domingo, 13 de novembro de 2005

Guiné 63/74 - P267: O 'baile dos comandos' na Associação Comercial (Virgínio Briote)

Guiné > 1966 > Comandos a caminho de Bafatá, junto ao Dakota para operações na região do Xitole. O famoso Marcelino da Mata, condecorado com a Torre e Espada, é o primeiro da esquerda, na segunda fila. O Alf Mil Briote é o segundo, a contar da esquerda, da primeira fila. O Capitão Rubim (hoje coronel na reserva) é o 6º da primeira fila, também a contar da esquerda.

© Virgínio Briote (2005)


Texto do Virgínio Briote, um lídimo representante dos "velhos comando" de Brá, 1965/66

Luís,

Estive ausente a semana toda. Quando abri o correio, fui ao Blogue-fora-nada saber notícias. O Américo Lopes em Canssissé em 1974, Fafe a recordar os seus mortos, o Elysée Turpin (quem diria, director-geral da Associação Comercial de Bissau em 65!) (1), a mata de Fiofioli, o Coronel Marques Lopes a dizer ao Anízio que o mundo é assim, é mesmo pequeno.

Das minhas memórias, envio-te uma passagem que diz respeito à Associação Comercial de Bissau.

Um abraço,
vb
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(1) O Turpin foi secretário-geral da Associação Comercial e Industrial de Bissau, de 1973 a 1976 e não em 1965, como por laspso refere o V.B. O que é mais espantoso é como o homem conseguiu escapar às malhas da PIDE/DGS... Afinal tratava-se, nada mais nada menos, de um dos fundadores do PAIGC!... Só há uma explicação: a escola de resistência do PCP-Partido Comunista Português, de que o Turpin também era (ou tinha sido) militante... L.G.

O baile dos comandos na Associação Comercial e Industrial de Bissau (2)

Texto de © Virgínio Briote (2005)

Morreu um tipo de um país qualquer, o Salazar decretou 3 dias de luto e lá estamos nós a ouvir música de mortos com a nossa bandeira a meia haste. Custa-me engolir estas histórias quando os nossos mortos estão a ser ignorados.

Fala-se no próximo baile de finalistas, que vai ser uma festa de arromba! Alguns dos nossos vão roncar com as namoradas ou com os arranjinhos. O Uva anda todo satisfeito, até o Quintanilha, aquele alferes dos páras, mandou vir da metrópole um fato de cerimónia.

Quando estive de férias na metrópole logo a seguir à formação dos grupos, os Fantasmas accionaram uma mina e foi o que se sabe, 9 dos nossos já lá estão. Entre eles o meu grande amigo Artur. Morrem-nos 9 homens e a Emissora Nacional continua a twist e ié-ié. É isto que me custa engolir, estão a ouvir? E ainda por cima, cabo-verdianos e alguns sectores guineenses não vêem com bons olhos a nossa presença nas festas deles!


Mas que raio estava aqui a fazer? A Guiné não lhe estava a dizer nada, não a sentia como sua, até se sentia um intruso. Até com os civis brancos, poucos, duas dúzias se tanto, sentia-se sem convite.

Na esplanada do Bento, a 5ª Rep. (*), como também era conhecida , bebia cerveja com mancarra, num grupo de 5 ou 6 comandos e páras. Um terá dito que naquela noite, na Associação Comercial de Bissau, havia o baile dos finalistas do Liceu. Outro lembrou-se de perguntar se alguém recebera convite. Eu não, tu não, aquele também não…Ninguém se lembrou de nós, como pode ser? Queres ir?

Dentro da Associação, no enorme salão de baile, finalistas e familiares todos animados a dançarem, com o Toni ao piano. Quando os viram entrar em fila, alto lá e pára o baile. Depois, ninguém soube bem como tudo começou…

A princípio, as frentes pareciam bem delimitadas, os participantes em festa de um lado e a meia dúzia de intrusos do outro. Com o decorrer das hostilidades, as duas partes em confronto clarificaram-se ainda mais. Entre vivas ao camarada Presidente Amílcar, um pelotão da P. M. entrou por ali dentro, despachou tudo o que lhe apareceu pela frente, trinta e tal tipos com escoriações para o hospital, a polícia civil e a pide também metidas. Vidros e loiças em cacos, cadeiras e mesas partidas, uma noite que nunca mais acabava.

Mesmo em frente ao Palácio do Governo, onde, soube-se depois, da janela, o Governador via aqueles gajos darem-lhe cabo da psico. Uma vergonha!

Os acontecimentos na Associação Comercial alteraram o ambiente na cidade. A desconfiança entre a população negra, cabo-verdiana e a tropa, os nervos crispados, a porcaria mais ou menos submersa, subiu tudo. Tentava-se levar a vida normal, mas via-se pouca gente nas ruas, sobretudo à noite. A P.M. aumentara os patrulhamentos. O PAIGC, como lhe competia, aproveitava e tirava dividendos.

