segunda-feira, 30 de maio de 2005

Guiné 63/74 - P35: Uma estória de Sinchã Jobel ou a noite em que o Alferes Lopes dormiu na bolanha (1967)

Texto de A. Marques Lopes, coronel (DAF) na situção de reforma, ex-alferes miliciano da CART 1690 (1967/1969) e actual membro da direcção da Delegação do norte da Associação 25 de Abril:


1. Na primeira metade de 1967, o PAIGC montou uma base de guerrilha em Sinchã Jobel. Sem querer (vocês vão ver), fui eu que dei com ela. O responsável militar dessa base era o Comandante Lúcio Soares, que foi, depois da independência, Ministro da Defesa; o responsável político era Cabral de Almada, conhecido como Comandante Gazela, que foi Vice-Presidente da Assembleia Nacional Popular.

Quando estive na Guiné-Bissau, em 1998, pouco antes do golpe de Ansumane Mané, tive uma conversa muito interessante com o Comandante Gazela: lembrámos muita coisa sobre Sinchã Jobel, falámos dos problemas do povo guineense, concordámos que era melhor não termos andado aos tiros uns aos outros (pediu-me desculpa por me ter mandado para o hospital, “mas teve de ser assim”...)... e demos um abraço de despedida.

O objectivo do que mando hoje é lembrar tudo aquilo que nenhum de nós pode esquecer. Para mim também pode ser a, tão vilipendiada por alguns, catarse de mágoas e fantasmas, não tenho problemas em ter consciência daquilo que fui e daquilo que sou. Sobre isto, o nosso caro amigo Professor Luís Graça é que nos pode falar (procurem na Internet os seus impressionantes curricula, académico e profissional).

"Operação Jigajoga. 24 de Junho de 1967:


"Situação particular:

"O IN tem-se revelado em operações realizadas no regulado de Mansomine, ataques a tabancas, a aquartelamentos e outras flagelações. Deve existir algum acampamento que lhe sirva de base para a execução de acções sobre as NT e populações que nos são fieis.

"Missão:

"Assegura a ocupação do Sector, tendo em atenção os regulados da faixa Oeste e as linhas de infiltração que conduzam ao interior. Detecta, vigia ou captura elementos ou grupos suspeitos de subversão que se hajam infiltrado ou constituído no sector, impedindo que a subversão alastre. Captura ou aniquila os rebeldes que se venham a revelar, destruindo as suas instalações ou meios de vida e restabelece a autoridade e a ordem nas regiões afectadas.

"Força executante:

1 Gr Comb da CART 1690 reforçada 1 PEL MIL/CMIL 3
1 PEL do EREC 1578

"Desenrolar da acção:


"O PEL REC/EREC 1578 saiu de Bafatá pelas 05H00, tendo-se-lhe reunido em Sare Geba o Gr Comb da CART 1690 e em Sare Gana o PEL MIL. Entretanto o Dest da CMIL 3 em Sare Madina efectuava a picagem do itinerário Sare Madina-Ponte Rio Gambiel.

"Em Sucuta (Madina Fali) o Dest A iniciou a progressão apeada em direcção a Sinhã Jobel e o Dest B o patrulhamento do itinerário Cheuel - Ponte Rio Gambiel. Depois de atravessar a bolanha de Sucuta, o Dest A detectou pegadas bastantes recentes, deduzindo que se tratasse de una sentinela IN. Junto a Sinchã Jobel as NT foram emboscadas por um grupo IN numeroso, com mort. 82, LGF, MP e Amas Aut., tendo sofrido um ferido grave e 5 feridos ligeiros. Da reacção das NT o IN sofreu 3 mortos confirmados e 3 prováveis.

"Em consequência do pequeno efectivo das NT, da manobra efectuada com pequenos grupos, do grande potencial de fogo IN e da mata bastante densa desapareceu o Cmdt do Dest A, Alferes Lopes, que havia saído de um grupo de manobra para ir a outro trazer um LGF. Como o grupo já não se encontrasse no local previsto pelo Cmdt do Dest A, este viu-se sozinho e a ser alvejado pelo fogo IN pelo que se internou na mata. Pelo que em cada grupo se pensava que o Cmdt. estava no outro, não foi dado grande importância ao facto. Só depois de reunidos todos os grupos se verificou a falta do Cmdt. O furriel, agora Cmdt do grupo de combate, resolveu - porque sendo o seu efectivo reduzido, para o potencial de fogo IN, porque tendo 6 feridos, um dos quais grave e tendo ainda LGF avariado - regressar a Sucuta para pedir reforços. Em Sucuta, onde já se encontrava o Dest B ao corrente do sucedido por via rádio, foi resolvido pedir reforços ao Comando do BCAÇ 1877.

"Comunicado ao Comando do BCAÇ 1877, saiu imediatamente um Gr Comb /CCS constituído pelo PEL REC Inf e pelo PEL Sap. que juntamente com forças da CART 1690 efectuou uma batida na área de Sinchã Jobel até cerca das 21H30, sem resultado e sem contacto com o IN. As forças empenhadas na batida e o PEL EREC, que estava a fazer a segurança às viaturas e o patrulhamento do itinerário Cheuel-Ponte Rio Gambiel regressaram a Geba e Bafatá cerca das 23H30.

"Pelas 09H30 do dia 25 saiu o Gr Comb/CCS/BCAÇ 1877 que, juntamente com as forças da CART 1690, iriam novamente bater a zona de Sinchã Jobel. Ao chegar a Sare Geba foi-lhes comunicado que o Alferes Lopes já tinha aparecido, tendo o Gr Comb/CCS regressado a Bafatá.

Resultados obtidos:

-A detecção de um grupo IN numeroso e bem armado na região;
-A morte confirmada de 3 elementos IN mortos e alguns feridos prováveis.»

2. Foi o meu dia de S. João em 1967. O Alferes Lopes referido era eu. Fui o principal interveniente, mas não fui eu que fiz o relatório (foi feito antes de eu aparecer e enviado para Bissau logo que apareci, e eu fui dado como desaparecido em combate antes de aparecer).

O que sucedeu é que eu tive uma certa sensação de perigo (o subconsciente a funcionar?...) e deixei duas secções na clareira de Sinchão Jobel (onde havia essa aldeia, mas que estava destruída já) e avancei eu e um furriel com outra para atravessar a clareira. Talvez um dia, quando eu acabar de escrever a minha estória, se saiba tudo o que aconteceu. Não vale a pena referir todas as inverdades nele contidas - há gente ainda viva e culpas no cartório. Só uma: eu que estive lá e que passei lá toda a noite (vejam a minha lembrança dessa noite em Na bolanaha dá para pensar...). Eu sei muito bem que não morreram nem ficaram feridos quaisquer elementos do IN!

E uma outra coisa: como podem ver pelo início do relatório ("Situação particular"), os burocratas já suspeitavam que podia haver ali uma base de guerrilha. MAS NÃO ME DISSERAM NADA! Eu e trinta mecos fomos carne para canhão!! Por alguma razão deram à operação o nome de Jigajoga: em qualquer dicionário de português, quer dizer jogo da cabra-cega, ou, em sentido figurado, ludíbrio, engano, coisa pouco firme... Foi assim que nos trataram.
Vou contando, depois, mais estórias de Sinchã Jobel.

Um abraço. A. Marques Lopes

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