aos trabalhos da estrada Có-Pelundo.

Depois de desembarcarmos no cais de Bissau , sobrou a azáfama de transferir material e pessoal para o aquartelamento de Brá onde aguardaríamos continuar a viagem para Có. A instalação no aquartelamento foi um alvoroço habitual, embora controlado e emprestado do tédio de quem vem para uma guerra iniciar uma comissão temperada pela novidade de se enfrentar um novo cenário, o do combate.

Aqui nos foi servida a refeição do jantar, depois e dado o cansaço da viagem marítima tocou a dormir no chão, para esquecer os dias incontáveis que teríamos de aguardar por aquele monstro de ferro que, no momento nos fazia negaças, ancorado ao largo, talvez vinte e quatro meses até nos receber, de retorno.

Tudo tinha ficado para trás, passados que foram aqueles seis dias de mar com cor azul a que chamam marinho. Os peixes voam, enquanto os golfinhos, por períodos largos de viagem a nossa guarda de honra, são prateados e refulgem ao sol como os nossos sonhos. Finalmente, África.

Bissau podia resumir-se a uma avenida com ligeiro declive com estrada para a base aérea de Bissalanca e o cais do rio Pidgiguiti a seus pés. No seu seio de cidade capital, para os periquitos alí chegados Bissau era, sem dúvida alguma, simpática e de serena geometria, sem outro atractivo que não a ausência de guerra e a abundância de cerveja, lagostins, camarão e mancarra frita.

Era uma cidade pequena com o seu tédio específico e com as suas peculiaridades. Quem chega ao palco da que foi guerra colonial, os primeiros passos em terra firme eram para fazer visita à cidade, procurando um amigo, também ele pouco afortunado pela sorte, para se saber o que era a guerra e se obter notícias da guerra. Assim, e de uma maneira geral com os periquitos em terra, foi o primeiro ataque ao nosso grande amigo 2º. Sargento Cruz (todos queríamos dispensa de recolher).

Homem de saber benévolo, ainda e sempre a impor rigor para os seus subordinados nas horas das refeições, regras de atavio e diversas outras normas estritas de comportamento, que no contexto eram perfeitamente ajustadas, começámos por receber a sua primeira palestra avisando-nos do rigor da polícia militar [PM], enquanto materializava o transporte, fardamo-nos a rigor: sapatos bem polidos, meias até ao joelho calções lavados, camisa impecável, boina na cabeça com a ordem na mão, nada de roncos, fora que se faz tarde, lá vai a malta dar os primeiros passos para em pouco mais de meia hora ficar a conhecer a capital Bissau.

Pelo caminho, dada a brancura da nossa pele , os Guinéus e a velhice recebiam-nos bem, entoando a canção de guerra "Periquito vai no mato, olé lé-lé, que a velhice vai para a metrópole, ólaré lé-lé “. Os nativos exibiam uma impassibilidade no olhar e uma neutralidade de porte, recebiam-nos com gentileza no seu distanciamento e a naturalidade dos seus costumes que nunca nos permitiram discernir qual o lado da barricada porque tinham optado.

Bissau, a insalubre capital, sofreu a clássica invasão de refugiados de todas as capitais de territórios em guerra que procuraram fugir das convulsões e encontrar uma actividade para sobreviver, aproveitando a presença dos efectivos militares. A cidade mais que duplicou a sua população durante a guerra, tendo-se formado à volta da urbe de cimento, a “cidade branca”, imensos bairros negros – o Cupilon. Um quarto da população da Guiné concentrava-se no "concelho de Bissau" e ali tinham a sede o governo, os comandos militares, os estabelecimentos de ensino, o porto, o aeroporto e as principais actividades económicas.

Estes primeiros seis dias na Guiné viveram-se entre o deslumbramento do novo e o sobressalto do risco e logo aprendemos que na guerra o tempo perdia sentido objectivo. O relógio tornava-se num aparato inútil, a noite e o dia confundiam-se, fundiam-se. Fomos pontuando pela marcha do calendário, nas nossas mentes sobrava sempre o inopinado da guerra a intrometer-se no fascínio de cada pôr do sol e a escangalhar as noites africanas de que nunca perdemos a saudade.

O tempo passa a acelerar, mas tínhamos de aproveitar todos os minutos até para gastar os derradeiros escudos que restassem do último ordenado e das economias feitas na metrópole, mas não foi difícil em Bissau descobrir em que gastar dinheiro. Nas esplanadas ao longo da marginal de Bissau a tropa mostrava a sua presença a gastar na cerveja nos célebres bifes à bota da tropa, nos armazéns da Cuf, na Casa Gouveia e no Pintozinho, os artigos fotográficos, gira-discos e gravadores seduziam-nos como montras de brinquedos às crianças que nós deixávamos de ser. O que sobrou foi para repartir pelas bajudas e pelos meninos engraxadores de Bissau, o escudo deu para tudo mas como tínhamos chegado a África teríamos de nos adaptar a nova moeda os "pesos", como eram chamados os escudos na Guiné.


Breves notas de seis dias de Bissau.

1 – Cupilon

Bairro tabanca da população, geralmente na periferia, eram um misto de atractivo irresistível e de perigo potencial mas nós, os militares recém-chegados, ignorávamos que a guerrilha tinha apoio em todo o lado, e assim todos os militares chegados a esta querida terra africana procuravam saber onde era e onde ficava (local de africanização e de gozo sexual) sempre apinhado de militares, dado que nele permaneciam lindas bajudas sem cabaço e partiam catota a toda a força: desprendidas da vida teriam nos prazeres da carne sustento bastante para fazerem vida desafogada, que de uma outra forma não conseguiam (2).