Nos dias a seguir ao sucedido choveram exposições no Palácio, sete, dissera todo cheio de importância o ajudante de campo do Governador. O General Shultz recebera numerosas individualidades civis, apresentara desculpas formais à Associação Comercial e aos finalistas, prometera pagar os prejuízos, tomar providências enérgicas, o habitual nestes casos.

Em Brá, o capitão interrompeu os desenhos que estava a fazer quando o viu entrar. Começou por lhe dizer que as saídas para a cidade estavam proibidas. Depois, pediu-lhe explicações. Que se tudo tinha acontecido como se contava, que não tivesse dúvidas que haveria consequências. O Governo da Província estava a ver o programa de pacificação a andar para trás, que aguardasse o auto de averiguações, que era tudo, chutara o capitão, cada vez mais longe dele e dos outros. Logo a seguir deu-lhe ordem para ir para o Xitole, o grupo deveria manter-se lá até nova ordem, sem mais detalhes. Bater a zona, procurar o IN, dar-lhe caça, para que é que havia de ser?

Embarcaram num Dakota até Bafatá, depois apanharam boleia numa coluna auto que os levou para Fá, rumo ao Xitole, numa coluna a abarrotar de abastecimentos.

Até Fá Mandinga o percurso foi-se fazendo. Depois, até ao Xitole, foram sempre debaixo de chuva, os km nunca mais acabavam, as viaturas civis que aproveitaram a boleia não estavam preparadas, metiam-se na lama até à carroçaria. O Corubal parecia o Atlântico quando o atravessaram. Chegaram no outro dia à noite, com os reabastecimentos reduzidos a metade, alguns destruídos pelas águas, outros desapareceram, ninguém soube dizer como.

Mantiveram-se lá quase 3 semanas, contactaram com o IN nas proximidades do Galo Corubal, em Satecuta, sem consequências para além de trocas de tiros à distância.

Da estadia no Xitole o que os marcou mais foi a chuva. E o toque a silêncio, tocado à noite por um profissional da corneta. Um solo de requinta, de arrepiar!

Percurso inverso, quase a mesma história, com a diferença de ter sido feito a pé até Bambadinca.

Dias depois em Brá, um capitão procurou-o, queria ouvi-lo para o tal processo que estava a decorrer, já tinha ouvido os outros, só faltava ele. O que tinha acontecido, como, quando, porque é que, quem fora o cabecilha, leia, assine aí em baixo, alferes Gil Duarte, se estiver de acordo.

À noite fora até Bissau, encontrar-se com os companheiros do costume. Passaram-lhe para as mãos a Plateia, uma revista de cinema que saía em Lisboa. Folheou-a, os olhos na Brigitte Bardot a fazer festas no focinho de um burro, um pé da Sofia Loren num banco a tirar a meia preta com um tipo qualquer deitado numa cama, à espera. Parou numa página. Crónica da Guiné na Plateia, ora deixa ver! Uns arruaceiros tinham invadido as instalações da Associação, interromperam a festa dos finalistas e partiram tudo, à boa maneira dos teddy-boys de Liverpool e Manchester, escrevia escandalizado o correspondente. Olharam uns para os outros, calados.

Fica assim, perguntou alguém? Que não, que era melhor falar com o correspondente, esclarecê-lo, tirar-lhe as dúvidas. Bissau era pequeno, foram até à esplanada do Bento, disseram que ele devia estar lá para cima, no café Império.

Encontraram-no, estiveram com ele, explicaram-se uns aos outros. Não foi logo na Plateia seguinte, mas a rectificação leram-na dois meses mais tarde, acompanhada de um cartão com os melhores cumprimentos.

Entraram no gabinete, fizeram-lhe a continência e puseram-se os 5 em linha, aprumados. O Brigadeiro Sá Carneiro, Comandante Militar, mexia nuns papéis em cima da secretária, não encontrava, abriu gavetas, ah, estão aqui, satisfeito. Quando levantou os olhos para eles, mudou de cara.

Ora bem, meus senhores, antes de mais, devo manifestar-lhes a pena que tenho de os ter aqui nestas circunstâncias. Já tive convosco manifestações de apreço, quando o mereceram, o que não é o caso desta vez, infelizmente. Relatar aquilo que ficou apurado, é desnecessário…

Puno o alferes comando…., olhava primeiro para o citado, escrevia depois, três, cinco dias de prisão simples, o critério nunca se soube, porque no dia tal, às tantas horas,…grave prejuízo para a tranquilidade e bem-estar públicos…contrariando os esforços que o governo da Província
…a lenga-lenga igual para todos.

Não sabia porquê, tinha apanhado três dias de prisão, a pena mínima, sabia lá, cara fechada para o Justo, que lhe perguntava porquê uma pena tão reduzida.

Desciam a escadaria quando o ouviu chamar outra vez, ó Gil, então, quando vais de férias?

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(*) Título escolhido por L.G.

(**) Café com esplanada na baixa de Bissau, muito conhecido e frequentado por quase todos os militares

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