terça-feira, 17 de maio de 2005

Guiné 63/74 - P20: Foi você que pediu uma Kalash ? (David Guimarães)

Texto da autoria de David. J. Guimarães (ex-CART 2716, Xitole, Sector L1, Zona Leste, Guiné, 1969/71):

Como é possível que nós tenhamos saudades... até de armas ? É verdade, a costureirinha, os RPG 2 e 7, os morteiros 62 e 82 bem como os 120 mm, os canhões em recuo, etc...

Pois, é verdade, aquele matraquear esquisito das Kalashnikov... Nas emboscadas nunca se sabia onde estavam elas, se à frente se por detrás de nós. Só quando já se tinha experiência de guerra conseguíamos distinguir bem [o som da kalash]...Era um estampido bem diferente das nossas G3... Mas, afinal, quem não sentiu isso?!

Isto, esta guerra tremenda, também tinha os seus episódios anedóticos, por falta de experiência [da nossa parte]. Lembro-me bem primeiro ataque ao quartel do Xitole: ai que nós estávamos lá há pouquinho tempo!... Bem, foi assim: no início da noite ouve-se uns estampidos de espingardas junto ao (mas do lado de fora do) aquartelamento. Todo o mundo correu para as valas e despejou-se em toda a volta do aquartelamento uns vinte minutos de fogo!!! Sabem o que estou a dizer. Isso mesmo, todos para seu lado, direitinhos como aqui tínhamos aprendido. Disparávamos para as zonas donde poderiam vir eles! Ouvimos cessar fogo, alguém aos berros....

As armas pesadas, os nossos morteiros 81, tinham resolvido o problema e eles tinham nos assustado mesmo. Deram meia dúzia de tiros e apanharam com granadas de morteiro nas costas... É claro que estes homens de armas pesadas eram aqueles que ficavam nas sobreposições e, durante um tempo, eram quem nos valia... Não fossem eles e nem faço ideia o que aconteceria...

Então comecei a perceber por que razão, logo ao desembarcar do Xime, a caminho do Xitole, via dedos em riste a chamar-nos periquitos... É isso mesmo, a guerra também tinha que ser aprendida no terreno... Nem Caldas da Rainha nem Vendas Novas nem nenhum campo militar daqui - nem tão pouco as urzes e tojos do monte de Santa Luzia, em Viana... Qual quê?!

Lembrei-me na altura de um aspirante de Lamego que em Viana explicava assim:
-Vocês façam isto, fitem o inimigo e atirem assim!...

Sábias palavras de quem fazia a guerra em Viana e enfim estava convicto que o que vinha nos livros é que estava certo:
- Não se esqueçam, caminhem curvados, o primeiro olha para a esquerda, o segundo para a direita, a arma aperrada à cintura.... Assim, sempre até ao último homem do grupo de combate... etc., etc., etc.

Um camarada que eu rendi na Ponte dos Fulas e que era de Almada (da companhia anterior, nem sei o nome) dizia-me:

- Olha, Guimarães, aqui não é a Metrópole, nós é que sabemos o que fazemos. Eles lá não percebem puto disto...

Ele tinha razão, pois tinha!...

Hoje envio três fotografias. Queria falar um pouco de algo que não vi nos filmes tão bem feitos que o Sousa e Castro fez o favor de me enviar e que se referem à visita dos camaradas à Guiné[em Novembro de 2000].

No Xitole, para lá da pista de aviões, a 5 Km há uma ponte que atravessa(ava) o Rio Corubal, ligando a estrada de Bambadinca-Xitole à Aldeia Formosa.... Essa ponte está interrompida com um pegão dentro da água... Essa ponte mantem-se lá, inoperante, e não foi reconstruída...

A história é que essa ponte teria sido interrompida pela nossas tropas no início da guerra. Outra versão é que que tinham sido os naturais. Uma terceira versão é que tinha sido o Corubal e as chuvas que teriam causado o colapso da ponte... Fico à espera que alguém me conte a versão verdadeira. Alguém da Guiné saberá? Desconfio que não, pois dela resta a história somente.

Seguem em anexo duas fotografias da tal ponte [a Ponte Marechal Carmona], pois ela é só meia ponte: a fotografia que mostra a interrupção, não saiu, que pena! Mas, enfim, é essa. Onde estou eu é exactamente na entrada do lado do caminho para o aquartelamento... Nota-se que ela está inclinada... Era importanete esta zona, pois que, como em todas as pontes, eram feitas operações de reconhecimento regulares...

Segue aí outra fotografia de um amigo. Um rapaz que na altura trabalhava na nossa ferrugem [a oficina de mecânica auto]. Hoje é motorista do Governador (...). Logo me chamou pelo nome recordando-se muito bem de mim, 30 anos depois:
- Saido Baldé (era o Saido)... Guimarães!!! A viola???

Isso mesmo, eu tocava viola também.... Sei que, em Bambadinca, Vacas de Carvalho e um Alferes Machado, do meu Batalhão, tocavam também. Um Português combatente terá sempre um instrumento de música ao lado, e gente ligada ao fado: é o nosso fado...

David J. Guimarães

1 comentário:

mário vasconcelos disse...

Gostei muito da tua escrita: simples, directa como as balas que recordas. E como não poderia deixar de ser, a tua viola sempre contigo.
E eu, simples leitor, por aqui me fico, de arma sossegada, mas sempre amigo.