O convívio com aquela gente de população fascinava. Fosse pelo exótico dos usos, fosse pela atracção das raparigas, que designávamos por bajudas, independentemente de o serem. E só o eram enquanto virgens. Os seus erectos seios, tensos de jovem e dos nossos apetites, não escapavam ao despudorado atrevimento dos militares brancos.

Apalpar era palavra de ordem. Fiquei sempre, todavia, com a ideia que se riam de nós (era o custo da moeda escudos: os militares tinham esses escudos os africanos tinham necessidade deles. Algumas bajudas com quem conseguimos ter relação de alguma confiança, disputavam-nos abertamente assumindo elas o direito de posse, cortejavam-nos descaradamente e apaixonavam-se por nós. Contudo cobiçavam-nos, o seu olhar de cúpido concentrava-se sempre no prolongar da noite e com o olhar no infinito onde sempre dentro de ingenuidade não se cansavam de perguntar "se em Lisboa tínhamos bajuda e se era linda".

Bissau era local obrigatório de estacionamento, para além dos militares de diversos orgãos ligados ao comandos da máquina militar, estacionavam as tropas de elite: comandos, pára-quedistas e fuzileiros. Estes tão depressa disputavam as beldades como pensavam e tinham as mais variadas suposições de adultério e traições e não era raro, ao menor pretexto, às vezes sem pretexto nenhum, se envolviam entre si em verdadeiras batalhas. E que era a PM [Polícia Militar]e a PA [Polícia Aérea] a ser chamada para pôr cobro à situação.

2 – Clima

O clima, na Guiné, apresenta duas zonas diferenciadas: tropical, com elevadas temperaturas e humidade nas zonas costeiras, e continental, seco e quente, subsariano no interior. Existem duas estações; a seca, entre Dezembro e Fevereiro, em que as temperaturas chegam a descer aos 15º., e a das chuvas. A partir de Fevereiro, o calor associado ao vento leste, torna a atmosfera “irrespirável”, com temperaturas de 35º a 40º à sombra. O regime de monções provoca tornados no início das estações, que dificultam particularmente o tráfego aéreo.

Num clima como o da Guiné-Bissau, com altas temperaturas e elevados índices de humidade do ar, era vital acomodar a acção ao movimento, e para tal havia de adequar as nossas atitudes às condições climatéricas de cada circunstância, o pino do calor durante o dia, era matéria que não se podia deixar ao acaso, assim e na fase de adaptação para os periquitos, nada melhor que aprender os segredos depressa.

Para adaptação ao clima e como o calor na Guiné é impiedoso, nada melhor que bem sentados á volta de uma mesa de esplanada bem servida de incontáveis cervejas e whiskies de mais de 12 anos com [água de] Perrier ou Seven-up ou Coca-cola, bem gelados.

Para o guerreiro, o cigarro é de uma maneira geral companheiro inseparável. Por entre umas fumaças tínhamos longas conversas de guerra, sobre tudo e sobre nada, as mesmas aproveitavam-se para curta cura de esquecimento que o álcool providencia em maior ou menor grau.

Na Guiné só as chuvas tinham época e datas certas, de resto toda ela era na verdade um barril de pólvora, bastava um simples movimento de acender um cigarro, que já era mais que o suficiente para tudo mexer á nossa volta, fazia-se silêncio, ouviu-se no subúrbios de Bissau o súbito troar da saída de morteiro e o sequente rebentamento de granadas algures nas matas, foi o rastilho, logo de seguida o som cavo das granadas dos canhões sem recuo anunciavam mais um ataque com armas pesadas.

Que horror, os estrondos por muito longe que fossem, provocaram-nos um arrepio que nem a proximidade da morte alguma vez conseguira, por momentos pela frente dos nossos olhos passou o absurdo da guerra, porque não dizâ-lo daquela guerra.

Ainda há pouco tempo tínhamos chegado, seis dias foram o suficiente para entrar-mos dentro da dimensão do conflito que estava desenhado, das conversas da mesa da esplanada da marginal, encontramos sempre quantidade enorme de pontos obscuros e sombrios onde se escondiam as nuances que acompanhavam os momentos mais agudos da luta que iríamos travar com o PAIGC. Eram conversas de estilo conspirativo e de ambiente com armas na mão.

Destes dias para nós combatentes do ultramar ficou o cheiro. África tem cheiro a África. Ele é indisfarçável, indefinível, inesquecível, hoje é um cheiro de saudade.
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(1) O João Varanda já me tinha telefonado, em tempos, a prometer este material. Ele fez parte da açoreana CCAÇ 2636, que esteve na região do Cacheu (Có/Pelundo e Teixeira Pinto) e depois foi para a zona leste (passando por Bafatá, Saré Bacar e Pirada).

Vd. post de 22 de Outubro de 2005 > Guiné 63/74 - CCLIII: Notícias da açoreana CCAÇ 2636 (Bafatá, Contuboel, Saré Bacar, Pirada)

(2) Questões terminológicas:

Cupilon, Cupilom, Cupelon ou Pilão ? No meu tempo (1969/71), eu dizia Pilão... Na planta da cidade de Bissau, capital da Guiné-Bissau, que nos foi fornecida pelo A. Marques Lopes, vem Cupelon (de Cima e de Baixo),na parte setentrional, ladeada à direita pela Estrada de Santa Luzia...

Para os tugas que nunca estiveram na Guiné: (i) cabaço = hímen (o símbolo da virgindade): bajuda (com cabaço) = rapariga virgem; cabaço também é usado no nordeste do Brasil, nesta acepção; (ii) partir catota = dormir com uma mulher, ter relações íntimas com uma mulher (partir = dar, partilhar); não sei exactamente o que quer dizer catota, no creoulo da Guiné; no nordeste brasileiro, é sinónimo de meleca, ou mucosidade do nariz). L.G.

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